por Henrique Pinto de Mesquita
Podemos gostar de coisas de que não percebamos patavina. Podemos até amá-las. O termo ‘amador’ é, normalmente, utilizado no sentido pejorativo. Alguém ‘amador’ em algo é alguém fraco ‘nisso’ ou alguém que não faça desse ‘isso’ profissão. Mas – eureka! – não só. Uma vez, quando estava a aprender francês, deparei-me com a palavra «amateur». Tal como um burro a olhar para um palácio (já agora, de onde virá isto?), reparei, pela primeira vez, no verdadeiro significado da palavra: um «amador» é alguém que ama. Naturalmente, no meu cérebro, o significado da palavra acabava de se trifurcar.
É no seguimento desta introdução (que trouxe apenas no intuito de arrumar com os puristas) que suplanto a seguinte afirmação: sou um amador de música. Não sei tocar nenhum instrumento. O máximo que sei tocar é o início da Enola Gay no piano (serve para fingir devido à sua aleatoriedade – alguém que apenas saiba tocar os «parabéns» fica claramente atrás e é logo detetado que apenas sabe essa canção). Não percebo rigorosamente nada de música. Sei lá se os Pink Floyd pioraram depois da saída do Syd Barrett. Sabia lá que o Ian Curtis dos Joy Division se havia suicidado. Só sei que o MEC escreveu sobre os CDs deles e que o Wagner era antissemita (como quase todos os intelectuais da época na Alemanha). Não sei distinguir um ré de um fá. Ainda não percebi, sequer, para que serve o pedal do piano. Não consigo ter uma conversa erudita em que explique o surgimento do prog rock. Contudo, sou um amador de música no verdadeiro sentido da palavra. Isto é: amo música e – todos a bordo no trenó do cliché – não vivo sem ela.
Ultrapassado o mea culpa necessário que se impõe a alguém que, não percebendo nada de música, esteja a escrever sobre a dita, vamos ao que interessa: estou muito contente que os espetáculos tenham reaberto. Sendo amador de música (ainda me custa escrever isto), poderei agora continuar a saciar a minha vontade de a ver ao vivo. Na semana que passou fui matar saudades de tal e, curiosamente, vi o último artista que havia visto antes de tudo isto fechar: Samuel Úria.
Em novembro vi-o no Festival para Gente Sentada, no Theatro Circo em Braga. Agora vi-o no Círculo Católico de Operários do Porto. Em ambos apresentou o seu último álbum: Canções do pós-guerra. Desta vez, a solo, numa versão mais acústica e intimista. Da outra vez, com banda, numa versão mais elétrica e dançável. Gostei mais em novembro. Não obstante, o Porto confirmou que Úria tem o jogo de anca mais bonito de Portugal – é, de facto, a Shakira portuguesa com o twist das patilhas. Apresentou-se muito doce e divertido. Sempre geek: desde harmónicas indianas a aparelhos Casio e iPods a fazerem as batidas da música. Úria vale sempre a pena. Costumo dizer que a sua canção Lenço Enxuto é o poema mais bonito escrito em português no século XXI. Ele protagoniza o lobo solitário sensível, culto e pensativo. Tem bom sentido estético e de humor. As patilhas e guarda-roupa dizem-nos que já não sofre com os existencialismos naturais à inteligência que coloca nas suas letras. O jogo de anca confiante e desconcertante diz-nos que já não tem muita sopa para comer: já está num patamar distinto e dança conforme. E que bem que está. E que bem que dança.
Foi Úria: a dar música a tantos que, mesmo nada percebendo sobre o assunto, conseguem ser seus amadores. Eu entendo: com Úria fica mais fácil.
Guimarães, 13 de maio de 2021