O discurso «apelativo da violência e do ódio» disseminado pelos movimentos radicais de extrema-direita, assim como o ativismo de cariz violento da extrema-esquerda, cresceu a par com a pandemia de covid-19. Esta é uma das conclusões expostas no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), divulgado esta quarta-feira pelo Ministério da Administração Interna.
Ainda que os analistas do Serviço de Informações de Segurança (SIS) comecem por explicitar que, no nosso país, fez-se sentir o fenómeno da desinformação digital, «particularmente através de campanhas sobre a origem da covid-19 e sobre outras questões relacionadas com a pandemia, procurando enfraquecer a confiança da sociedade portuguesa na resposta à crise», relacionam, de imediato, este fenómeno com o dos extremismos políticos.
Em Portugal, a pandemia surgiu em março de 2020 e os efeitos do confinamento na saúde mental e o aumento de vulnerabilidades sociais e emocionais, «aliados à maior exposição da sociedade portuguesa ao ambiente digital contribuíram para agravar os fatores propícios a processos de radicalização violenta».
Deste modo, não é de estranhar que as fake news – notícias falsas criadas, habitualmente, com o objetivo de atingir negativamente setores da sociedade – tenham proliferado em território nacional, até porque o SIS_realça precisamente a ideia de que a atividade presencial dos movimentos extremistas do espetro da direita não impediu que os militantes disseminassem os seus posicionamentos, recorrendo, para tal, ao universo online.
«Em relação aos movimentos que atuam na órbita dos extremismos políticos, a pandemia levou ao cancelamento da maioria das suas atividades militantes tradicionais, o que não significou menores índices de atividade», escrevem os analistas, adiantando que «o confinamento social imposto pela crise pandémica aumentou o tempo de exposição da sociedade em geral, e dos jovens em particular, ao meio online».
Propaganda e desinformação
Esta maior disponibilidade dos cidadãos para navegar no mundo digital levou a que fosse aberto «um leque de oportunidades para que os movimentos radicais de extrema-direita disseminassem conteúdos de propaganda e de desinformação digital, com vista a aumentar as suas bases sociais de apoio, a galvanizar os sentimentos antissistema e a reforçar a radicalização de base xenófoba».
Para que isso acontecesse, os militantes apostaram num «discurso apelativo da violência e do ódio, num momento em que a sociedade portuguesa é, também, confrontada com fenómenos de polarização ideológica».
Neste sentido, o SIS_não deixou de frisar que a extrema-direita se aproximou de movimentos sociais inorgânicos como os grupos negacionistas da pandemia.
Estes dados do RASI espelham, a título de exemplo, o facto de que, em junho do ano passado, os portugueses integravam o grupo dos países mais preocupados com a legitimidade dos conteúdos na Internet, com três quartos a manifestarem-se preocupados com o que é real e falso, segundo o Digital News Report Portugal 2020.
À época, mais de um terço (34,5%) encontravam-se «mais preocupados com a desinformação no Facebook do que em ‘apps’ de mensagens como o WhatsApp (31,1%)», e 40,4% se diziam «preocupados com desinformação proveniente de redes sociais, em geral».
Resistência Nacional e Nova Ordem de Avis
«Relativamente à militância de rua, cabe destacar o surgimento de um novo grupo de extrema-direita, Resistência Nacional, que levou a cabo uma iniciativa junto à sede da SOS Racismo», adiantam os analistas, referindo-se ao grupo de nacionalistas que se juntou em frente à sede da associação anteriormente mencionada, com máscaras brancas e munido de tochas para protestar contra o «racismo anti-nacional», prestando «homenagem aos polícias mortos em serviço».
Por outro lado, evidenciaram «o caso das ameaças, via email, a parlamentares, militantes antifascistas e ativistas antirracistas, cabendo também alegada responsabilidade a outro grupo extremista, Nova Ordem de Avis», como as ameaças à integridade física recebidas, espelhadas através de frases como «Sabemos onde dormes», em agosto, pelo ativista antifascista Jonathan da Costa Ferreira.
«Estas ações que, naquele momento, atestaram escalada do clima de tensão entre a extrema-direita e os adversários políticos e configuraram táticas de intimidação e/ou tentativas de condicionamento da liberdade individual e política», acrescem riscos de radicalização violenta online de jovens portugueses que poderão conduzir nos próximos anos ao agravamento da ameaça, ainda que «numa dimensão inexpressiva quando comparada com outros países europeus».
O movimento anarquista e a extrema-esquerda radical
A seu lado, o movimento anarquista e autónomo, bem como alguns setores da extrema-esquerda radical, de acordo com o RASI, «não registaram alterações significativas no decurso do ano em análise, mantendo-se pouco ativos na prossecução dos seus objetivos revolucionários».
Assim, afirmaram-se, «sobretudo, no campo do ativismo em reação a acontecimentos políticos, sociais e ambientais, e da militância antifascista de rua, numa vertente ativista de protesto, por vezes com intenção de desenvolver ações de cariz violento».
Porém, consultando o documento, é possível percecionar que no seio do movimento anarquista, «continuaram a verificar-se contactos com os seus congéneres europeus, uns dos quais com atividade terrorista de baixa intensidade», sendo evocada, a este propósito, a detenção, a 25 de janeiro de 2020, do militante anarquista espanhol Gabriel Pombo da Silva, de 52 anos, em Monção, após ano e meio na clandestinidade.
Enquanto o Galiza Livre explicou, à época, que contra este militante pesava uma ordem europeia de detenção e entrega, o Público esclareceu que o homem «conta no seu currículo com assaltos a etrês dezenas de bancos e o homicídio do dono de uma casa de alterne», sendo que as autoridades espanholas noticiaram que tinha um papel de liderança no movimento anarquista.