S ob o disfarce de jornalista afeto ao regime nazi, Richard Sorge (Baku, 1895 – Tóquio, 1944) conquistou a confiança total do embaixador alemão em Tóquio, Eugen Ott, de quem se tornou assessor e confidente. Mais tarde, Ott descobriria que Sorge não apenas o tinha usado para obter informações confidenciais, como o atraiçoara enquanto amante da sua mulher. Descrito como «encantador e bonito», com o seu «rosto alongado, um farto cabelo encaracolado e olhos profundos e muito azuis», Sorge era mulherengo, alcoólatra, fanfarrão e aventureiro – a «personificação do perigo e do romance», diz Owen Matthews na sua biografia agora editada em Portugal. Além de tudo isso, Sorge foi também «o espião mais formidável da história», como lhe chamou Ian Fleming, o criador de James Bond.
Conversámos com Owen Matthews, jornalista, historiador e antigo repórter de guerra, a propósito de O Espião Perfeito – Richard Sorge, o melhor agente secreto de Estaline (Edições 70).
Lembra-se da primeira vez que leu ou ouviu falar de Richard Sorge?
Richard Sorge tem uma enorme celebridade em dois sítios: na Rússia e no Japão. O que é um pouco estranho é que seja mal conhecido no Ocidente. A primeira vez que ouvi falar dele foi em criança, na Rússia. Havia uma série de televisão muito popular na década de 70 sobre um agente secreto sob o disfarce de oficial alemão na Alemanha nazi. Lembro-me de ouvir que se baseava numa história verdadeira, na história de Richard Sorge. A primeira vez que ouvi falar dele foi no contexto dessa série.
A sua mãe é russa. Costumava ir à Rússia em pequeno, nas férias?
A primeira vez foi em 77, eu tinha cinco anos. Voltei lá em 1980, logo a seguir aos Jogos Olímpicos, depois novamente em 84, e certamente em 86. E fui trabalhar para a embaixada britânica, um emprego de verão, em 1990.
E guarda boas memórias dessas visitas ou era um país estranho?
Tenho memórias muito boas. Todos sabemos que «o passado é um país estrangeiro» [citação de L. P. Hartley: «O passado é um país estrangeiro; lá eles fazem as coisas de maneira diferente»]. Mas a União Soviética era mesmo outro país, o ambiente era completamente diferente. A Rússia de hoje está praticamente irreconhecível. Uma coisa que me impressionou particularmente, mesmo sendo eu uma criança pequena, foi a atmosfera de paranoia, de nervosismo. A sensação de que os nossos atos, as nossas palavras, o que dizíamos ao telefone ou na cozinha, podia ter consequências. E não é que a minha família fosse especialmente paranoica – na verdade até era menos, porque tinha familiares no Ocidente e fosse como fosse já estavam sob todos os radares possíveis do KGB. É interessante que essa consciência está a voltar aos poucos.
Embora todos saibamos há muito que o regime de Putin é autoritário e repressivo, ainda assim havia alguma tolerância pela atividade da oposição a baixo nível. Continuou a haver canais de televisão independentes na internet, havia uma rádio mais ou menos livre e objetiva em Moscovo, as pessoas podiam organizar e participar em manifestações e dizerem o que pensavam nas redes sociais. E nos últimos meses sinto que os meus amigos têm medo de que a atividade online possa ter consequências no mundo real. Em certo sentido, a consciência de um estado securitário soviético está de volta às pessoas de mentalidade liberal da oposição.
Depois de ter visto essa série quando era miúdo, o que o levou a querer escrever sobre Richard Sorge quando já existem uns 100 livros sobre ele?
Quem decide escrever uma biografia de alguém é como um investidor: precisa de ver que valor podemos acrescentar. Se há alguma coisa que possa fazer para tornar esta propriedade mais valiosa – falando em termos históricos, não comerciais. Percebi que, embora houvesse vários excelentes livros sobre Sorge escritos no Ocidente e no Japão, e vários livros exaustivos, decentes, diria, escritos na Rússia, estranhamente nenhum historiador ocidental tinha ido aos arquivos russos. Não sei porquê, mas nunca foram.
Nos arquivos, quando abrimos a pasta com os documentos, no interior da capa temos uma lista de todas as pessoas que acederam àquela pasta desde que ela foi coligida. No caso das pastas de Sorge, foram organizadas no início dos anos 1960. Abrimos a pasta e vemos o nome de todos os historiadores que lemos, e nunca encontrei nas pastas que vi o nome de qualquer historiador ocidental. Para o historiador ocidental isto era terra incognita. Percebi que a história não tinha sido contada na totalidade, faltava uma parte importantíssima, que era o que aconteceu do lado russo na carreira de espionagem de Sorge.
É fácil trabalhar nos arquivos russos?
A resposta curta é sim. Tive sorte, porque Sorge trabalhou para os serviços de espionagem militares. Não trabalhou para o KGB. E isso é tremendamente importante, porque se os ficheiros estivessem nos arquivos do KGB eu nunca os teria visto. Por alguma razão, os documentos sobre o exército soviético são facilmente acessíveis. Aquela é a pasta, outrora top secret, que foi organizada nos anos 60. Quanto aos documentos que não foram colocados naquela pasta…
Nunca saberemos quais foram.
Mas é isso que torna a história viva e interessante. Há sempre alguma coisa que não percebemos. Especialmente quando estamos a escrever sobre um espião: a sua especialidade é mentir e enganar. [risos] Pessoalmente, há uma coisa que eu adoraria ver. Mais para o final da história, como escrevo, houve muitas pistas de que Sorge estava desiludido. Continuou a fazer o seu trabalho, a cumprir o seu dever, mas ao mesmo tempo não gostava do estalinismo, os seus amigos estavam a ser presos e executados, e podemos adivinhar que ele estava muito tenso e frustrado, queria sair, fugir dali. E pode ter escrito a alguém uma carta sobre isso… mas não sabemos.
Enquanto escrevia esta biografia sentia que conhecia Sorge ou ele de alguma forma escapava-lhe?
O que significa conhecer alguém? Na realidade ele é um homem com tantas faces, e nenhuma delas é a sua verdadeira face. Acho que isso é verdade para qualquer um. Somos pessoas diferentes consoante aqueles a quem nos dirigimos. O melhor que conseguimos fazer é desenhar esse retrato compósito, juntamos diferentes fotografias, como um modelador 3D. Inserimos uma imagem no programa, outra imagem – esquerda, direita, de perfil, de três quartos, de frente… E aos poucos começa a aparecer uma imagem de retalhos em 3D, mas é sempre parcelar. E também, para continuar nessa analogia, é também só da superfície… É o rosto, não o coração ou a alma.
García Márquez dizia que todos temos uma vida pública, uma vida privada e uma vida secreta…
Isso é completamente verdade. No caso de Sorge, o que me impressionou é quão profundamente misteriosa e estranha era a sua vida. Para começar, vivia sob permanente perigo de morte. Mas também por nunca haver, seja qual for o momento da sua vida adulta, em quem ele pudesse confiar completamente, a quem pudesse dizer o que lhe ia na alma. Ele enganou toda a gente à sua volta, mesmo as pessoas que supostamente amava, o que é um comportamento muito estranho, bastante patológico, na verdade, e definitivamente solitário. É muito difícil perceber por que alguém haveria de querer viver assim, a menos que fosse levado a isso por alguma necessidade profunda.
Sorge nasceu numa família abastada da burguesia. Foi a guerra que o empurrou para o comunismo?
Sim, foi isso mesmo. Essa parte é muito clara. As memórias que ele escreve quando está na prisão estão cheias de todos os tipos de mentiras e evasivas. Mas um período da sua vida em que a sua voz – penso eu – emerge muito claramente, de forma tocante e honesta, é quando escreve sobre as suas experiências na I Guerra Mundial. E é convincente porque, quando ouvimos outros relatos, por exemplo as cartas de Erich Maria Remarque, encontramos esse mesmo sentimento de que o mundo de antigamente desiludiu a geração mais nova e os mandou para o que chamam ‘o massacre dos inocentes’. O mundo antigo traiu e chacinou a juventude. Muitos sentiram essa raiva – Adolf Hitler foi um deles. Hitler tornou-se nacional-socialista, Sorge e milhares de outros tornaram-se socialistas e comunistas. O que arrastou toda uma geração de jovens desiludidos para estas ideologias foi a guerra.
Quando olhamos para o seu comportamento, Sorge não nos parece de modo algum um idealista. Como podia conciliar o seu gosto pelo luxo e pelos prazeres sensuais com as suas convicções comunistas?
É uma boa questão. Acho que, no fundo, era apenas um hipócrita. Mas não estava sozinho: tinha isso em comum com muitos comunistas que ocupavam altos cargos. Inácio de Loiola percebeu isto muito bem: ‘Os fins justificam os meios’. Segundo essa fórmula jesuítica, pode fazer-se tudo na perseguição da retidão, e isso tem sido o salvo-conduto para todos os hipócritas totalitaristas desde então. A resposta simples é que ele se permitia fazer todas estas coisas porque estava a servir uma causa superior.
Terá escolhido servir uma causa superior para justificar o seu comportamento? [risos] Embora se veja uma diferença entre Sorge e o seu telegrafista, Max Clausen. Max Clausen era um comunista mas também um homem de negócios e decidiu que gostava de comprar casacos de peles para a mulher, de conduzir um Mercedes, de andar vestido com belos fatos, etc. [risos] Era claramente um materialista. Sorge é diferente. Na verdade é um pouco mais complicado. Não é um materialista. Vive muito modestamente nesta pequena casa japonesa, um pouco caótica, e certamente não luxuosa. Mas ao mesmo tempo é um alcoólico incorrigível, um mulherengo, gosta dos salões de dança, de bons restaurantes, etc., etc. Acho que gosta mais de se divertir, não tanto de ser rico. Não há uma diferença enorme, mas não me parece que quisesse enriquecer.
Lembro-me do filme Indiana Jones e o Templo Perdido, que começa em Xangai, 1935, num cabaré. Como era a cidade na década de 1930?
O motivo por que Xangai é um sítio tão interessante – para um historiador, mas também para um romancista ou um cineasta – é que tem uma combinação de três coisas: há dinheiro, é uma cidade internacional, e por último é essencialmente sem lei. Na verdade é um aglomerado de várias cidades, tem a cidade inglesa, onde vive a comunidade internacional, a cidade francesa, a cidade chinesa, e até a japonesa, e diferentes forças policiais. Tornou-se uma enorme encruzilhada para o comércio internacional, mas também se tornou uma encruzilhada para o comércio internacional de informações secretas, um sítio excelente simplesmente porque havia cinco polícias diferentes e não falavam umas com as outras.
De Xangai, Sorge passou para Tóquio. O ambiente no Japão era muito diferente?
Sem dúvida. Temos de ter presente quando falamos do ambiente decadente de Xangai na década de 1930 falamos de estrangeiros a portar-se mal. E basicamente pagando a chineses para os ajudarem a portar-se mal – e alguns chineses ricos, também, mas a maioria dos chineses não eram malcomportados, decadentes, fumadores de ópio, frequentadores de bordéis, jogadores. Não: eram os estrangeiros que se portavam mal. O mundo de expatriados no qual Sorge fazia a sua vida em Tóquio era muito mais reduzido, os japoneses eram muito mais paranoicos em relação aos estrangeiros e aos espiões – mesmo logo no início dos anos 30 havia uma paranoia profunda em relação a espiões estrangeiros. Era um ambiente completamente diferente. Muito mais ameaçador, muito mais vigiado, muito mais organizado. E não era sequer uma colónia. Os japoneses geriam os assuntos japoneses, em especial os assuntos de segurança, com grande eficiência. O que não era o caso na China. A China era um império moribundo, as partes mais bem organizadas da China eram geridas a partir de Londres, é um contraste extremo com a estabilidade e o controlo apertado de Tóquio.
Diz-nos no seu livro que Sorge foi o maior espião russo. Qual foi o seu maior contributo para a União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial?
Qualquer pessoa que saiba o mínimo sobre Sorge sabe uma coisa célebre sobre ele: que foi o homem que avisou Estaline sobre a operação Barbarrossa, a invasão alemã da União Soviética em junho de 1941. E não acreditaram nele. Isso é aquilo que toda a gente sabe. Como eu detalho no livro, ele foi um dos 19 agentes que avisaram Estaline. Não conseguiu que acreditassem nale, mas o que conseguiu, e foi tremendamente importante, foi persuadir Estaline de que os japoneses não iam invadir a União Soviética no verão de 1941. Isso, estrategicamente, foi decisivo porque, como todos sabemos, Hitler perdeu a II Guerra no inverno de 1941 para 1942 às portas de Moscovo. As tropas de Hitler chegam a 12 km de Moscovo, mas não conseguem tomar a cidade. E isso foi tornado possível pelo facto de os soviéticos terem deslocado um grande número de homens e uma grande quantidade de material do Extremo Oriente da União Soviética, onde tinham estado colocados para a eventualidade de uma invasão japonesa. A defesa de Moscovo foi possibilitada por esse conhecimento de que não seriam invadidos na Ásia.
Estaline não deu crédito às informações que lhe chegaram de que Hitler ia invadir a União Soviética. Mas para que serve pagar e manter uma rede de espionagem se depois não se valoriza a informação que ela traz?
Penso que essa é justamente a coisa mais interessante que o meu livro acrescenta à história de Sorge: a história detalhada de como a União Soviética arrancou os seus próprios olhos e ouvidos nos seus serviços de informações no estrangeiro. Nos anos 1930 tinha montado um serviço de espionagem por todo o mundo extremamente profissional e muito vasto, que foi completamente destruído entre 1937 e 1940 pelas sucessivas ondas de paranoia que Estaline tinha lançado, basicamente em nome do poder pessoal. Ao fazer tudo isto para cimentar a sua própria base de poder pessoal, Estaline fragilizou muito profundamente a segurança da URSS.
Como sabemos hoje, em 1938, todos os agentes no estrangeiro foram trazidos ou chamados a Moscovo e cada um dos que regressaram foi executado ou mandado para o gulag. E os que não regressaram foram caçados e mortos, com poucas exceções. A única pessoa que sobrevive é literalmente Richard Sorge. E sobrevive porque aceita regressar, mas não regressa. E é assim que ele escapa. O banho de sangue que Estaline provocou após 1937 com as purgas essencialmente criou um serviço de informações que estava aterrorizado em dizer-lhe alguma coisa que não fosse ao encontro das suas ideias. E isso foi uma coisa incrivelmente estúpida e perigosa de fazer porque, como é óbvio, Estaline estava espetacularmente errado ao partir do princípio de que Hitler não o atacaria. O paradoxo é que têm este agente brilhante que produz alguma da melhor informação na história da espionagem, é mesmo bom naquilo que faz, tem grandes fontes, e essa informação desaparece como água na areia. É isso que faz da história de Sorge uma tragédia.
Sorge era um grande beberrão, um mulherengo, adorava farras. Mas ao mesmo tempo tinha uma biblioteca fantástica de mil volumes sobre a história e a cultura japonesas, e alimentava a pretensão de ser um intelectual dedicado a estudar em reclusão. Ele tinha duas caras?
Ele tinha duas vidas. Ambas estas pessoas existiam dentro dele: o homem que sonhava ser um erudito, entrar na Academia, e o homem que estava viciado no perigo, na bebida, em mulheres e na espionagem.
Acabou por ser apanhado pelos japoneses, mas Moscovo não se deu ao trabalho de tentar libertá-lo. Porquê? Não era suficientemente valioso como espião?
Acho que o riscaram como uma baixa. Não havia qualquer razão prática para o trazer de volta. Não poderia voltar a ser espião em Tóquio, e esse era o seu único valor que tinha para a USSR. O que restava? Honra? Lealdade? São considerações muito abstratas. Em especial porque a instituição dos serviços secretos militares o considerava um agente comprometido, alguém que não é completamente confiável. A instituição é muito insensível e brutal. E no contexto do que tinha acontecido nos anos 1930, mais um cadáver não é nada.
Os japoneses têm fama de serem torturadores requintados… Sorge sofreu às mãos dele?
Os japoneses eram de facto extraordinariamente brutais no tratamento de prisioneiros de guerra aliados. Mas uma das coisas que nos chamam a atenção quando lemos os ficheiros da polícia japonesa, no Japão, são os seus procedimentos bizarramente legalistas. O que não significa que houvesse alguma hipótese de ele ser dado como inocente. Ainda assim, seguiram todas as regras. Acho que há uma razão simples para o terem feito: Sorge era o amigo mais chegado e assistente do embaixador do maior aliado do Japão, a Alemanha.
Diz-nos várias vezes que Sorge era um fanfarrão, um gabarola. Mas no final ele encarou a morte com grande dignidade. Qual deles era o verdadeiro Sorge?
Deve ser dito que na altura em que foi enforcado, estava sóbrio há três anos. [risos] Passou três anos sozinho e sem beber na prisão de Sugamo. Julgo que essa extrema solidão, isolamento e desespero levam uma pessoa a pensar muito na vida. É muito complicado ser-se um fanfarrão quando se está sentado numa cela gelada em Tóquio à espera da morte. A questão, parece-me, é: isso mudou a sua natureza ou revelou a sua natureza? Não sei… Acho que, na verdade, a sua morte revela uma coisa muito profunda nele: toda a sua vida ele considerou-se um soldado da revolução. E morreu como um soldado. Acho que a sua crença fundamental foi o comunismo, nunca deixou de acreditar no comunismo, embora possa ter deixado de acreditar em Estaline. Via-se a si mesmo como um soldado que lutava pela sobrevivência da União Soviética, e considerava-se uma vítima dessa guerra.
Talvez se tenha mantido fiel ao comunismo porque não vivia na União Soviética…
Acho que isso é muito verdade. Embora deva ser dito que não foi por escolha dele. Ele teria ficado satisfeito de ir viver na União Soviética, mas os serviços de espionagem soviéticos tinham outros planos para ele e mandaram-no para Tóquio.
Tal como Sorge, você também viveu em muitos sítios diferentes. Encontra paralelos entre a espionagem e o jornalismo?
É exatamente a mesma profissão. A única diferença é a quem se destina o trabalho. Aliás, muitos dos meus amigos que são correspondentes no estrangeiro estão mais bem informados do que a maioria dos diplomatas e espiões. Os jornalistas também usam fontes confidenciais. E basicamente pedimos a pessoas para revelarem coisas que não têm autorização para revelar ou que são prejudiciais às pessoas ou países para quem trabalham. Os jornalistas também estão constantemente a solicitar pequenas traições…
No início dos anos 90 esteve na Guerra da Bósnia. Por que quis ir para um país em guerra, andava à procura de alguma adrenalina?
Sim. [risos] Basicamente foi por essa a razão. Tinha 22 anos, tinha acabado de sair da universidade, vivia em Budapeste e sim, estava à procura de alguma emoção. E foi emocionante. E depois passei a maior parte da minha carreira jornalística a cobrir guerras. A da Bósnia foi a primeira, depois fui para o Líbano, em 1996, Afeganistão em 97, Chechénia em 2000, Afeganistão em 2001, Norte do Iraque em 2002 e 2003, Afeganistão em 2004, Iraque e Síria em 2005… A última vez que estive na guerra foi em 2014, no Leste da Ucrânia.
Como é que um jornalista se prepara para fazer a cobertura de uma guerra?
Como é que me preparei? Não sei… Para fazermos alguma coisa perigosa temos de estar irracionalmente convencidos de que nada de mal nos vai acontecer.
A sério? Já li o contrário, que os soldados que lidavam melhor com a guerra eram os que davam a vida por perdida…
É capaz de ser bem verdade. Mas deve haver uma diferença entre jornalistas e soldados. [risos] Eu seguramente não tinha qualquer intenção de morrer ou de ser ferido. E também, infantilmente, interiorizei que era invencível.
Viu a guerra de perto?
De muito perto, mesmo. Ainda no outro dia estava a contar aos meus filhos. Estive em situações de combate de proximidade, em que tive de me proteger dos disparos, à volta de vinte vezes. É muito curioso, porque quando a bala passa muito, muito perto de nós, faz um estalido [estala os dedos]. Se passar um bocadinho mais afastada, assobia, zzzzz, zzzzz. Quando a ouves estalar é porque passou mesmo muito perto da tua orelha. Bom, mas tudo isso é passado, hoje sou um homem de família. [risos] Mas acho que foi muito divertido.
A certa altura essa adrenalina torna-se viciante?
Acho que sim. Algumas pessoas viciam-se no perigo, na excitação do combate. Pessoalmente, achei que alguns combates foram eletrizantes, mas a maior parte das vezes eram aterradores e nauseantes. E a tua reação está frequentemente desfasada do verdadeiro perigo. Muitas vezes ficas aterrorizado com uma situação que não é assim tão perigosa e outras vezes não ficas muito assustado com uma situação que é verdadeiramente perigosa. Mas o que para mim foi verdadeiramente viciante foi uma espécie de amour propre profissional, orgulho profissional. Pertencer ao clube.
Quando estás sentado à volta da piscina do hotel Al-Hamra com pessoas lendárias que estão nos píncaros da tua profissão, incrivelmente porreiros, muito experientes, estás lá e eles são os teus pares, estás ao mesmo nível que eles, num sítio superperigoso e excitante. Quando estás no terreno há uma camaradagem extraordinária com os melhores da tua profissão, o que eu considero muito estimulante. Se persigo algum tipo de excelência na vida, não é apenas pela criação em si mas pela oportunidade de estar em pé de igualdade com os melhores do meu tempo.
E sente falta disso?
Não, não havia hipótese de o fazer isso hoje. Acho que seria demasiado lento, demasiado cauteloso e, francamente, não estou interessado. Tens de estar mesmo empenhado para arriscares a vida. E, para ser franco, já não me interessa.
Qual foi o sítio mais perigoso onde esteve?
Em termos dos riscos que corri foi a Chechénia.
De ser atingido, raptado?
Ambos. O conflito na Chechénia foi de uma violência insana. Vi uma grande quantidade de coisas desagradáveis, muitas atrocidades cometidas pelo exército russo. Lembro-me de, em janeiro de 2000, ir para os arredores de Grozny com alguns chechenos pró-Moscovo, fomos para um bloco residencial no limiar da cidade. Os russos estavam a cercar Grozny com 95 mil tropas. Cinco divisões completas. A artilharia de cinco divisões russas a disparar de todos os lados para Grozny. Bombardeiros Sukhoy-24 voavam a baixa altitude e despejavam bombas de 500 quilos. Em Sarajevo, em 1994, 80 detonações por dia era considerado um valor normal. Em Grozny, em janeiro de 2000, havia, sem qualquer exagero, 60 detonações, por minuto. Por minuto. 95 mil soldados a despejar fogo a cada segundo. Foi impressionante testemunhar aquilo.
E há memórias dessas que o assombram?
Nem por isso. Essa experiência não me impediu de voltar para a guerra.