Palavras e Irascíveis

Esta semana, acrescentei uma palavra à minha algibeira lexical. Trata-se da palavra ‘irascível’ (e todos os seus afluentes e riachos).

por Henrique Pinto de Mesquita

Se há coisa que os adeptos da escrita ou da leitura gostam é de descobrir palavras. O processo é quase sempre o mesmo: quando uma palavra desconhecida tem o azar de se cruzar com esta perigosa milícia, a página que liam torna-se numa autêntica reserva de caça. Detetam a insurrecta e fitam-na – como se de uma presa se tratasse. De seguida, leem-na não sei quantas vezes – para confirmar que não conhecem de facto. Confirmado o desconhecimento sobre ela, tentam ir às suas entranhas: separando as sílabas à cata de alguma luz ou de intuitivamente perceberem a sua etimologia. «Mas que é que esta porra quer dizer? Como é que eu não conheço isto?». É nesta altura que o caçador se mune de uma das armas mais poderosas inventadas pela sua espécie: o dicionário*. Abre-o – seja fisicamente ou em app – e procura a misteriosa palavra. A menos que esteja na companhia de Heidegger, a sua investida será, em princípio, triunfante. «Ah… bem me parecia que era isto» ou «Ok. Faz sentido». Zás! Palavra caçada: mais uma para a algibeira lexical. «Irascibilidade… vou-te colocar ao pé de… mitómano».

E porquê tanta tralha sobre isto? Acontece que, esta semana, acrescentei uma palavra à minha algibeira lexical. Trata-se da palavra ‘irascível’ (e todos os seus afluentes e riachos). Pelo que auscultei do meu círculo de amigos, era a única pessoa em Portugal que não a conhecia. Sendo colunista e Nobel da Literatura devia ter alguma vergonha disso. Mas, enfim, aqui estou – eu dou a cara. A palavra surgiu num contexto bastante queque, ao almoço: o decorador da casa da minha tia era tão irascível que ela o decidiu pôr a andar. Tal como uma criança que interrompe conversas para perguntar o significado de palavras, fi-lo: «Alguém irascível é alguém que se irrita com facilidade», responderam-me. Ao contrário de certas palavras que tenho de ir constantemente verificar ao dicionário – como chauvinista que, sem confirmar, penso que seja alguém muuuito nacionalista –, facilmente memorizei o ‘irascível’. Não só o memorizei como o saboreei durante dias, estando-o a engolir enquanto escrevo este texto.

Assim o foi porque dei de caras com uma palavra que, infelizmente, ajuda a definir o meu atual estado de espírito. Pelos vistos sou – estou? – irascível! O tempo vai passando e, com a idade – e, sei lá, estarmos numa pandemia –, estou a ficar progressivamente irascível. Algo que por si só já me irrita. Talvez seja desta fase pandémica (um amigo no outro dia esmurrou uma porta porque, sem querer, se esbarrou nela – ‘como assim a porta teve a lata de me bater?!’). Suponho que a pandemia esteja a ser frutífera na exponenciação de irascíveis. Há, contudo, alguns mais irascíveis que outros. Sempre achei que os azedos e os maldispostos tinham um charme invulgar. Já não sei quem fez a piada que o Vasco Pulido Valente, quando chegou ao céu, reclamou da bodega que aquilo era. Vasco Irascível Valente.

Esses irascíveis, sempre de trombas com a vida, são, a maior parte das vezes, tão misteriosos como as palavras que desconhecemos – tal como fazemos com estas, temos de os detetar, procurar descobrir, ler e, sobretudo, esforçarmo-nos para os entender. Irascíveis de todo o mundo, uni-vos!

 

*ver o filme O Professor e o Louco do Farhad Safinia.

 

Guimarães, 24 de março de 2021