José Aranda da Silva: “Não dá para produzir mais vacinas da covid-19? É bluff”

Foi o primeiro presidente do Infarmed, um dos fundadores da Agência Europeia do Medicamento (que nasceu em Lisboa) e considera preocupante o que se viveu esta semana coma suspensão da vacina da AstraZeneca. Militar de carreira, recorda as pressões do seu tempo de liderança – histórias que vão dar um livro no fim do ano.

Como viu a decisão da maioria dos países europeus suspenderem a vacina da AstraZeneca sem uma decisão da EMA nesse sentido?

Com muita preocupação. A agência europeia do medicamento tem peritos de todos os estados-membros. Estou à vontade para falar disso, fui um dos fundadores da EMA, a sua constituição foi decidida em Lisboa, na primeira presidência portuguesa da UE. O que negociámos na altura, e se manteve, foi uma participação equitativa de todos os estados-membros nas decisões que são tomadas.

Portanto os países sabiam o que estava a ser analisado e a posição da agência europeia, que abriu uma investigação mas manteve ao longo destes dias a posição de que os benefícios superam os riscos.

Sim, e por isso não percebo como é que tendo lá representantes possam tomar uma atitude diferente.

A ideia que tenho é que há uma tentativa de intervenção da política na ciência e isso é muito perigoso. O princípio base destes tipo de agências, e trabalhei na EMA e depois dez anos no Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças como conselheiro, é a independência dos seus peritos. Os políticos muitas vezes são pressionados por outros motivos, e não coloco isso em causa, mas uma decisão deste género pode ter custos elevados não só na confiança que se tem nas instituições mas também na população. Qual o impacto de adiar a vacinação? Quantas pessoas poderão infetar-se e ter alguma consequência por não terem sido vacinadas?

Com tantos países a suspender a vacina, Portugal teria margem de manobra para manter a sua posição inicial? Se fosse agora presidente do Infarmed, teria tido uma posição diferente?

Sou militar, quando fui presidente do Infarmed trabalhei cinco anos com o PS e cinco anos com o PSD e penso que tinha alguma margem de manobra. Infelizmente hoje não será tanto assim, há uma grande interferência política nas entidades deste tipo. Não é por acaso que o Infarmed hoje não é uma entidade reguladora, porque continua a não haver uma total autonomia. Neste caso, acredito ainda assim que Portugal poderia ter tido uma posição diferente. Ao início pensou-se que fosse um problema de lote e Portugal não tinha esse lote, o que levou a que o Infarmed mantivesse que a vacina poderia ser usada. Fico preocupado que se mude de posição tão rapidamente.

O presidente da agência do medicamento italiana assumiu que foi uma decisão política. Cá, invocando-se o princípio de precaução, foi dito que foi uma decisão de saúde pública.

Na maior parte dos países quem anunciou a suspensão não foram os presidentes do Infarmed, foram os políticos. Em Itália foi Mario Draghi. Mas isso também é assustador, políticos a anunciar decisões que deviam ser de caráter científico. Cá a decisão foi anunciada pelo presidente do Infarmed e pela diretora-geral da Saúde. Penso sobretudo que tem de haver uma maior clarificação e é um problema que temos tido ao longo da pandemia. Tem de haver cooperação entre o aconselhamento científico e a decisão política, mas o aconselhamento científico tem de ser independente e não deve estar condicionado por decisões políticas. Os políticos podem decidir o que quiserem porque pesam outros fatores e é legítimo que não tenham exatamente a posição dos cientistas, mas a promiscuidade entre decisão política e decisão científica é extremamente preocupante num país democrático, quando esse princípio de independência é fundamental para garantir a segurança dos medicamentos e de outras posições que se tomam em saúde pública.

Mas neste caso o que pesou mais?

Penso que foi um bocado o ‘Maria vai com as outras’, como diz o ditado popular. Quando países como Alemanha, Itália, França tomam este tipo de decisões torna-se mais difícil países mais pequenos como Portugal não irem atrás. Agora penso que não havendo uma recomendação nesse sentido e se estamos convictos, não devemos de ter medo de tomar decisões diferentes. E a verdade é que a EMA manteve sempre a sua posição e é uma agência em que todos os países têm voto igual nas decisões, ao contrário de outras agências onde a representatividade é proporcional ao número de habitantes.

Portanto são os países a pôr em causa os seus próprios peritos.

Sim.

A vacinação vai continuar, vão continuar a ser reportadas reações adversas, eventualmente o comité de avaliação de risco (PRAC) poderá desencadear outras investigações. Não se pode abrir um precedente que leve a parar a vacinação mais vezes?

Antes de mais e tem sido a posição de alguns colegas é que estas atitudes vão criar na população um grande grau de insegurança e instabilidade e que é preciso contrariar isso. Vamos precisar de uma política de comunicação coerente e aí julgo que a comunicação da EMA poderá também não ter sido a mais correta. Não calcula a quantidade de telefonemas que tenho recebido de colegas assustadíssimos. Houve um a quem disse: se és farmacêutico e não és vacinado deixo de falar contigo. E estamos a falar de pessoas experientes. Criou-se uma insegurança que não pode voltar a criar-se. Tudo na vida tem um risco, como lembrou a professora Cristina Sampaio numa entrevista que deu há uns tempos. E nos medicamentos essa cultura de análise e gestão do risco, onde entram os sistemas de farmacovigilância, existe há muito tempo. Por exemplo, nos medicamentos oncológicos o limiar de risco aceitável para um medicamento ser aprovado é maior do que num analgésico ou num hipertensor.

Como é avaliado?

São análises que pesam diferentes fatores mas que no fundo contrapõem os resultados de eficácia que o medicamento vai ter, que demonstrou nos ensaios, os riscos que comporta e o risco que a pessoa corre se não tomar o medicamento. E compara-se. Chega-se à conclusão se os benefícios superam os riscos ou não e em função disso fazem-se recomendações. Foi isso que se fez agora de novo com a vacina da AstraZeneca: mesmo havendo ainda dúvidas sobre casos raros de tromboembolismo associado a trombocitopenia (baixa de plaquetas), se estão ou não associados à vacina, o risco de morrer ou ser hospitalizado por covid-19 e o benefício que a vacina confere na proteção é superior. Quando se pesa que foram vacinados 20 milhões de pessoas e temos 40 casos raros, o risco de uma pessoa sair de casa e ser atropelado é maior.

Entre as imagens que circularam esta semana para ilustrar o risco de ter uma tromboses, que a EMA afasta que sejam potenciadas pela vacina, víamos a pílula, com risco superior, ou grandes refeições. Valorizamos mais uns riscos do que outros?

É tudo relativo. Vivemos numa sociedade com riscos. Quanto mais evoluímos, mais riscos surgem, quer pelos tratamentos avançados que fazemos, quer pelas tecnologias que utilizamos, os telemóveis… Houve alturas em que aceitávamos riscos que não aceitamos hoje. Sou do tempo em que se operava de janela aberta e alguns médicos até fumavam durante a cirurgia. Isto há 40 anos. Fiz parte de uma equipa que ajudou a mudar as práticas de segurança nos blocos operatórios. São riscos relativos mas hoje não são admissíveis. Na área do medicamento temos o exemplo da talidomida.

Era usado por grávidas por causa dos enjoos e percebeu-se que causava má-formações nos fetos.

Era usado para dormirem melhor também. Apesar do problema que foi e de ter causado milhões de deformações, hoje é usado em primeira linha no mieloma múltiplo e na doença de hansen, na lepra. Desde que não seja administrado a grávidas, concluiu-se que nestas doenças os benefícios superam os riscos.

Qual é o medicamento mais perigoso?

Há muitos medicamentos perigosos. Fiz parte da minha formação no Reino Unido. Das coisas que mais impressionou na altura foi perceber que o paracetamol, dos medicamentos mais usados, em Inglaterra era a principal causa de morte por suicídio, em doses excessivas pode paralisar a função hepática. Não há medicamentos sem riscos. Se não houvesse avaliação e ponderação de risco e benefício, não havia medicamentos. No caso concreto das vacinas, os ganhos que têm trazido são muitíssimos superiores. Numa situação de pandemia, quando continuamos a ter milhares de mortes, é preciso ter firmeza e não tomar decisões que não são baseadas em ciência. E se existe avaliação do risco dos medicamentos, e bem, também gostava de ver avaliado o risco/benefício desta atitude tomada pelos países. Esta pausa na vacinação pode vir a causar mortes, levou a que pessoas não fossem vacinadas com a vacina da AstraZeneca e que podem vir a contrair a doença e morrer. Não sabemos quantas são, mas não sabemos se serão mais do que as que tiveram estes quadros raros de tromboembolismo e que não está demonstrado que estejam ligados à vacina.

Os dados sobre suspeitas de reações adversas são pouco divulgados. Publicámo-los esta semana no i. Diz que não há medicamentos sem riscos, mas parece haver um certo tabu.

Acho que devia haver um maior esforço de informar a população e aí estamos atrasados cá mas também na Agência Europeia do Medicamento. Quando a EMA aprova um medicamento tem um documento que se chama em inglês EPAR (European Public Assessment Report), que explica o que aprovou, quais os riscos e benefícios. Qualquer cidadão pode ir à internet e ler aquele documento mas não é algo que seja muito divulgado e em Portugal também não existe ainda essa cultura de transparência. Para mim, o problema é um pouco maior: um dos grandes problemas do nosso sistema de saúde é não haver ainda um suficiente envolvimento dos cidadãos. A nossa Constituição define o nosso Serviço Nacional de Saúde como tendo um acesso equitativo, tendencialmente gratuito, universal e com uma gestão participada, mas esta última parte que está lá desde 1976 nunca foi posta em prática. O Conselho Nacional de Saúde presidido pelo prof. Henrique Barros é um órgão que está previsto há 40 e tal anos e só foi nomeado no consulado do prof. Adalberto Campos Fernandes. Todos dizemos que o Serviço Nacional é um património universal, com a pandemia então ninguém diz mal do SNS, mas agora precisamos de envolver a população, a academia. A pandemia trouxe coisas positivos. Ao contrário do que pensam alguns financeiristas, percebeu-se que saúde não é só uma despesa. É fundamental para o progresso dos países. Costumo dar o exemplo do barão von Bismarck, um homem profundamente conservador, mas que percebeu no século XIX que perante a concorrência que Inglaterra estava a fazer à Alemanha durante a revolução industrial, tinha de ter trabalhadores saudáveis e propôs um sistema de saúde universal. Com isso passaram a perna ao Reino Unido. A questão da saúde, do acesso à saúde, não é ideológica, é uma questão de progresso da sociedade e resiliência económica. Agora, além desta questão de fundo, penso que temos de forçar os nossos Governos a acreditarem no aconselhamento científico das entidades independentes. Criam-nas mas depois muitas vezes não acreditam no que elas dizem. A forma como se organizou o aconselhamento científico durante a pandemia, com as reuniões do Infarmed, foi deficiente. Creio que o primeiro-ministro já o percebeu e agora pede propostas concretas aos cientistas, mas é estranho que no meio disto temos um órgão que serviria para isso, o Conselho Nacional de Saúde Pública, que não funciona ou funciona de vez em quando de uma forma perfeitamente anárquica e que não tem contribuído para melhorar a situação.

Antes do receio das reações adversas fazerem tremer a campanha de vacinação, já havia o problema da distribuição. Tem defendido que é urgente haver medidas para aumentar a produção. Como se explica a resistência que tem havido dos países mais ricos e da UE em discutir o levantamento de patentes ou licenças compulsórias, como já defendeu até o diretor da OMS?

Tenho dificuldades em perceber. E de facto não vemos a Comissão Europeia e mesmo a presidência portuguesa tomar uma atitude firme como a que tomou o Presidente Biden nos EUA. Biden chamou as grandes empresas, as que tinham vacinas da covid-19 e as que não tinham mas produzem outro tipo de vacinas como a Merck, e foi muito claro: ‘Ou os senhores produzem noutros laboratórios ou eu intervenho usando mecanismos legais e resolvo o problema’. E nos EUA a produção de vacinas já não está a ser feita só nas fábricas da Pfizer e Moderna mas nas fábricas da Merck por exemplo. Na Europa nada.

Escreveu há dias que é preocupante a passividade da Comissão Europeia e da Presidência da União Europeia em confrontar os grandes interesses. Os Governos europeus estão reféns das farmacêuticas?

O que vejo é que não têm tido capacidade de exigir mais e isso é incompreensível. E não venham com histórias: a capacidade de produção de vacinas na Europa, ao contrário do que se tem pretendido dizer, é excedentária e não está a ser toda utilizada. É insuficiente com certeza nas fábricas da Pfizer e da AstraZeneca, mas há outros laboratórios, a Merck, a Recipharm, a Novartis… Há vários laboratórios com fábricas na Europa que podiam estar a produzir as vacinas. E mesmo sem pôr em causa as patentes, que é uma situação mais complicada, os países podem obrigar as empresas a conceder licenças de fabrico a outros laboratórios.

A discussão está em cima da mesa na Organização Mundial do Comércio deste outubro, por proposta da Africa do Sul e Índia, mas tem sido sucessivamente bloqueada. Pode virar-se contra nós?

Possivelmente. O que nos interessa a nós, europeus e americanos, vacinar as pessoas se mantivermos o resto do mundo sem cobertura vacinal? Que variantes podem surgir nesses países? O combate à covid-19 não pode ficar pelos países ricos se não o comércio, o turismo, ficará sempre condicionado. No meio disto não podemos ficar na mão dos interesses do mercado e não fazer tudo o que é possível para aumentar rapidamente a produção de vacinas.

Quando diz que há capacidade que não está a ser aproveitada, cá também?

Em Portugal não há fábricas capazes de produzir vacinas, mas há fábricas com capacidade para fazer o enchimento, que é outro dos estrangulamentos que está a haver a nível mundial.

Colocar o líquido nos frasquinhos?

Sim, naqueles frascos depois de onde são tiradas as doses. Em Portugal conheço várias fábricas com capacidade de enchimento.

O laboratório militar também poderia fazê-lo?

Não, o laboratório militar que agora se chama Laboratório Nacional do Medicamento, neste momento não tem condições mas está no seu estatuto poder produzir vacinas. O primeiro-ministro esta semana referiu isso no Parlamento mas espero que não seja uma afirmação palavrosa, porque é preciso investir. Quando fui diretor do laboratório militar há 20 anos fizemos estudos sobre isso, devem estar num qualquer arquivo. É perfeitamente possível o laboratório militar ter uma fábrica de vacinas, é só uma questão de vontade política.

E de investimento.

Sim, mas o que vamos gastar em vacinas da covid-19 só este ano, 100 milhões de euros, é mais do que custa construir uma fábrica de vacinas. Mas isto tem de ser pensado com antecedência. Vai haver agora uma fábrica de vacinas no Norte, em colaboração com uma empresa espanhola, e Portugal tem perfeitamente condições para desenvolver esta área. Temos uma capacidade produtiva de medicamentos bastante grande e a maior parte dos medicamentos em Portugal são para exportação. Exportação para a Europa, para países como Alemanha, Reino Unido, França, países exigentes na qualidade dos medicamentos que recebem. Mas isto não é uma solução para o problema das vacinas da covid-19 a curto prazo. No imediato, o que devia estar a ser utilizado e não está a ser são fábricas que existem em França, Itália, de outros laboratórios e que já fabricam vacinas. O fabrico de medicamentos hoje em dia já não é o core business das grandes companhias. O core business é investigar e colocar no mercado novos medicamentos. Muitas das grandes companhias trabalham com fábricas na Índia, na China, noutros países. Em Portugal, a maioria das fábricas fecharam nos últimos 20 anos e produzem fora da Europa, onde sai mais barato. Numa situação destas, não é aceitável não se estar a usar toda a capacidade.

Seria possível antecipar em quantos meses a vacinação?

Era preciso fazer um levantamento da capacidade. E isto pode envolver infraestruturas de vários países. Há uns tempos dei um exemplo de um medicamento, que no caso não era uma vacina mas um medicamento biológico, o que tem algumas semelhanças com vacinas. É sintetizado em Birmingham, o enchimento é feito na Holanda porque é mais barato e o embalamento é feito em Portugal.

Vai do Reino Unido para a Holanda num contentor.

Sim, isto é normal hoje no processo de fabrico de medicamentos. Porque é que nas vacinas da covid-19 não se procuram soluções deste tipo? Naturalmente que temos quatro tipo de vacinas diferentes e isso exigirá diferentes condições, mas nada é impossível.

Mas supondo-se que os países sabem isso, está a dizer que são as pressões das farmacêuticas que o têm impedido?

São. As grandes companhias podem ter receio que a vulgarização as obrigue a baixar os preços, mas não é aceitável estarmos no meio de uma pandemia a sujeitar-nos a isto. É inclusive contra as proprias regulações internacionais do comércio mundial, que admitem que em situações excecionais podem ser feitas licenças compulsórias. Está tudo previsto.

Conhecendo o meio, são pressões de que forma? Explícitas?

Ameaçam que não produzem, que não fazem. Tem de ser contrariado. Como dizia o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde há 15 dias, se não é agora que se se utilizam esses mecanismos dos tratados internacionais que estão à disposição dos Governos, se não é no meio de uma pandemia com este impacto, quando é? Pior que isto nos próximos anos não deve haver.

Não pode haver alguma hesitação dos países por não terem a certeza de que conseguirão fazê-lo depois de acionarem esses mecanismos? Se a qualidade será a mesma? Se as pessoas vão confiar?

Produzir medicamentos em terceiros é o normal na indústria farmacêutica há mais de 20 anos. Na maioria das grandes companhias internacionais a produção não é feita em fábricas próprias. Têm lá os seus auditores e inspetores para assegurar a qualidade, mas descentralizaram a produção. É um procedimento que já existe e dizer o contrário é bluff, é uma falácia. E os países têm estado a aceitá-lo, quando estamos numa pandemia e cada dia que atrasa na cobertura vacinal corresponde a milhares de mortes e a uma crise económica com milhares de pessoas no desemprego, com muitas pessoas a passar fome. E isso é o que temos de atalhar. E isto é um problema que já vinha de trás na Europa. Os EUA não brincam em serviço. Nos últimos 20 anos não só nos medicamentos mas nos telemóveis como na indústria da defesa, usaram licenças compulsórias. Nos medicamentos com antirretrovirais, com medicamentos para o glaucoma. Estavam com dificuldades de abastecimento e obrigaram os detentores de patentes a produzir noutros laboratórios. Aconteceu em 2001, em 2005, em 2007. Quando foi do Tamiflu na pandemia de 2009, obrigaram a Roche a ceder a licença. Na altura felizmente não houve uma maior disseminação, mas ao início estávamos assustados.

Comportará sempre mais investimento.

Estamos numa catástrofe mundial e o que nos deve preocupar são as mortes, o desemprego, a crise económica. Não é admissível que esta ou aquela empresa esteja a jogar a sua capitalização bolsista em plena crise. É um crime contra a humanidade. Uma empresa, qualquer que ela seja, pôr os seus interesses ou dos seus acionistas em primeiro lugar e privilegiar a capitalização bolsista das suas ações e estar-se marimbando para a morte e crise económica é um crime.

Coloca o ónus nas empresas?

Nas empresas e no poder político que não intervém.

Geralmente as pessoas que trabalham no setor do medicamento têm uma visão um pouco mais compreensiva do que são os custos da inovação…

Nada disso está em causa, mas neste momento, e falo com muitas pessoas, há muitas companhias farmacêuticas que estão preocupadas. O que está a acontecer põe em causa a imagem da indústria farmacêutica mundial. Sabemos que já não tem uma grande imagem, fala-se da big pharma, mas a imagem vai piorar pelo comportamento de algumas companhias. O mais difícil foi de facto investigar e chegar às vacinas, mas não nos podemos esquecer que chegámos lá também com dinheiros públicos. A rapidez com que chegámos a estas vacinas deveu-se à capacidade da Comissão Europeia e do Governo norte-americano de financiar com quantias muito elevadas as atividades que estavam a ser desenvolvidas por estas empresas. Agora produzir um medicamento não é a parte mais complicada.

Mas está a ser.

Está a ser porque não lhes convém. E esse é o jogo de tentar controlar a oferta e procura e isso não podemos aceitar. Isto acontece em todos os lados, nas pessoas, nas empresas, nas instituições. O dinheiro compra tudo. Mas temos de ter mecanismos que defendam o bem-estar das populações.

Quando fala de passividade da presidência portuguesa, o que gostava de ouvir de António Costa?

O primeiro-ministro disse esta semana no Parlamento que estava a fazer o máximo possível e descartou um bocado a questão das patentes. Isto não é um problema de patentes, é um problema de produção. Gostava de saber que levantamento foi feito sobre a capacidade produtiva na União Europeia. Em Portugal sei que foi extremamente incompleto. Sei que não foi feito um levantamento rigoroso da capacidade de Portugal de enchimento de vacinas. Se foi assim cá, sei lá que levantamento foi feito a nível europeu. A Novartis em dezembro ou janeiro anunciou que tinha uma fábrica em Itália disponível, nunca mais se falou nisso. Vamos continuar a precisar de vacinas, vacinas adaptadas às variantes, estamos à espera de quê?

A vacina russa e chinesa vão ser aprovadas a nível europeu?

A russa penso que é uma questão de semanas para ser aprovada pela Agência Europeia do Medicamento. E os chineses também já estão em contactos. E repare, a AstraZeneca também vai ter fábricas na China e os chineses querem vir para cá.

E sendo países com regulação diferente, pode confiar-se nos ensaios?

Hoje os ensaios são globais. Desde que cumpram os requisitos de agências reguladoras credíveis e sejam aprovadas, com certeza. São países com capacidade produtiva de medicamentos há muitos anos. Não podemos confundir ideologia com ciência.

Mas podemos questionar-nos sobre os ensaios, não é tão fácil ter acesso a informação em russo e em chinês.

É verdade, mas o que levou a desbloquear a credibilidade da vacina russa foi um artigo na Lancet. As regras da ciência são as mesmas. Os chineses também publicam muito em revistas científicas e têm-no feito desde o início da pandemia.

Esta semana o coordenador da task-force de vacinação disse que andava de camuflado por considerar que o combate à pandemia é uma guerra. Também andava de camuflado no Infarmed?

No meu tempo tínhamos de mudar a farda várias vezes, havia fardas diferentes consoante a situação. Vinha um general era farda número 1. Vinha uma visita era a farda verde. Agora o camuflado é a farda de trabalho de todos os militares, no laboratório militar os meus colegas trabalham assim. Foi uma boa ideia terem um uniforme operacional, uma farda mais comóda. Já não apanhei.

Acredita que a liderança militar traz alguma coisa diferente na gestão de instituições civis?

Julgo que sim, temos uma boa formação na área logística e somos muito pragmáticos. Julgo que se não fosse militar não tinha aguentado 10 anos no Infarmed.

Mesmo sem camuflado.

Mas tinha a minha espada na parede. Ofereceram-me os meus colegas quando fui para lá.

Sentiu na pele pressões?

Estou a escrever um livro que se chama História e histórias do Infarmed. E aí vou contar muitas histórias que as pessoas vão ficar surpreendidas.

Pressões de que ordem?

De todo o tipo. Ministros, primeiros-ministros, Presidentes da República.

E das empresas?

Das empresas e dos políticos. A gente fecha a porta, entra pela janela, fecha a janela entra pelo postigo. É muito complicado. Tinha sorte que como era militar tinha um emprego. Dava um passo atrás estava no quartel. Por isso é que resisti tantos anos.

Os atuais líderes estão a enfrentar a maior pandemia em 100 anos. Qual foi para si o momento mais difícil?

O problema das vacas loucas, uma tragédia. Pediram a minha demissão várias vezes. Na altura houve propostas para retirar do mercado todas as cápsulas dos medicamentos. São feitas de gelatina e na altura era com gelatina de bovinos. A proposta era tirarmos porque poderiam transmitir a doença, o que não estava demonstrado. E eu dizia, muito bem, tiramos as cápsulas mas vão morrer milhares de pessoas sem medicamentos… Mas tive várias situações difíceis. Houve um medicamento que não vou dizer o nome, um indutor de sono, que se descobriu que os ensaios clínicos tinham sido feitos em prisões, que provavam que aumentava o risco de suicídio e esses resultados foram ocultados, um medicamento de uma grande multinacional americana que depois foi retirado do mercado. Estava na EMA na altura e um dia chego ao meu hotel e tinham-me deixado um dossiê lá para eu ler, com sete quilos. Telefonei para empresa a dizer que ou iam lá buscar aquilo ou ia pôr no hall do hotel para toda a gente ver os documentos secretos da empresa… A certa altura as pessoas percebem que não cedemos a pressões e deixam de chatear.