Por António Prôa
Em Lisboa havia um quarteirão dos ingleses. Assumido. Identificado. Agora será mais um quarteirão qualquer. Quase.
Lisboa é, também, a sua história, a sua identidade, quem a construiu, quem a desenvolveu, as pessoas – as de cá e as que vieram e se tornaram de cá. É tudo isto, também, o dito quarteirão inglês. Desvalorizar esta realidade é desrespeitar a cidade. Não tem de ficar tudo igual, mas não se deve ignorar a identidade de cada espaço.
A designação do quarteirão entre a Rua Saraiva de Carvalho, a Rua da Estrela e a Rua de São Jorge (cujo topónimo não é ao acaso) como ‘quarteirão dos ingleses’ deriva do seu uso e dos seus utilizadores. O Hospital Britânico, o Royal British Club, a igreja anglicana de São Jorge (santo padroeiro ou patrono de Inglaterra), a antiga residência do respetivo pastor anglicano, a companhia de teatro inglesa e ainda o cemitério dos ingleses concentravam-se neste quarteirão.
A origem deste ‘quarteirão dos ingleses’ remonta ao século XVII com a implantação do cemitério para protestantes e depois, no século XVIII, com a cedência de um terreno mais alargado, pelo Estado Português, para usufruto da comunidade inglesa.
A comunidade inglesa tinha então relevância na cidade de Lisboa e concentrava-se nas zonas da Estrela, de Santos e de São Bento (são várias as referências inglesas dispersas por estas zonas) e a cedência deste quarteirão permitiu reunir vários equipamentos utilizados pelos ingleses residentes na capital.
Pelo caminho, a comunidade judaica que regressou a Portugal no século XIX, após a expulsão na época da inquisição, com origem, entre outras, em Gibraltar (colónia inglesa), com fortes ligações à comunidade britânica e com ritual não católico, encontrou numa secção do cemitério inglês, as condições para o enterro dos mortos segundo os seus rituais.
Este não é um qualquer quarteirão indiferenciado de Lisboa. Tem associado história, cultura e é expressão da multiculturalidade e testemunho do sentido cosmopolita da cidade.
Para além do cemitério inglês, do primeiro cemitério judaico de Lisboa (que resulta de uma secção original do cemitério inglês) e da igreja anglicana de São Jorge, todos os demais edifícios foram perdendo o seu uso original, sendo o mais recente caso o do teatro da companhia inglesa Estrela Hall que foi despejada.
Entretanto, o Estado britânico adquiriu, por usucapião, recentemente (já neste século), aquele terreno que tinha sido cedido pelo Estado Português e pouco tempo depois decide aliená-lo a privados, assegurando a mudança de uso do teatro, bem como o despejo de todos os restantes ocupantes.
Mesmo respeitando a lei e os direitos legítimos do privado adquirente dos terrenos, o património histórico e identitário deveriam ter conduzido a uma atitude diferente do Estado britânico, mas, especialmente, da Câmara de Lisboa. Este caso não deveria ter sido tratado como um mero negócio privado, porque este não é um qualquer quarteirão indiferenciado da cidade.
No mínimo, esta alteração de uso e a intervenção urbanística prevista, tendo em conta a história, a identidade, a proximidade de um cemitério histórico e as alterações de uso, impunham a discussão pública desta profunda modificação. Mas, na verdade, a Câmara Municipal de Lisboa, precisamente pelas características deste espaço, deveria ter utilizado todos os instrumentos legais e de influência para salvaguardar a identidade daquele local. Infelizmente preferiu tratar aquele quarteirão como outro qualquer. Esse foi o erro. Não basta manter (mais ou menos) as fachadas. Tal corresponde a admitir uma história, uma cultura e uma identidade de fachada.