Se os opositores do Presidente Alexander Lukashenko, mais conhecido como o último ditador da Europa, já viviam aterrorizados dentro da Bielorrússia, agora mesmo aqueles que escaparam, exilando-se no estrangeiro, sabem que têm motivos para temer pela sua vida e liberdade. Com o desvio de um voo da Ryanair, entre a Grécia e a Lituânia, na semana passada, culminando com a captura de um blogger crítico do regime e da sua namorada, Lukashenko mostrou que a sua mão é mais longa do que seria de imaginar. Ainda que isso tenha custado o apertar das sanções internacionais e acusações de «terrorismo de Estado», nas palavras do primeiro-ministro António Costa. Mas o ditador bielorrusso conta com o apoio do Kremlin para dar a volta ao isolamento.
Na capital lituana, Vilnius, que nos últimos meses de revolta contra Lukashenko – após as presidenciais de agosto, que galvanizaram a oposição como nunca, e foram amplamente consideradas fraudulentas – se tornou um porto de abrigo para milhares de ativistas bielorrussos, o medo sente-se com particular intensidade.
«Fui refém do regime de Lukashenko, mas agora toda a União Europeia está na mesma situação», desabafou Viachka Krasulin. As histórias que este músico bielorrusso, de 32 anos, contou ao Los Angeles Times são de arrepiar. Antes de escapar para a Lituânia, Krasulin diz ter sido brutalmente espancado pela polícia, pelo ‘crime’ de participar num protesto contra o regime, entre ameaças de o sodomizarem com um cassetete.
Krasulin ainda arriscou fazer queixa por abusos policiais. Mas, quando se apercebeu que a investigação aberta, em vez de visar os agentes, o visou a ele, pôs-se em fuga. Pensava estar seguro, mas «a tortura, brutal repressão e a caça aos jornalistas derramou-se além das fronteiras bielorrussas», lamentou o músico. «E tornou-se um problema para toda a Europa».
A União Europeia, que há muito se mostra desconfortável com o seu vizinho, parece concordar com essa análise. Menos de 24h depois do desvio do avião da Ryanair, foram impostas uma série de sanções económicas – incluindo um bloqueio às indústrias petroquímica e de produção de fertilizantes, exportações bielorrussas cruciais, que segundo o Moscow Times renderam quase mil milhões de euros ao país no ano passado – e restrições ao tráfego aéreo na Bielorrússia, proibindo as suas aeronaves de entrar no espaço europeu e recomendando às companhias sediadas na UE que evitem o país.
Já a Rússia retaliou pelo seu velho aliado, impedindo aviões europeus de aterrar no aeroporto de Moscovo. Talvez tenha sido um pequeno gesto de boa vontade para com Lukashenko, que se dirigia a Sochi, esta sexta-feira, para se encontrar com o Presidente russo, Vladimir Putin.
Por mais que o Kremlin seja muitas vezes descrito como o bonecreiro por trás do regime bielorrusso, trata-se de uma relação bem mais complexa do que parece à primeira vista.
Sim, Putin pressiona há muito Lukashenko para reintegrar a Bielorrússia, uma antiga república soviética na Rússia – mas o ditador bielorrusso sempre se esquivou, sabendo que isso seria profundamente impopular entre a população que governa.
De facto, a Bielorrússia depende economicamente da Rússia, vendendo-lhe metade do que produz, sobretudo queijo, tratores e camiões, comprando crude russo bem abaixo do preço de mercado, para refinar e vender na UE, mantendo-se à tona com empréstimos da Rússia – mas o Kremlin dificilmente se pode dar ao luxo de abandonar o país, que sempre viu como tampão face à NATO.
Provavelmente, Putin gostaria de ter um aliado mais confiável – nas vésperas das presidenciais de agosto, o regime bielorrusso virava-se abertamente contra o Kremlin, prometia diminuir a dependência do crude do país vizinho, expulsava o seu embaixador, falava de restabelecer laços com os EUA, chegando a prender 32 mercenários russos da Wagner, acusando-os de estar a soldo da oposição – e menos contestado que Lukashenko. No entanto, não é como se o regime russo tivesse muito para onde se virar, salientou Dmitri Trenin, diretor do Carnegie Moscow Center.
«O problema de Putin é que Lukashenko esmagou quaisquer potenciais sucessores a si mesmo que fossem amigáveis para com Moscovo. Os únicos que sobram são todos pró-Ocidente», explicou o analista, ao Financial Times.
Como tal, «Lukashenko tem um argumento convincente. A Rússia e a Bielorrússia têm um inimigo comum no Ocidente. Ou seja, ou me apoiam ou eventualmente perdem a Bielorrússia para o Ocidente», disse Trenin. «Muitos russos estão exasperados com isso. Mas não têm uma melhor opção nas atuais condições».
Supostas confissões
Com o mundo a assistir e o ultraje a adensar-se, Raman Pratasevich – o jornalista de 26 anos que o regime bielorrusso queria tanto apanhar que até desviou o voo da Ryanair onde seguia, lançando um caça MiG-29 no seu encalço – sentou-se à mesa, com um maço de cigarros e isqueiro à mão. Perante a câmara, confessou os seus supostos crimes, como «organizar protestos em massa», que pode resultar em até 15 anos de prisão. E garantiu estar bem de saúde e a cooperar com a polícia bielorrussa, que o estaria a tratar «dentro da lei».
Certamente que poucos acreditaram que esta fosse uma mensagem espontânea. Pratasevich tinha nódoas negras sobre o seu olho, o nariz parecia partido, o seu tom de voz estava estranho, temeroso, denunciou imediatamente a sua família.
Já sua namorada, Sofia Sapega, uma estudante russa de 23 anos, detida no mesmo voo que Pratasevich, também confessou ser editora do canal de Telegram – uma app de mensagens encriptadas, considerada particularmente segura – chamado Livro Negro da Bielorrússia, que divulga informações pessoais sobre agentes da brutal polícia de choque bielorrussa, ou das secretas, que ainda dão pela sigla KGB.
Mais uma vez, nada batia certo na confissão. No vídeo vê-se a jovem a balançar para a frente e para trás, visivelmente perturbada, e tudo indica que Sapega nem sequer está envolvida com a oposição bielorrussa, que a sua grande preocupação era voltar das férias na Grécia para acabar a sua tese de mestrado, em relações internacionais.
Por pouco convincentes que sejam, os vídeos com confissões de bielorrussos que depois contam ter sido coagidos têm-se tornado cada vez mais comuns. Até a própria Svetlana Tikhanovskaya, a candidata às presidenciais que agora encabeça a oposição bielorrussa, quando esteve sob custódia do regime, apareceu em vídeo a apelar aos seus apoiantes para que não saíssem à rua, para que não «ponham as suas vidas em risco».
Mal foi libertada, seguindo para o exílio na Lituânia, indicou que ameaçaram a vida dos filhos e do seu marido, Siarhei Tsikhanouski, um ativista que fora preso pelo regime – daí que Tikhanovskaya se tenha decidido candidatar. «Deus não permita que tenham de enfrentar a escolha que eu enfrentei», apelou a líder, no exílio.
«Começaram a filmar estes vídeos durante as manifestações, para mostrar que os protestos eram instigados a partir do estrangeiro. E começaram a filmar pessoas a dizer que tinham sido pagas dinheiro para se manifestarem», explicou Valentin Stefanovich, do centro de direitos humanos Viasna, ao Guardian. «Numa série de casos nem sequer escondem que as pessoas foram torturadas antes de confessar».
Como tanta coisa na Bielorrússia, esta tática de obrigar a confissões em vídeo, através de tortura, ameaças físicas sobre entes queridos ou de divulgar informações comprometedoras, parece ser de inspiração russa. Mais particularmente chechena: há muito que os opositores do líder Ramzan Kadyrov, um antigo guerrilheiro conhecido pela sua brutalidade, têm o hábito de aparecer em vídeo, maltratados, a confessar crimes ou humilharem-se publicamente.
‘Coreia do Norte da Europa’
Ao desviar um voo com o pretexto de uma falsa ameaça de bomba – de facto, houve uma ameaça de bomba contra o avião da Ryanair, mas a mensagem só chegou 24 minutos depois da torre de controlo de Minsk ordenar que o piloto se desviasse da sua rota, avançou o Washington Post, citando fontes nas secretas europeias – e provocando a retaliação da UE, o regime tornou a fuga dos bielorrussos fartos de Lukashenko ainda mais complicada.
Anteriormente, a Bielorrússia já tinha fechado as suas fronteiras terrestres, supostamente devido à pandemia, exceto com a sua aliada Rússia. Que, com o espaço aéreo do país praticamente interdito, se tornou a única opção para escapar, enquanto aumentam os relatos da brutalidade policial contra opositores.
Ainda assim, este crescendo da pressão europeia foi vista com bons olhos pela líder da oposição bielorrussa. «Lukashenko está a tornar o meu país na Coreia do Norte da Europa. Não transparente, imprevisível e perigosa», disse Tikhanovskaya, citada pela Euronews, avisando que «a anterior estratégia da UE de esperar para ver, no que toca ao regime bielorrusso, não funciona».
Como que para fazer jus a essa reputação, Lukashenko aproveitou para ameaçar a União Europeia, declarando que as sanções sobre o seu regime podiam gerar «outra guerra mundial», segundo a agência Belta, prometendo retaliar contra a UE. «Nós estávamos a parar migrantes e drogas. Agora vocês vão apanhá-los e comê-los vocês mesmos», disse Lukashenko, citado pela Associated Press.