«Fecharam a entrada? Este terreno não costuma estar fechado! Espere um segundo, vou tirar aquilo dali [um sinal de proibição amovível no meio de um caminho de terra batida] e já podemos passar…». O corpo de José Luiz Bautista já não lhe obedece como antigamente, mas as memórias que este homem carrega há mais de meio século dão-lhe forças suficientes para ultrapassar os obstáculos e nos guiar entre montes e giestas que nos picam as pernas. «Foi por aqui, foi por aqui…», murmura entredentes, numa voz ansiosa que lhe sai meio em castelhano meio em português (essa língua que vai sobrevivendo por Olivença).
A procura faz-se breve. Num pequeno círculo desbastado, José Luiz Bautista finca bem os pés no chão e, com o tronco gordo a baloiçar ao vento, num movimento instável e lento – que nos parece eterno –, estica a bengala que lhe serve de perna extra e aponta em direção à clareira que olha de frente. Antes de continuar, aguça a vista por um segundo. E solta por fim em tom solene: «Foi este o local onde mataram aquele general português importante».
José Luiz Bautista, ou melhor, Luís Batista (como no original oliventino), de 72 anos, refere-se a Humberto Delgado, assassinado precisamente naquele local no dia 13 de fevereiro de 1965, às mãos de uma brigada da PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado], polícia política do Estado Novo, chefiada por António Rosa Casaco e composta pelos agentes Ernesto Lopes Ramos, Agostinho Tienza e Casimiro Monteiro, este último figura sinistra do regime e protagonista de um sem número de desventuras nas colónias portuguesas ultramarinas (ver páginas 20 a 23) – assim concluiu na altura a investigação da polícia espanhola e concluem hoje quase todos os historiadores que se dedicaram ao tema.
Cilada em Los Almerines
Estamos em Los Almerines, uma propriedade agrícola privada, na povoação de San Rafael, às portas de Olivença, encostada à estrada que segue para Badajoz. Como outros projetos feitos à época, San Rafael não passa de um conjunto de casas brancas plantadas sem alma por Francisco Franco nos anos 1950, com o objetivo estatal de povoar com mão-de-obra os campos das regiões do interior da Estremadura espanhola.
Nascido em 1948, José Luiz Bautista, então com 17 anos, era também ele trabalhador agrícola. Sem esperar pelas perguntas, fala-nos ao jeito de lenda local do ‘General Sem Medo’ «que lutou contra a ditadura portuguesa» e naqueles finais de abril, princípios de maio agitados «com muitos carros e homens» a perturbarem a pacatez de uma povoação que pouco mais sabia do que viver com as cabeças enfiadas na terra e a terra carregada nos ombros: «Lembro-me como se fosse hoje», garante.
«A minha família era dona daquele terreno [aponta com o bastão], são menos de cem metros daqui… Um dia apareceram por aí uns homens, manhã cedo, mas eu, como habitualmente, já estava a trabalhar no campo. Parei, claro, quando vi aqueles carros a aproximarem-se. Pararam nesta zona [desenha um semicírculo imaginário com a bengala], e depois andaram por aqui algumas vezes, a ver os terrenos, a falar com as pessoas… Só mais tarde é que soubemos que era a polícia a investigar uma morte, um assassinato. E só mais tarde o povo começou a falar sobre os portugueses e sobre o general…», recorda.
José Luiz Bautista e a sua família também foram ouvidos pelas autoridades, mas, como quase todos em San Rafael, ninguém tinha visto ou escutado nada. «A polícia falou com as pessoas da vila, perguntaram também aos meus pais e a mim, porque o nosso terreno era mesmo aqui ao lado, está a ver [volta a apontar]? Hoje ainda penso nisso: trabalhava ali todos os dias, de manhã à noite, com vista para o sítio onde mataram o general…». E a sua secretária, interrompemos. «Sim, uma mulher». Arajaryr Campos, esclarecemos. «Duas pessoas» [estica indicador e médio da mão esquerda enquanto abana a cabeça]. «Lamento, lamento… Andávamos por aqui, na nossa vida, tão perto… E não me apercebi de nada, verdade?», lamenta quase envergonhado.
Mas se o nosso anfitrião e guia não se apercebeu de nada, alguns dos seus conterrâneos, por sua vez, revelaram-se decisivos para esclarecer o caso. Um jovem pastor chamado Marcelino Balanza tinha avistado no dia do crime um grupo de homens junto a dois automóveis. Passou ao largo, mas nas horas que se seguiram não deixou de matutar nas razões que levariam aqueles estranhos a estarem parados naquele sítio, àquela hora, quando nada ali havia para fazer ou acontecer. No dia seguinte regressou, mas, desta vez, meteu por outro caminho conduzido por um sexto sentido, farejando o local: encontraria um rasto de sangue e um objeto que lhe parecia ser uma bala.
Espavorido, não fez caso junto das autoridades, mas correu logo a contar tudo ao amigo Casimiro Medina, que morava perto. Medina, ele próprio, não segurou a curiosidade e deu ‘corda aos sapatos’ para fazer a sua própria inquirição. Em Los Almerines, descobriria três balas por disparar e mais dois cartuchos, pistas que, mais tarde, se tornariam fundamentais para a investigação solucionar o que se passara.
Assim como o testemunho de outro agricultor que, no mesmo dia, garantiria ter ouvido um disparo proveniente dali, quando seguia no seu trator a caminho do trabalho – sem o saber, o povo de San Rafael tornava-se assim protagonista involuntário do principal atentado contra um opositor da ditadura do Estado Novo e de Salazar.
Corpos a 40 quilómetros
Passaram-se dois meses e meio para que a investigação chegasse a San Rafael. Alheado do alvoroço na imprensa internacional assim que fora divulgado o desaparecimento (e possível morte) de Humberto Delgado – um alerta dado em conferência de imprensa no dia 23 de fevereiro por Henrique Cerqueira, amigo e seu representante em Marrocos (cumprindo o combinado entre ambos caso o general não desse notícias ao fim de dez dias) – José Luiz Bautista (assim como Casimiro Medina, Marcelino Balanza e o agricultor anónimo do trator) continuava a viver a vida da única maneira que o sabia: de enxada numas mãos rugosas, e ao ritmo do ribeiro que, a dois passos, segue suave a perder de vista em curvas e contracurvas.
Os corpos dos desaparecidos Humberto Delgado, 58 anos, e Arajaryr Campos, 29 anos, foram encontrados por acaso no dia 24 de abril de 1965 – faz este sábado 56 anos –, por dois adolescentes, José Feijó e José Felipe Porras, que andavam aos pássaros com um cão que, no entusiasmo da caçada, pôs a descoberto uma caveira humana. As vítimas, em avançado estado de decomposição, repousavam sob cal, paus, folhagens e terra remexida numa zona de mato conhecida por Los Malos Pasos, próxima de Villanueva del Fresno (quarenta quilómetros a sul de Olivença) – a exumação foi o primeiro passo para se fazer luz sobre os acontecimentos.
A investigação espanhola
As autoridades espanholas não pouparam esforços e recursos para solucionarem o caso. A atenção mediática internacional dada ao crime não convinha a Franco, que dispensava culpas sem proveito, numa altura em que a imagem pública do seu regime já se encontrava suficientemente manchada junto das democracias ocidentais.
Enquanto nos corredores do poder em Lisboa a notícia das mortes causava comichões, em Madrid a ordem era para esclarecer tudo e o mais rapidamente possível. E assim foi.
A investigação chegou a conclusões: a identidade das vítimas; o nome dos homens da PIDE; as circunstâncias como atravessaram a fronteira; os carros utilizados; o plano para atrair o general (da Argélia onde estava exilado) para uma suposta reunião em Badajoz com oficiais portugueses decididos a derrubar Salazar; o local do crime; e a forma como o general e a sua secretária morreram. «Ah, então descobriram tudo! Ainda bem, ainda bem… E os que mataram o general ficaram presos muito tempo?», pergunta-nos José Luiz Bautista. A resposta damo-la, embora, neste caso, somos nós que parecemos envergonhados.
‘Estou mudado’
Militar, político, ativista. O capítulo final da vida do general (a melhor parte da sua obra) começou a escrever-se muito antes de 13 de fevereiro de 1965. O homem que participou ativamente no golpe de Estado de 28 de maio de 1926; que via no Estado Novo e em Salazar a solução para o país; líder da Aeronáutica Civil e fundador da TAP; adido em Washington e membro da NATO foi-se reconstruindo de dentro para fora, até se tornar gradualmente, aos olhos das autoridades, no principal inimigo do regime. «Estou mudado», terá confessado Delgado aos mais íntimos – e sem precisar de fazer nada, escolheu antes arriscar a perder tudo (incluindo a própria vida).
Frederico Delgado Rosa recorda ao Nascer do SOL o homem que não chegou a conhecer (nasceu em 1969), mas que o acompanha de perto desde sempre. E a mudança que se operou nele: «Um dos mitos em torno de Humberto Delgado consiste em dizer que foi nos Estados Unidos, onde viveu nos anos 1950, que ele abriu os olhos para a democracia. Isso não corresponde à verdade. Ele já estava em rota de colisão com o regime muito antes disso».
O biógrafo e neto de Humberto Delgado localiza na década de 1950 o ‘ponto de viragem’, manifestado numa vontade férrea de mudança e ação: «Ao regressar dos Estados Unidos em 1957, ele esperava assumir uma posição de comando que lhe permitisse cumprir o seu dever patriótico como general, ou seja, fazer um golpe militar para derrubar o regime. Mas Marcelo Caetano soou o alarme e Humberto Delgado foi uma vez mais encaminhado para a aviação civil. Quando Henrique Galvão [amigo que partilhava os ideais e, em 1961, protagonizou o assalto ao Santa Maria] lhe sugeriu candidatar-se à Presidência da República, Humberto Delgado caiu das ‘nuvens’, nunca pensara em tal. Aceitou, mas nunca abandonou a ideia de uma revolta militar, a solução em que verdadeiramente acreditava. Proibido de usar o seu uniforme de general, levava-o no porta-bagagens para o ‘dia D’, que deveria ter ocorrido em 2 de junho de 1958, em plena campanha eleitoral, se os oficiais envolvidos não tivessem sido denunciados. Um ‘25 de abril’ com dezasseis anos de antecedência», conta.
Se, por um lado, será o ‘renascimento’ do general a ditar-lhe a pena de morte, por outro, será também ele a elevá-lo à imortalidade (e ao Panteão Nacional). E o que vale, hoje, o seu legado? Frederico Delgado Rosa, escritor, argumentista, professor de Antropologia na Universidade Nova de Lisboa e neto do general responde: «Humberto Delgado encarna a grandeza moral e a coragem que devem nortear a ação política na defesa da justiça social e da liberdade, valores universais pelos quais deu a vida e que não são uma conquista definitiva do ‘25 de Abril de 1974’, mas algo por que é necessário continuar a lutar em permanência no plano nacional e internacional».
Mentiras e impunidade
Regressamos a casa rememorando a conversa e o passeio com José Luiz Bautista. Não, José. Ninguém ficou preso muito tempo, respondemos-lhe na despedida.
No banco dos réus do Tribunal de Santa Clara sentaram-se Fernando Silva Pais, Barbieri Cardoso e Pereira de Carvalho, responsáveis máximos da PIDE, mais os restantes membros da brigada.
Entre 1974 e 1977, as fases de inquérito e instrução ignorariam sucessivamente os factos apurados pela investigação espanhola, valorizando o testemunho dos réus, ignorando a própria autópsia realizada do outro lado da fronteira. A versão dada como certa pelos juízes dizia tudo não ter passado de uma operação policial para deter o general, mas que correra mal devido ao ímpeto assassino de Casimiro Monteiro, escondido na África do Sul após a ‘revolução dos cravos’, que abrira fogo contra Humberto Delgado e Arajaryr Campos «de forma impulsiva e imprevista».
Foi, aliás, esta alteração dos factos que alimentou mitos e lendas sobre um dos mais importantes episódios da história contemporânea portuguesa. E foi precisamente isso que levou Fernando Delgado Rosa a debruçar-se sobre o homem que até aí não passara de um rosto preso às molduras espalhadas pela casa da família. «Quando me apercebi da enorme mentira construída em torno da morte do meu avô, enraizada há décadas no consciente coletivo português, passei a noite a vomitar», diz.
Frederico Delgado Rosa lançou o livro Humberto Delgado – Biografia do General Sem Medo e participou na produção do filme inspirado na obra Operação Outono de Bruno de Almeida (como coautor do argumento), onde se conta a versão que considera mais próxima da realidade. O neto do general não tem dúvidas de que «Humberto Delgado não foi assassinado a tiro, mas por sucessivas e violentas contusões cranianas, é um facto histórico comprovado pelas perícias médico-legais realizadas em Espanha após a descoberta do seu cadáver e de Arajaryr Campos. É também um facto indesmentível que o julgamento dos ‘pides’ descartou essas provas e distorceu a verdade material do crime, atribuindo o assassinato a um disparo por arma de fogo. Procedi a uma reconstituição exata do embate entre a brigada da PIDE e Humberto Delgado que penso estar muito próxima da verdade histórica».
Em 27 de julho de 1981, o acórdão do Tribunal de Santa Clara condenou Casimiro Monteiro por homicídio, pois «apenas ele matou a tiro o general Humberto Delgado e Arajaryr Campos, disparando sobre eles e causando-lhes lesões, que foram causa necessária das suas mortes». Os restantes arguidos safaram-se com crimes menores: Silva Pais tinha, entretanto, morrido; Barbieri Cardoso e Rosa Casaco foram condenados pelo crimes de falsificação; e Ernesto Lopes Ramos e Agostinho Tienza pelo uso de identidade falsa. Pereira de Carvalho foi absolvido. «O julgamento foi uma farsa, durante a qual os juízes deliberadamente construíram uma tese falsa, segundo a qual Casimiro Monteiro, autor material do crime, foi também o seu único autor moral. A tese do disparo único e impulsivo, em desobediência às ordens superiores, foi a forma encontrada pelos juízes para ilibar os responsáveis pelo assassinato, nomeadamente a hierarquia superior da PIDE e, obviamente, Salazar», conclui o familiar do general.