The Gift: “O melhor ainda está para vir”

Com mais de 25 anos de carreira, os The Gift lançaram recentemente um novo projeto, batizado de ‘REV’. É uma ‘torre do tombo’ da banda,  um espaço dedicado aos fãs, e uma carteira de ‘tesourinhos deprimentes’. A banda de Alcobaça faz um apanhado da sua carreira, dos arrufos e das vitórias, e do que aí…

 

Em que momento começa a surgir a ideia para a REV?

[Nuno Gonçalves] A REV não surge por causa da pandemia, mas se não fosse por ela, não teria sido executada tão rapidamente, ou não seria como o é hoje. Nós sempre quisemos organizar e catalogar o catálogo antigo. Também achávamos que ao nível do digital e dos concertos ao vivo há todo um mundo para além do sofá e do ukulele e das versões despidas. Há outras maneiras de contactar com o mundo fazendo concertos à séria e exclusivamente para esses meios. A maneira como se programa um concerto para 10 mil pessoas é diferente do que para seis câmaras e centenas de milhares de pessoas. Era bom ter uma plataforma para ter produções próprias para essas largas dezenas de milhares de pessoas pelo mundo. Interessava também, e aqui sim entra a pandemia, ocupar o nosso tempo. Os The Gift tocam muito, em muitos países, e de um momento para o outro ficámos privados de tocar ao vivo. Achámos por bem que este era o momento para explorar outras coisas além da banda. Somos pessoas que temos os nossos gostos, as nossas formações fora da música e os nossos hobbies, e pensámos que era uma ideia interessante trazer esses hobbies para dentro da plataforma, e daí surgem os programas. Interessava também o futuro. Interessa ter o Verão disponibilizado para todo o mundo, sabendo que grande parte das receitas dessas audições não vêm para as pessoas que fazem a música? Se calhar não. Há algo extremamente fraturante da música dos músicos e aquela que é dada a conhecer por receitas milionárias das plataformas de streaming. Vimos de uma história de Do It Yourself e dedos em feridas abertas, da ditadura das editoras, das rádios, que dizia-se que não passavam música em inglês. Quando começámos, existia uma série de ditaduras e lápis azuis que nos pareceu interessante combater, e hoje pareceu-nos interessante combater esta ideia de que o algoritmo destas plataformas está a matar o livre arbítrio das pessoas para ouvirem o que querem ouvir e pagar o valor justo para quem faz a música. A REV é um meio onde está todo o mundo à volta dos Gift, passado, presente e futuro.

O modelo é inédito, onde foram buscar as inspirações para esta aplicação?

[Sónia Tavares] O Nuno idealizou isto praticamente sozinho, com os técnicos, e nós com o nosso parecer estético demos o cunho, mas é de raiz que está tudo pensado na cabeça do Nuno. A execução pode vir de uma só cabeça, mas se os outros não derem o seu peso, não vale nada.

[Nuno] A ideia era mesmo explorar outras coisas que os Gift podiam fazer, explorar as paixões da banda para além da música e dos concertos. Queríamos ter concertos de qualidade, programas em que se pode viajar e ouvir uma grande conversa de vida. Concertos que nós, enquanto fãs, gostaríamos de ver e não pudemos. Houve uma epifania quando há 2 ou 3 anos, aquando do aniversário do Disintegration dos The Cure, eles tocaram um concerto inteiro na Sydney Opera House e transmitiram para todo o mundo. O horário de Sydney seriam em Madrid 8 ou 9 da manhã e fui avisado pelo Facebook que estava a acontecer. Pensei, ‘bem, devem estar 10-15 mil pessoas a ver’. Fiquei fascinado com a qualidade sonora e de imagem que o concerto tinha, e fiquei ainda mais fascinado com a quantidade de países que estavam a ver em direto o concerto. E isso despertou uma coisa como era sincronizar o AM para rádios mais longe. Quando ia para Vila Real de Santo António e ouvia as rádio árabes era um fascínio, por exemplo. Depois de ver esse concerto, fiquei com a pulga atrás da orelha. Se há banda em Portugal tendo os direitos autorais e o público desfragmentado em Portugal e no resto do mundo são os Gift, e pensamos que seria uma boa altura para fazer algo disto. A ideia de poder comunicar com o mundo num palco com grande qualidade.

Não acreditam então naquele modelo do pijama na sala com ukulele?

[Nuno] Qualquer pessoa entra em direto para o mundo, mas a qualidade é boa? Não. Só é bom para a pessoa que o faz e, como há falta de concertos, há uma perda de ego, e com os 500 likes sente-se melhor, mas artisticamente não traz nada de novo.

Quais foram os principais obstáculos na preparação do projeto e no seu lançamento?

[Sónia] Contamos com a ajuda de programadores amigos, ficou tudo num ambiente muito familiar. Para os programadores foi também um desafio de carreira e interessa-lhes estar associados a uma coisa inovadora, como esta nossa. Apesar de ser um App como tantos milhares, esta é de música. Para eles foi um desafio. Até há pouco tempo, o desafio manteve-se, porque só agora é que a Apple nos considerou com os pré-requisitos para disponibilizar a aplicação na App Store. Foi o fim de um dos maiores desafios. Foram mais as complicações com a parte técnica do que com o conteúdo, porque de conteúdo temos o sótão carregado. No sentido estético foi fácil de fazer, no sentido técnico foi mais difícil.

É um projeto megalómano, em algum momento recearam que não tivesse adesão por parte do público?

[Nuno] A pergunta faço-a ao contrário. O que preferimos? Um filme gratuito com paragens constantes ou ver um grande filme em surround sabendo que por trás desse filme podemos ter centenas de milhares de outros filmes? É a definição de por que se paga Netflix em vez de usar pirataria. Há um nível de qualidade e uma busca por produtos de qualidade. A App é paga não só porque os músicos têm de ser pagos, mas sim porque são coisas de qualidade. Apesar de a App ter sido lançada em janeiro, está a ser atualizada todos os dias desde agosto ou setembro. As pessoas que conseguiram finalmente descarregar a App na App Store veem centenas de horas gravadas já depois do dia em que foi lançada. Acreditamos que os fãs e as pessoas inscritas buscam uma coisa pela qual pagam, que é qualidade e sobretudo exclusividade. A partir do momento em que se inscrevem, vão ver muito primeiro do que todos os outros que não estão lá. E isso é um sinal dos tempos, de qualidade e de diferenciação. E, para os fãs, é para se sentirem bem tratados e especiais e não se importam de pagar 10 cêntimos por dia, fazem questão de estar connosco. Pusemos as subscrições disponíveis, e sem saberem do que se trataria, subscreveram ‘às cegas’. É uma relação que vem crescendo e estas coisas vêm sendo só o comprovativo do nosso público. Felizmente, após 25 anos, mantêm-se firmes e na expectativa das coisas que trazemos. Obviamente que estas coisas são pagas, porque não poderia ser de outra forma. Se não podemos fazer concertos, os fãs podem remunerar com a subscrição. Sendo estes sinais dos tempos, as pessoas também percebem por que não é gratuito. Mas, se fizermos as contas ao produto que já demos pela anuidade… se não houvesse pandemia, as pessoas iriam ver os GIft duas vezes por ano, são logo 50 euros. Por esse valor, já temos uma série de concertos, programas, documentários dos discos e o que mais ainda está para vir. Se dividirmos pelos dias do ano, dá 10 cêntimos por dia, que, por uma aplicação destas, não é por aí. Sempre fizemos questão de dizer que se é para fazer conteúdo gratuito estão as outras plataformas, para nós não serve.

Já passaram alguns meses desde o lançamento. Como tem sido o feedback e a tal adesão?

[Sónia] Uma vez que a aplicação só dava para Android e para plataforma do computador, não havia acesso à rede social. As pessoas que ainda não tinham a App disponível na Apple contactavam através do Instagram, porque não podiam através da App. A partir daí, contactou-nos imensa gente. Também nos programas que fazemos aconteceu algo curioso, que é que as pessoas acabam por contactar os convidados a dizer que têm gostado muito e que está tudo muito interessante e bem feito, a congratular tanto o convidado como nós. Dá-nos a sensação que estamos a fazer as coisas bem e que era precisamente isto que os seguidores gostariam de ter de nós.

Qual é o segredo para, ao fim de mais de 25 anos de carreira, ainda terem a energia e a vontade de produzir coisas novas?

[Nuno] Como é que se mantém a chama viva de um trabalhador? Sempre definimos que ter a banda não é só música e concertos, é tudo. Capas, iconografia, interessa-nos tudo à volta do que é ter uma banda. A chama prende-se com acharmos que o melhor ainda está para vir. Se estivermos fechados no nosso círculo à espera que o telefone toque, ele vai continuar a tocar, mas a vida perde a chama. Já nos fazem esta questão há uma década. E farão sempre, e não faz mal. As bandas que vêm dos anos 90 já se dissiparam, já voltaram e já voltaram a acabar. [Sónia]Apesar de tudo, da força de trabalho, isto é-nos um bocado natural. Não questionamos, não fazemos nada específico. Encontramo-nos naturalmente. Connosco aconteceu e correu bem, é como aqueles casamentos que começam na adolescência e vão até velhinhos, deve ser mesmo amor, e quando não se explica, é porque é bom [risos].

Pode esta App começar uma onda de novo tipo de conteúdos por parte das bandas e dos artistas? [Nuno] Da mesma forma que nos perguntavam em 1999 quando esgotámos a Aula Magna se daí a 20 anos íamos estar a colar os nossos cartazes, achamos que, com energia, faríamos isso. Se as bandas tiverem motivação para trabalhar, ir além da música, sim. Se não, não. Isto dá trabalho. As coisas não aparecem feitas. Era muito mais fácil ser aquela imagem do artista que se levanta quando quer, ensaia se lhe apetece, mas nem todos nascemos para Billie Eilish.. Desde 1994, quando começámos, nunca vamos ficar por dizer algo. Se queremos dizer algo, vamos dizer. Se queremos fazer algo, vamos fazer. No final da nossa carreira, uma coisa é certa, não nos vão apontar por falta de criatividade ou de vontade de mostrar a nossa arte ao maior número de pessoas, e isso surge pela App, pelos discos produzidos e países que visitámos, isso já ninguém nos tira. A App está pronta a ser vendida a quem quiser. Qualquer pessoa que quiser criar a sua própria REV com outro nome, teríamos todo o gosto em abrir as portas da plataforma e que ela conseguisse ajudar outras bandas a chegar mais longe. O futuro passa por isto. Vivemos num tempo de mudança, não sabemos quanto tempo vai demorar para que as pessoas tenham confiança para voltar.

Falemos dos programas originais que fazem nesta plataforma. De onde surgem as ideias para os diferentes segmentos?

[Nuno] Tem a ver com a personalidade fora dos Gift de cada um de nós. Por exemplo, o Miguel Ribeiro com o programa Local, é o programa onde se vai à raiz dos produtos. Pensei num típico programa de cozinha/conversa com o Miguel, e ele achou por bem ir ao local onde se fabricam os produtos, e desvendar um bocadinho o que é que está por detrás dos produtores, como no caso da sardinha e do queijo da serra. Foi mesmo aos barcos, às lotas, falar com os pescadores, falar com os chefes de tripulação, para perceber o que é que está por trás de uma simples sardinha, da mesma forma que o fez com o queijo da serra. O John, que é um verdadeiro intercontinental, passou por uma ideia de ter conversas com artistas portugueses que foi conhecendo no mundo fora, ou estrangeiros que fizeram de Portugal a sua casa. Para mim, sempre fui um apaixonado por rádio, tenho o Quem é Quem, de entrevistas de vida, em que não digo quem vou entrevistar. Neste caso, é só ‘vou ouvir quem é esta pessoa, de onde vem’, e só no final é que digo quem esteve a ser entrevistado. É um programa que me dá muito gozo fazer, porque eu conheço-os, mas falta o lado da origem e do que está por trás de cada ofício. Depois, sempre gostei de estar atento, leio os jornais, e o Post é um diário íntimo, transmissível, sobre o que foi a minha semana. Coisas mais íntimas e mais pessoais e como vejo o que aconteceu na semana, e dou a conhecer discos de outras bandas que gosto. Ainda temos o programa feito pelos quatro, onde numa mesa falamos sobre as séries, discos, cinema, revista que andamos a ler, como uma magazine cultural, onde damos as nossas visões.

[Sónia] E depois temos o Na Pele De e o Driving You Slow, que é uma viagem em que dou uma boleia ao convidado e esse convidado não é necessariamente um amigo do peito ou pessoas famosas, mas sim pessoas que acho que passaram na minha vida e ficaram por algum motivo, e tenho todo o gosto em partilhar com os seguidores. Acaba por ser um bocado como o Nuno faz com os convidados dele. Quero conhecer as origens e as motivações, bem como o dark side que as pessoas representam e eu também admiro. E o Na Pele De, é assim, eu gosto muito de cantar, não só os Gift, mas também canções dos outros. Aproveitei o facto de gostar do lado da encenação, e associei essa ideia ao facto de gostar de cantar, então interpreto canções e pessoas que digo que são os meus ‘professores’. Stevie Wonder, Portishead e David Bowie já lá passaram e há muitas ideias. Esta é a que me dá mais prazer fazer, porque gosto de pensar depois o que posso fazer com um palco de meio metro, fazer uma espécie de videoclipe, e isto desafia-me a ser eletricista, encenadora, e de montar um enredo à volta do videoclipe.

É uma ‘Torre do Tombo dos The Gift’. Mas ao mesmo tempo traz conteúdos novos. É esse o segredo do sucesso da aplicação?

[Nuno] Sim, e também parece que uma das coisas que pode influenciar a aplicação é que estimulamos a nossa criatividade diariamente. O próximo disco, a sair no futuro próximo, vai ter mais trabalho ao pormenor, onde provavelmente vamos inserir outras cosias, porque o facto de termos de estar a par do que acontece no mundo ajuda. Há uma coisa que me excita muito. O que podemos fazer com a inexistência de latência com o 5G? Isso vai revolucionar a maneira de compor e de nos apresentarmos ao mundo. Se hoje podemos ter uma conversa por Zoom, a evolução do 5G leva a crer que daqui a uns tempos posso estar a tocar piano em Madrid, a Sónia a cantar em Alcobaça e o John a tocar no Brasil sem latência. A potencialidade artística que pode trazer a uma banda que tratou por ‘tu’ as eletrónicas é notável. O próximo disco dos Gift será sempre o melhor disco dos Gift e aqui vai-se repetir. Estamos sedentos de fazer música e de a mostrar, com uma bagagem tecnológica e cultural diferente do que era há um ano, porque estando em casa ajuda também à criatividade.

Com mais de 25 anos de carreira, o que mudou principalmente desde aquela banda num concurso em Alcobaça, em 1994, para agora, com este novo projeto?

[Nuno] Sinceramente acho que não mudou muito, de dentro para fora. Há pouco tempo vi o primeiro concerto dos Gift em setembro de 94. Tinha slides feitos por nós, a Sónia tinha Walkmans para disparar pré-gravados com texturas de musicais dos Kraftwerk. Não havia bateria, era a bateria de um teclado, o Miguel tocava guitarra com uma chave de fendas. Era já um universo complexo e com vontade de fazer coisas diferentes. De dentro para fora não há diferença, de fora para dentro, muito mais tecnologia e muitas mais possibilidades de levar a capacidade artística a um nível ainda maior. Temos mais condições e isso acaba por influenciar a qualidade do bolo, mas de dentro para fora não mudou muito.

[Sónia] A grande mudança tem a ver com o amadurecimento da banda e de cada indivíduo. Começamos a levar as coisas de uma forma mais tranquila e relaxada. Se de alguma forma toda aquela energia de jovem e de início nos fazia querer muito bem à nossa banda e fazer muito por ela, com uma ansiedade sempre constante, essa ansiedade transformou-se numa forma de tirar partido de outras coisas que antes não tirávamos. Todos nós somos temos agora família, e isso veio dar um apoio nesta tranquilidade de ter uma banda com 25 anos, que precisa de entender os sinais do tempo como aliados e não como uma coisa para os outros e nós ficarmos no nosso caminho. O que mais mudou foi que a confiança no nosso valor foi sempre muita, mas com a maturidade e a experiência veio mais. Isso reflete-se na App, onde conseguimos transformar uma situação horrível na cultura, obviamente não toda, mas tentamos adaptar-nos e fazer com que surgissem coisas boas de uma situação que não era propriamente a melhor. Se calhar, com a ansiedade de juventude não teríamos tido o discernimento de fazer isto. E fico muito feliz com isso, porque acho que precisávamos disso.

Por curiosidade, sabem onde está a banda que venceu esse concurso?

[Sónia] Claro, o Lacerda fazia parte deles. Entretanto, desfizeram-se. Eu conheci-o já com família muitos anos depois, também já muito mais tranquilo.

No contexto cultural do país, que diferenças notam entre aquele momento e agora?

[Nuno] Mudou tudo. Mudou a maneira de fazer música, mudou a partir do momento em que a Gibson foi à falência, o que mostra o que se passa com as bandas. Hoje em dia é difícil quatro rapazes juntarem-se num sótão para fazer canções. O que vai acontecer é que eu aqui no meu meio com a minha câmara ligada ao YouTube, sou influencer. A realidade está mais próxima a esta mais inócua do que propriamente fingir que tocamos instrumentos para soltar a raiva da juventude. Antes havia a possibilidade de fazer uma banda que podia ser Pop Rock, Indie, Trash Metal, Gótica, enquanto agora se pega num microfone e numa caixa de ritmos e quase sempre vai-se para a música urbana. Há o perigo da falta de caminhos, há o perigo da falta de criatividade, e isso é o que me preocupa enquanto artista. Neste momento, as coisas estão muito talhadas para um único estilo. O facto de qualquer pessoa poder pegar numa caixa de ritmos e fazer música tem o seu lado positivo. Não tenho que tirar um curso para escrever um texto ou para tocar baixo. De alguma forma, tem um lado liberal e de liberdade de as pessoas poderem fazer o que quiserem. As principais diferenças têm a ver com a maneira como nos promovemos ou como a música é embalada e dada às pessoas. Somos pessoas que acreditamos no objeto da música, como CD ou como vinil, como acreditamos no livro, nas letras e no design, na gramagem do vinil, na gramagem do papel com que é feito o livro onde está o disco. Acreditamos nesse lado romântico e, enquanto cá estivermos, vai existir, mas para as gerações novas, da mesma forma que não sabem como se põe play num gravador de cassetes, nem sabem para que é que serve uma cassete, pode soar a velho do Restelo, mas as coisas estão diferentes. Não sei se para melhor ou para pior, mas era mais aceitável estar num festival de verão por causa de como soas, eu acho. É completamente diferente de estar lá pela quantidade de símbolos azuis que tens no teu videoclip. Essa é a maior derrota que eu sinto no mundo da música. Eu não sei se aquelas ouvidas no Spotify são efetivamente reais, porque há um algoritmo, facilmente manipulável, e pode dar azos a que existam fraudes. Da mesma fora que nos anos 90 se proibia pagar a programadores de rádio para pôr no ar, deveria ser ilegal pagar a uma empresa para duplicar ou triplicar as views no YouTube, ou então deixar de acreditar nos números e contratar as bandas por aquilo que elas valem e não por causa dos likes.

Em que momento se poderia marcar o ‘nascimento’ dos The Gift?

[Nuno] Não sabemos. A banda nasce no primeiro ensaio. Em 2006, quando lançámos o Fácil de Entender, foi uma viragem. Chegámos mesmo ao grande público. Mas houve outras viragens importantes. Tivemos fases, fomos crescendo e fomos adaptando, mas nascem logo naquele ensaio, até porque a motivação continua a ser o mesma. Continuamos a descobrir novas bandas, ou a juntar-nos numa carrinha para ir a vários sítios, mas as coisas, apesar de ser diferentes, continuam a ter um fio condutor que é a nossa vontade.

E quando atinge a sua maturidade, quando começa a votar e a poder beber? No Altar?

[Nuno] Eu acho que a banda pode começar a votar logo no Film. Reagimos ao pânico do segundo disco fazendo um dos melhores discos dos Gift. Queríamos fazer um upgrade do que fizemos no Vinil. Se já tínhamos usado alguma tecnologia, depois usamos mais. No Film já usámos uma orquestra gravada em Londres. Se no Vinil tínhamos tentado usar alguma percussão, no Film já usámos todo um outro conjunto. O Film foi um upgrade, ainda por cima pudemos coincidir com o Howye Bee em Londres e seis meses depois estava a misturar o disco em Portugal, e isso deu um upgrade, porque o salto de qualidade de som entre os dois álbuns foi tão notável que nunca mais voltamos atrás. E tudo o que são os discos a seguir ao Film soam muito melhor. O pânico e o pavor do segundo disco abriu uma autoestrada de qualidade que nos suportou a carreira toda. Se a maioridade foi chegada com o Film, o cume da montanha foi ter o Brian Eno a produzir os últimos dois discos.

E momentos altos? Talvez o trabalho lado a lado com Brian Eno?

[Sónia] Sim, sem dúvida. Rebobina 20 e tal anos e imagina-te no Bar Ben a falar do Achtung Baby dos U2 e a pensar que o Brian Eno é impressionante e esse álbum ser uma referência para a nossa vida. Acho que esse foi ‘O’ momento alto. Tivemos muitos outros, muito importantes, e esses momentos têm também de ser contextualizados no tempo. Se foi importante estar nos 2000s com os Flaming Lips, na altura foi tão importante como é agora estar ao lado do Brian Eno. Aí ainda não tínhamos maturidade suficiente para trabalhar com o produtor. Havia muita coisa a aprender enquanto banda e foi na altura certa que conhecemos o Brian Eno.

E arrufos?

[Nuno] Somos uma banda que discute muito as ideias e não acorda todos os dias para o mesmo lado. Há ruturas semanais, até, mas isso faz parte do crescimento. Houve, no entanto, momentos tristes. Há certas derrotas que nos fazem repensar o que andamos aqui a fazer. Houve uma situação em 2007, ou 2008, que foi sair no dia 24 de abril de tocar em Almada para quase 25 mil pessoas e uns dias depois tocar para três em Philadelphia. Aí pensamos ‘O que é que andamos aqui a fazer?’. Há uns anos, a Sónia foi convidada para encabeçar um cartaz na Broadway a fazer o Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos, baseado no filme do Almodóvar, e ela foi endereçada para ser a cantora principal. Íamos ver a Sónia num cartaz de 40x30m em Broadway, e ela achou que na altura, pela carreira, não queria ir. Discutimos na altura por causa isso, e hoje, que o tempo passou, tenho de respeitar a opinião dela, mas agora olho para trás e percebo que também não ganhávamos assim tanto quanto isso, e ela fez o que achava que tinha que fazer. Claro que eu já nem falo como companheiro de banda, mas como amigo de infância, dava-me um orgulho enorme vê-la lá na Broadway.

Como se sente ter, simultaneamente, uma base de fãs em português, e uma base de fãs internacional? Apesar de cantarem maioritariamente em inglês, muitas das vossas canções mais populares estão em português – por que acham que isso aconteceu?

[Nuno] Eu gosto do Spotify, mas se eu ouço só The Cure 500 vezes, os meus 10 euros não podem ir para o Jay Z, respeitando-o. É lógico que a canção Primavera, a mais ouvida, foi importantíssima na nossa carreira. Da mesma maneira, ouvimos os temas do Variações ou O Pastor dos Madredeus, ou os hits dos anos 80, o Primavera é um dos grandes hits, a par do Clássico e do Fácil de Entender, que bateram muito na rádio. Também há uma estatística do Spotify que gosto de ler: quantas pessoas ouviram mais os Gift do que outras bandas, e a grande percentagem dessas pessoas está fora de Portugal. A maioria das pessoas que ouve a Primavera são portuguesas, mas quem ouve Gift mais do que outras bandas é de fora.

[Sónia] Normalmente não decidimos em que língua escrevemos, as canções surgem naturalmente ou em inglês ou em português. Normalmente a mim surge em inglês, mas, quando é o Nuno, quase sempre acaba por ser mais em português. Eu acho que não tenho jeito para isso, não é que pense em inglês, não sonho em inglês. E eu gosto é de fazer músicas mais do que fazer letras, são uma coisa que não nos define. As coisas surgem naturalmente, não temos que anunciar. Só uma vez aconteceu, para o Verão, que estava a tentar escrever a letra em inglês e acabou por ser em português. E ficou maravilhosa, até porque já percebemos como é que as coisas funcionam entre nós e esta empatia de há tantos anos. O curioso da música do Verão é que o título era ‘Hammock’ e quando mudámos as letras para português mantivemos o título, porque não fazia sentido ‘Cama de rede’ [risos].

Falando do contexto pandémico em que vivemos e das suas consequências… qual foi o golpe mais duro para os The Gift?

[Nuno] Não termos receitas. Os Gift desde sempre fizeram uma gestão muito meticulosa e com os pés assentes na Terra. Nunca voámos para pés que não são os nossos. Sempre tivemos uma gestão financeira muito rigorosa. E do lado psicológico afeta muito não poder contactar uns com os outros ou tocar ao vivo. Num tempo normal, já estaríamos a compor o novo disco e ainda não aconteceu porque música é contacto e sem contacto não faço música. Prefiro fazer uma grande aplicação e inserir Portugal na história portuguesa e mundial, porque nenhuma banda fez isso ainda. #embrulha

Que mentalidade e que estratégia decidiram utilizar para lidar com este momento?

[Nuno] No início foi fantástico. Lamento dizer isso, mas a minha vida nos últimos cinco ou seis anos foi de viagens para Madrid, nos concertos, ser pai numa cidade longe, que é difícil, e tive o peso de não poder ver a minha filha durante dois meses, então libertaram-me o peso de não ter de fazer 6 mil quilómetros por mês. Foi uma libertação, mas rapidamente se tornou num flagelo, porque já estava farto. Os livros já não chegavam, sentava-me ao piano e não saía nada, estava farto de ver as colchas penduradas no andar da frente a dizer que ia ficar tudo bem. Fartei-me um bocado de tudo, mas depois de pensar na aplicação e pôr o chip do trabalho a coisa mudou.

[Sónia] Eu não sou rapariga de precisar ocupar o tempo com muita coisa, eu gosto de tranquilidade. Antes pelo contrário, assumi isto com uma tranquilidade que nem eu estava à espera. Portanto, foi seguir as ordens, ver no que dava, e predispor-me para prever as consequências que viriam. Efetivamente, até eu, que sou a maior das eremitas, já começava a acusar a falta das pessoas, da empatia que se tem no fundo enquanto banda, que é necessário estar juntos. Tem de haver contacto. Fui então tentar perceber de que maneira é que esta criatividade não se poderia apagar, e estou a lutar com isso agora, está-me a faltar o contacto e a rotina de concertos. A nossa vida é assim há muitos anos e a ausência de rotina profissional acaba por ser muito difícil. Todos os dias acabam por ser iguais. Apesar de ler e fazer outras coisas, o contacto com as coisas que estão para além das paredes.

Qual é, do vosso ponto de vista, o melhor caminho para levar os artistas e os públicos de volta às salas de espetáculos?

[Nuno] Imunidade de grupo, vacinação, e que o número de casos não ascenda durante vários meses. Se isso acontecer, a confiança dos públicos vai voltar. Acho que o número de concertos vai começar a aumentar, até porque há público para isso tudo, e as bandas, com o pouco que têm, um quarto de teatro já não é mau. Quanto mais vacinação houver e mais empenho para criar a tal imunidade de grupo, só a partir daí é que voltamos ao normal. Economicamente, pode demorar décadas.

Que ensinamentos ficam do momento pandémico, no mundo da música e da cultura em geral?

[Nuno] Enquanto artista, quando tens a motivação para comprar um Porsche, pensa duas vezes. Vimos nos últimos anos muitas casas de férias e carros de alta cilindrada, com bandas a viver o momento, e se calhar é preciso ter os pés mais assentes na terra e perceber que Gaia ou Alcobaça não é Los Angeles.