A crise pandémica obrigou o clube europeu a mexer-se em duas direções complementares.
Por um lado foi necessário desenhar o esboço dum ambicioso plano de ajuda financeira que permitisse, não apenas recuperar a riqueza perdida com a pandemia, mas, sobretudo, lançar um novo modelo de economia europeia, assente nas transições climática e digital.
Por outro lado, foi indispensável construir uma união de facto dos estados membros, para, aproveitando os surpreendentes avanços da ciência, elaborar uma política comum de aquisição e utilização com sucesso das vacinas entretanto colocadas nos mercados.
Apesar de alguma eficácia verificada nos últimos meses, ficou claro que, neste domínio, o objetivo da Comissão ficou muito aquém do que se pretendia, quer no que diz respeito à aquisição das vacinas mais convenientes, mas também no definição das melhores regras para a sua distribuição e, nomeadamente, na definição dos melhores critérios para a sua aplicação.
Ora tudo isto somado produziu muito desconforto e descrédito junto dos cidadãos europeus e estimulou estratégias egoístas dos governos nacionais.
Com efeito, é agora muito difícil encontrar dois estados membros da União Europeia que utilizem os mesmos critérios e a mesma ponderação na utilização das vacinas disponíveis e começa a ser normal assistir, por parte dos países mais desenvolvidos, ao exercício de uma certa diplomacia sanitária que é, naturalmente o contrário de uma consistente e solidária política comum.
Relativamente à construção de um pacote de ajuda financeira para os estados membros, quer sob a forma de subsidiação, quer através de empréstimos, incluindo na definição dessa ajuda, não apenas o pacote de recuperação e resiliência, mas também o novo quadro comunitário de apoio e as ajudas da Comissão e do BEI à manutenção do emprego e à recapitalização das empresas, pode afirmar-se que as coisas começaram, surpreendentemente, muito bem.
Com efeito tudo foi alavancado com a quebra de dois tabus que, antes da pandemia, pareciam absolutamente inultrapassáveis.
O primeiro tabu a cair tinha a ver com a necessidade de aumentar a capacidade orçamental da União, alterando-a dos habituais e insuficientes níveis – na prática menos de 1% do RNB da União h para uns ‘generosos’ dois por cento, com a garantia de que esse acréscimo não implicaria um esforço acrescido dos contribuintes líquidos (antes pelo contrário), devendo resultar, exclusivamente, do aumento de receitas próprias, obtidas através da criação de impostos específicos sobre as digitais, sobre algumas transações financeiras e sobre as indústrias poluidoras.
O segundo tabu derrubado era ainda mais difícil, pois implicava o abandono, ainda que provisório, por parte de muitos dos estados membros, do princípio de recusa de qualquer responsabilidade coletiva na emissão de dívida europeia (em termos simplistas eurobonds ou instrumentos próximos), sendo claro que essa emissão de dívida era absolutamente indispensável para financiar o ambicioso plano de recuperação económica e social, mas também de reestruturação e modernização.
Neste domínio e com as vicissitudes que foram sendo conhecidas e os obstáculos que foram e ainda terão de ser ultrapassados, pode concluir-se que a prova foi superada e muito desse êxito fica a dever-se à capacidade, à persistência e ao empenho da chanceler Merkel que aproveitou a presidência semestral da Alemanha e a sua liderança política europeia para tornar dificilmente reversíveis a maioria dos compromissos já assumidos.
Não será assim, por ausência de vontade política, digamos estrutural, que bastantes meses após ter sido conseguido o entendimento essencial, tudo pareça permanecer estranhamente estagnado, e as ajudas financeiras a serem permanentemente adiadas para o dia seguinte.
Como referia, recentemente, António José Seguro, faltam hoje na União Europeia (com a exceção da chanceler Merkel, que aliás está de saída) líderes da dimensão dos fundadores ou dos históricos continuadores do projeto europeu e essa falta poderá ser muito perigosa num futuro próximo.
Nenhum dos atuais líderes das três instituições europeias tem essa dimensão, independentemente das capacidades pessoais que possuem, porque o processo da sua escolha (eleição?!) teve mais a ver com equilíbrios entre grupos, dinâmicas regionais e políticas de género, do que com a indispensável adequação da pessoa à função a desempenhar.
A exceção poderia ser a atual presidente da Comissão, mas já deu para perceber que não será.
A UE está, pois num tempo de expectativa e algumas incertezas o que torna difícil desenvolver projetos alternativos (no domínio social, nas relações exteriores, nos tratados comerciais e, em especial, na imposição do respeito pela democracia liberal) que dariam à União o suplemento de alma indispensável para tirar total proveito da enorme capacidade financeira que se prepara para colocar ao serviço dos seus membros.
Só que para isso são precisos verdadeiros líderes e com o abandono de Merkel, restam para já Macron, limitado pela relativa fragilidade que revela no plano nacional e Draghi, que tendo todas as características de um líder de exceção é prisioneiro de um sistema político (o italiano) completamente imprevisível e autofágico.