Myanmar. Relatos de fogo de lança-granadas contra a multidão

Os militares são acusados de empilhar os civis mortos em escolas e pagodes budistas, com feridos à mistura. Os confrontos sucedem-se.

Quando parecia que o banho de sangue não podia ficar pior, militares birmaneses abriram fogo sobre uma multidão com um lança-granadas, assassinando pelo menos 82 pessoas, esta sexta-feira, em Bago, uma cidade a uns 95 km de Rangum, denunciou a Associação de Assistência a Prisioneiro Políticos (AAPP, na sigla inglesa), uma ONG de Myanmar. “Só soubemos do massacre no sábado – as forças de segurança empilharam os corpos num pagode budista e numa escola, bloqueando acesso à área”, avançou o Myanmar Now. Feridos foram amontoados sobre os mortos, ouvindo-se gritos à distância, e alguns dos soldados de plantão pareciam embriagados, segundo o jornal birmanês.

As imagens de Bago, partilhadas nas redes sociais, mostram a polícia equipada como uma força de guerra, contra civis abrigados atrás de barricadas, feitas de portas, móveis e sacos de areia – chegou a ser usada artilharia pesada para bombardear a rua Ma Ga Dit, no leste da cidade conhecido pelos seus protesto, num ataque ao alvorecer, contaram moradores ao jornal. Quando caiu a noite de sexta-feira, Bago teve a sua eletricidade cortada, enquanto militares anunciavam um recolher obrigatório, e aproveitavam a escuridão para avançar com rusgas, casa a casa.

“Soldados destruíram a minha casa toda, esmagaram tudo”, disse Myo Ko, um dos líderes dos protestos pró-democracia em Bago, ao Myanmar Now, que conseguiu escapar às detenções. “Também roubaram três motos, comida, e mil dólares que eu guardava numa estante”, lamentou. “São piores que ladrões, isto é fascismo”.

No resto do Myanmar, os confrontos também têm escalado. Segundo a AAPP, mais de 600 pessoas foram assassinadas pelo exército birmanês, ou Tatmadaw, desde o golpe de Estado que derrubou Aung San Suu Kyi, do poder, instalando uma junta militar, no início deste ano. Já os números da junta são mais modestos – só assumem a morte de 248 civis e 16 polícias, negando o uso de armas automáticas, segundo a Reuters.

Entretanto, várias milícias de minorias étnicas birmanesas, que estão numa guerra intermitente com o Governo central há décadas, desde a independência, já se colocaram do lado do movimento pró-democracia. Aliás, uma coligação de três milícias de etnias diferentes, a Aliança Irmandade dos Três, já lançou o primeiro ataque contra o Tatmadaw desde que assumiram que iriam reavaliar o cessar-fogo em vigor. Este sábado, avançaram contra uma esquadra da polícia em Lashio, no estado de Xã, no norte do país. Acabaram por recuar quando chegaram helicópteros dos militares, segundo a imprensa local. E o Exército pela Independência de Cachin também lançou vários ataques contra os militares, exigindo que parassem de matar civis.

“Agora temos um junção entre o movimento de desobediência civil, que existe sobretudo nas grandes cidades do interior do Myanmar, com as organizações étnicas armadas, que têm sob o seu comando 100 mil soldados”, notou David Camroux, especialista no sudeste asiático da Sciences Po, à AFP. O país “está a caminho da guerra civil”.