René Lalique. Joias feitas de sonhos

Foi o joalheiro da alta sociedade francesa depois do triunfo na Exposição Universal de 1900. O percurso de René Lalique, o inventor da joalharia moderna,é contado através de 77 peças da maior coleção do mundo dedicada ao artista. Que está em solo português.

O Museu Gulbenkian, resume a curadora Luísa Sampaio, «é uma pequenina volta ao mundo». Proporciona uma viagem por diferentes épocas e geografias que começa no Egipto dos faraós e termina no século XX, numa pequena sala que acaba de ser renovada em profundidade.

No seu interior podem ser vistas 77 sumptuosas criações do joalheiro francês René Lalique (1860-1945). «É um dos highlights de Portugal e da cidade de Lisboa», defende a curadora. «Sem ser muito atrevida, posso dizer que, do ponto de vista da qualidade e da quantidade de joias, é provavelmente a melhor coleção do mundo». José de Azeredo Perdigão, o advogado do milionário arménio e primeiro presidente da Fundação, chamou-lhes «joias feitas de materiais preciosos e de sonhos».

Trabalhando de forma autónoma a partir de 1885, René Lalique foi durante o início do século XX o joalheiro da alta sociedade francesa. Entre os seus clientes e patronos contavam-se figuras como a atriz Sarah Bernardt, Alexandra, a última czarina da Rússia ou o escritor francês Robert de Montesquiou, que terá inspirado a figura do Barão de Charlus na obra-prima de Marcel Proust Em Busca do Tempo Perdido (o que provocou uma zanga insanável entre Proust e Montesquiou).

Mas o sucesso de Lalique não foi fácil nem imediato. De início, nem todos apreciavam devidamente as suas criações ousadas e exuberantes. Surpreende, por isso, que um milionário discreto, de gosto de um modo geral conservador, se apaixonasse pelas suas peças, enquanto outros as olhavam ainda com alguma suspeição. Pensa-se que René Lalique e Calouste Gulbenkian se tenham conhecido em meados da década de 1890, através da atriz Sarah Bernhardt. Mantiveram uma relação primeiro comercial, depois de amizade, que durou cerca de meio século, até à morte do joalheiro em 1945.

Quando Gulbenkian adquire o grosso das obras de Lalique hoje patentes na sua coleção, «entre 1900 e 1910, a coleção Gulbenkian ainda é muito embrionária», explica Luísa Sampaio. «Eu acho – e isto é uma tese que tenho vindo a desenvolver e que as faturas da coleção nos confirmam – que René Lalique foi um homem importante no olhar de Gulbenkian. No museu temos os marfins medievais, a arte egípcia. Acredito que essas fontes de inspiração podem ter vindo de Lalique, que era para quem Gulbenkian estava a olhar entre 1900 e 1910. Não devemos esquecer que as grandes pinturas da coleção só começam a aparecer a partir de 1920».

Mais ainda do que em estilos e períodos da história da arte, Lalique – tal como Rodin, uma grande influência na sua obra – buscou inspiração na mulher e nas formas femininas. As joias que criou até 1912 – ano em que deixou de se dedicar à joalharia – destinavam-se a serem usadas, a surgirem em todo o seu esplendor ao pescoço, num pulso, num dedo ou ao peito de uma ilustre dama. «Estas joias foram feitas para serem usadas. Embora a sua escala seja grandiosa, a moda em 1900 não era o que é hoje», comenta a curadora da coleção.

Mas Gulbenkian tinha outras ideias. As peças em exposição «não foram usadas enquanto objetos de adorno». Depois de as comprar, em geral diretamente a Lalique, Gulbenkian guardava-as na sua casa de Paris «como se se tratasse de outros objetos de arte quaisquer. Sendo obras contemporâneas, Gulbenkian percebeu quem era Lalique e o que Lalique ia ser cem anos depois». Como em tantas outras coisas, o milionário arménio acertou.

O Grande Peitoral Libélula, que se suspeita ter sido usado por Sarah Bernhardt, é a única exceção. Encontra-se numa vitrina ao centro da sala agora renovada, juntamente com o Peitoral Serpentes – que, com as suas linhas curvas, é um expoente da Arte Nova, o movimento artístico que se impôs em Paris e noutras cidades europeias, até ao eclodir da Grande Guerra, em 1914. Ao lado destes, surge ainda um copo que esteve no stand do artista na Exposição Universal de 1900.

Foi um marco na carreira de Lalique, e a historiadora da joalharia Vivienne Becker descreveu-o assim: «As multidões amontoavam-se para ver as obras de Lalique na Exposição, empurravam os narizes contra a montra da loja, para contemplar, divertidas, as criaturas fantásticas e os objetos de sonho que estavam a fazer tanta sensação em Paris e em todo o mundo. A sua mostra na Exposição era estranha, erótica e atraente. Morcegos de veludo preto voavam contra a gaze cinza de um céu noturno cravejado de estrelas». Daí em diante o ousado criador tinha uma passadeira estendida para a celebridade.

Parafusos de ouro
Nascido em Aÿ-en-Champagne, na região do Marne, em 1860, René Lalique tinha um talento nato para o desenho e uma predileção pelo estudo da botânica. Mergulhou no ofício após a morte do pai, como aprendiz do joalheiro Louis Aucoc, complementando a formação numa escola em Londres e na École des Arts Décoratifs em Paris. Depois da passagem por Inglaterra, de regresso à capital francesa, trabalhou para casas como a Cartier e a Boucheron. Em 1885 estabeleceu-se por conta própria na Praça Gaillon, mudando de instalações dois anos depois.

Foi em 1888 que cunhou o seu selo distintivo, ‘RL’ –no mesmo ano em que as suas criações começam a revelar as influências da arte da Antiguidade e do Japão. Ambas estão representadas na coleção Gulbenkian.

«René Lalique é um homem que absorve tudo», diz Luísa Sampaio. Nas vitrinas veem-se escaravelhos egípcios, uma figura inspirada no Laocoonte (um ícone da escultura clássica), um cálice que evoca a Idade Média, apontamentos decorativos que remetem para o Renascimento. E há uma montra inteira dedicada ao Japão e à sua influência profunda na arte do joalheiro francês.

Além de assinalar o triunfo do criador, a participação na Exposição Universal de 1900 também é apontada pelos especialistas como o momento que marca o nascimento da joalharia moderna. Lalique foi, de facto, um inovador incansável, em particular no que diz respeito aos materiais usados. «A grande inovação de Lalique foi trazer materiais distintos à produção das joias», refere Luísa Sampaio. «Sobretudo o esmalte, a opala, que é a sua pedra preferida, o vidro, o chifre de búfalo, um material absolutamente inesperado, e muito marfim». Incluindo marfim de origem vegetal. «Claro que há pedras preciosas – safiras, brilhantes, etc. – mas nunca temos uma pedra preciosa como a pedra-chave. Essa não é a preocupação de Lalique».

Por vezes, continua a curadora, quase «nem percebemos porque é que lhes chamamos joias». E dá o exemplo de um pente de marfim: «Porque é que percebemos que é uma joia? Porque quando o viramos temos esmalte e… é aparafusado a ouro».

«Um bom carpinteiro não usa madeira de segunda para construir as costas de um armário, mesmo sabendo que essa parte do móvel não ficará à vista», comentou um dia Steve Jobs, quando um técnico lhe chamou a atenção para o facto de a placa que o patrão da Apple queria que fosse mais bonita nem sequer ser visível ao cliente comum. Lalique parece ter seguido à risca este princípio, dedicando toda a sua atenção e usando os materiais mais nobres no reverso dos seus objetos.

Mas não por muito tempo. Em 1912 deixou de fazer joias para se dedicar ao vidro – e depois da guerra, em 1921, fundou a sua vidreira industrial em Wingen-sur-Moder, na Alsácia. Depois do luxo das suas criações arte nova, que refletiam a exuberância e o milagre da natureza, procurava algo que pudesse ser produzido em série. Porém, até ao fim da vida continuou a receber grandes comissões, para decorar as carruagens do luxuoso comboio Pullman Express da Côte d’Azur ou o elegante navio de cruzeiro Normandie.

Todo esse percurso notável é contado através das 77 peças exibidas no Museu lisboeta. Mas não há como negá-lo:o período arte nova, com os seus animais, as suas curvas, as suas cores, as suas flores, as suas formas opulentas, é de longe o mais bem representado. E assim, o percurso do museu, que começa no Antigo Egipto, termina com um tesouro digno do túmulo de um faraó.