Madrid. Ayuso abala Espanha

Face ao sucesso eleitoral da líder de Madrid, o principal partido da oposição pode seguir o rumo de contestar mais as medidas sanitárias.

Com o levantar do estado de emergência em Espanha, este domingo, várias comunidades autonómicas, preocupadas com o alastrar da covid-19, tentam desesperadamente manter as suas restrições sem essa cobertura jurídica. Já em Madrid, onde Isabel Díaz Ayuso, estrela em ascensão do Partido Popular, obteve uma estrondosa vitória nas eleições de terça-feira, a decisão foi levantar imediatamente as restrições, permitindo convívios dentro de casa e alargando até à meia noite o horário da restauração. Isto quando é a segunda comunidade com maior incidência do vírus no país, com 324 casos por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias – em Lisboa, por comparação, foram 67.

Ayuso faz jus a uma campanha em que cavalgou o cansaço da população face à pandemia, acusando as medidas sanitárias do Governo de Pedro Sánchez de ser excessivas, definindo a escolha dos madrilenos como entre «comunismo ou liberdade». E fê-lo com um sucesso que abalou a política nacional.

Aliás, o próprio líder do PP, Pablo Casado, em reunião com os barões do maior partido da oposição espanhola, fez questão de prometer «seguir esse mesmo caminho» traçado por Ayuso, avançou o El Mundo, realçando o quão essencial é manter «o Partido Popular completo, unido» – talvez porque o sucesso de Ayuso, uma antiga protegida de Casado que lhe roubou palco, brandindo o poder do Executivo madrileno contra o Governo de Pedro Sánchez, gerou logo rumores de uma eventual corrida à liderança.

De facto, é difícil sobrestimar a escala da vitória do PP na capital, após Ayuso tomar a súbita – e arriscada – decisão de correr com os parceiros que lhe permitiram formar Executivo em 2019, o Ciudadanos, invocando como motivo uma disputa na pequena comunidade autónoma de Murcia, no sul, e convocando novas eleições.

O resultado foi duplicar a representação do PP na Assembleia da Comunidade de Madrid, passando de 30 para 65 dos 136 lugares, assegurando uma maioria a Ayuso, mediante a abstenção dos 14 deputados do Vox – mas o partido de extrema-direita até ofereceu o seu voto a favor à formação de um Executivo da dirigente popular.

Tal foi a alegria do Vox com a vitória de Ayuso – que garantiu que «o sanchismo não entra nunca mais em Madrid» – que o apoio surgiu sem sequer a exigência de integrar o Executivo.

No entanto, a dirigente popular, que ganhou o estatuto de quase pop star à direita, fez questão de abrir portas a essa possibilidade – «Quero os melhores, venham de onde vierem», respondeu, questionada se o seu Executivo seria monocolor. «Tive vereadores do Ciudadanos que valeram a pena, e, se os encontrar no Vox, contarei com eles» – sem grandes contemplações.

Isto embora esse cenário representasse «uma rutura com tudo o que foi a história da democracia, desde a transição, nos anos 70», alerta a politóloga Pilar Mera Costas, ao Nascer do SOL. «A extrema-direita desapareceu com as eleições nesse período, só conseguiu um deputado, não voltou a ter peso até agora».

Já o Ciudadanos desapareceu do mapa, perdendo todos os seus 26 deputados, enquanto a esquerda era esmagada. O PSOE ficou com menos 13 lugares em Madrid, os seus colegas de Governo, o Unidas Podemos, ganharam uns míseros três deputados, e o Más Madrid, fundado por Íñigo Errejón, dirigente histórico do Podemos, arrancou outros quatro.

Face à calamidade eleitoral, o fundador do Unidas Podemos, Pablo Iglesias, afastou-se da política – «não vou ser um tampão para a renovação de lideranças que se tem de produzir na nossa força política», prometeu – e o candidato do PSOE a Madrid, Ángel Gabilondo, até deu entrada no hospital, esta quinta-feira, devido a uma arritmia cardíaca. «Temos de evitar viver numa sociedade onde tudo é agitação e tensão», apelou o dirigente socialista, logo após ter alta, renunciado ao seu cargo de deputado madrileno.

É que, caso Gabilondo tivesse voltado à vida partidária, teria encontrado um cenário bem tenso. No seio do PSOE pede-se «uma reflexão interna» após os resultados de Madrid, nas palavras do seu líder histórico, Felipe González, ao Canal Extremadura Radio, enquanto Sánchez, fragilizado, fugia de perguntas sobre o assunto, numa cimeira europeia no Porto, esta sexta-feira. E já se vê Susana Díaz – a principal rival interna de Sánchez, que conseguiu apoio de González mesmo após perder a Andaluzia, bastião do PSOE, para uma coligação de PP e Ciudadanos, apoiada pelo Vox – a distanciar-se do primeiro-ministro nas primárias socialistas para as autárquicas na Andaluzia.

Já entre os populares, a sensação é de êxtase, o ‘fenómeno Ayuso’ seduziu mesmo o mais persistente – e perigoso – adversário interno de Casado, o poderoso barão da Galiza, Alberto Núñez Feijóo. Que até apelou a «uma leitura nacional» do seu «sucesso eleitoral rotunda, irrevogável e inquestionável» em Madrid, à Efe.

 

‘À madrilena, também é nacionalismo’

Afinal, o que é esse tal ‘fenómeno Ayuso’ que conquistou a capital? Olhando para o mapa eleitoral, dá para perceber que parte chave do sucesso foi a erosão do chamado «cinturão vermelho» a sul de Madrid, em municípios como Getafe, Leganés, Parla, Fuenlabrada e Alcorcón. Sim, continuaram a votar maioritariamente à esquerda, mas o discurso contra o confinamento de Ayuso claramente tocou num nervo entre a população.

«Poder sair, ir aos bares, reunires-te com os amigos…», enumerou Óscar Zafra, um rapaz de 18 anos, morador de Fuenlabrada. Até se identifica como de centro-esquerda, talvez até de esquerda, mas deu o seu primeiro voto ao PP. «Não sei, não é que entenda muito, sou um miúdo, mas Ayuso foi a que mais me convenceu», explicou, ao El País.

Agora, se esse apelo do PP de Ayuso funcionará no resto do país já é outra questão. Madrid conta com um contexto social bem particular, com o mais alto rendimento per capita nacional, e uma elite profundamente conservadora, mas também com bairros pobres e historicamente rebeldes, como Vallecas. De facto, muito do discurso de Ayuso, além da crítica de que restrições sanitárias são um ataque à liberdade individual, ou sua a defesa da diminuição de impostos, gira à volta da excecionalidade da capital – algo que provavelmente não cairá muito bem no resto de Espanha.

«À madrilena, também é nacionalismo», queixava-se a politóloga Nieves Lagares, num artigo de opinião no La Voz de Galicia, vendo no populismo de Ayuso a construção de «uma nova identidade para Madrid» , que «tanto lhe serviu para fazer da gestão da pandemia um continuo desafio ao Governo de Sánchez, como para olhar na direção da extrema-direita com ar de democrata sem corar».

Perante a campanha de Ayuso, que chegou a ser comparada à campanha populista de Donald Trump nos EUA, os habitantes de Madrid, viram-se perante uma escolha complicada, entre arriscar o alastrar da covid-19, por falta de restrições, ou o sufocar da economia, devido a estas. No fundo, a promessa da dirigente do PP era contar com a «prudência e responsabilidade individual» em vez de imposições estatais, como explicou Enrique Ruiz Escudero, do Executivo madrileno para a Saúde, esta semana.

Só o tempo dirá se os madrilenos tomaram a escolha acertada. Contudo, agora, talvez muitos se questionem se as restrições impostas pelo Governo de Sánchez, a nível nacional, não deviam ter sido até mais estritas – face ao nível de contágios em Espanha, que registou quase 8 mil casos na quinta-feira, mais de 1700 deles em Madrid, o país já foi tirado da lista de corredores de viagem do Reino Unido. Arriscando desgraçar ainda mais o setor turístico, se a situação se mantiver.