Oh pá, é uma roda!

E note-se como um tal cidadão se entende livre de suportar a crítica, incomodado com a investigação, queixoso por ser vítima de uma absurda perseguição, revoltado por lhe cortarem o futuro político. Chega a fazer da inconsciência naturalidade. 

Fixo-me nesta apreciação porque é contida e vai de encontro ao que considero essencial.
Diz a senhora procuradora-geral da República que compreende a perplexidade com que o despacho de um juiz de instrução é recebido pela generalidade do povo. Percebe-se que há aqui alguma coisa de superlativo, de inusitado, de excecional.

Ninguém se ilude com a complexidade da administração da justiça, com a opacidade do sistema, com o seu fechamento e distância, com a dificuldade do entendimento de conceitos e processos. Mas, imagine-se um caso simples em que um ex-primeiro-ministro vive à tripa-forra, consome, pede e procura rendimentos de amigos, distribui fortunas, inventa heranças, exibe a riqueza depois do exercício do cargo. Alguém compreenderá isto? Em que país? Como?

E note-se como um tal cidadão se entende livre de suportar a crítica, incomodado com a investigação, queixoso por ser vítima de uma absurda perseguição, revoltado por lhe cortarem o futuro político. Chega a fazer da inconsciência naturalidade. E revolta-se contra os invejosos, os mal-intencionados, os opositores, os magistrados, o próprio partido ao qual pertencia.

Confia em quem? Nos seus advogados e na esperança de encontrar um juiz que o compreenda. O momento zen foi atingido. Durante uma boa parte da leitura do despacho o juiz prepara o auditório para o que se segue. Julga o juiz de instrução, julga o Ministério Público. 

Levanta a suspeição sobre a distribuição do processo já depois do pronunciamento do Conselho Superior da Magistratura. Desqualifica a instrução. E, principalmente, enreda-se em cada crime possível num processo de destruição do valor da prova indireta e da afirmação da prescrição. O que as pessoas ouviram foi, repetidamente, que o crime x não foi provado ou que o crime y prescreveu.

Ora, o essencial das razões do juiz perde-se. Um cidadão celebra com outro um pacto, combina receber valores. Quando o pacto é celebrado, diz o juiz, começa a contar a prescrição. Se assim for, os quinze anos vão num fósforo. E se a contagem fizer sentido ser feita de outra maneira? Em cada pagamento haverá ou não a celebração de um novo ato de acordo? Se recusar o recebimento o acordo cai, caso contrário renova-se. Portanto o prazo conta-se em cada um deles e o limite da prescrição prolonga-se.

É isto que está em causa e que a Relação apreciará. Todavia, o mesmo juiz bom não conseguiu conter-se. Admitiu o pronunciamento por vários crimes, descobriu um primeiro-ministro que mercadejou o seu poder, que pagou a outrem a escrita da sua própria tese, por exemplo. Sentindo-se livre de várias acusações, um ex-primeiro-ministro faz a festa. Publica artigos, dá entrevistas, denuncia as teorias da conspiração, promete a continuação da luta e da vingança.

Os portugueses sentem-se aturdidos. Adivinham mais não sei quantos anos de duração do processo. Questionam a Justiça. E, por mais que tentemos, talvez o modo mais simples de lhes explicar tanto quanto acontece seja recorrer, jogo por jogo, à explicação final de um anúncio em voga. Oh pá, é uma roda!