Campeonato da Europa. As quinas perdidas no reino da Aranha Negra

O primeiro Europeu chamou-se Taça das Nações da Europa e teve lugar em 1960. Ganhou a URSS. A prova disputava-se em eliminatórias simples e Portugal afastou a RDA (2-0 e 3-2) e caiu perante a Jugoslávia (2-1 e 1-5). Nada de entusiasmante.

Quando foi criada a Taça da Europa das Nações, mais tarde apelidada de Campeonato da Europa, já o Campeonato do Mundo existia há 30 anos. Nascida da ideia do francês Henri Delaunay, secretário-geral da UEFA, as suas duas primeiras edições foram jogadas inteiramente no sistema de eliminatórias diretas a duas «mãos», embora logo de início as quatro seleções britânicas, a Alemanha Ocidental, a Itália, a Bélgica, a Holanda, a Suíça, a Suécia, a Finlândia e o Luxemburgo se tenham recusado a participar. A Portugal ordenara o sorteio que defrontasse um adversário então desconhecido, vindo do leste da Europa com o qual, como se adivinha pela situação política, as nossas relações estavam reduzidas a zero. Esse adversário chamava-se República Democrática da Alemanha, embora por cá se preferisse apelidá-la de Alemanha Ocidental.

Béla Guttmann, convidado a treinar a equipa nos jogos da primeira eliminatória, não tinha dúvidas a apontar os erros que tinham conduzido a duas derrotas nas partidas de preparação, frente à Suíça e à Suécia, e acusava: «O individualismo foi a ruína!» .

O último dos aprontos antes da viagem para Berlim foi em Alvalade. Depois de dois anos e oito dias sem ganhar um jogo, Portugal venceu a Escócia por 1-0 num encontro integrado no Festival Britânico que assinalava a visita a Lisboa da princesa Margarida. A culpa era das camisolas!

O triunfo foi tão bisonho que não afastou do redor da seleção o ambiente de derrotismo completo que levantava até, mais uma vez, a questão dos equipamentos, havendo um forte contingente que erguia as suas vozes contra o facto de a equipa das quinas teimar em jogar com uma «farda à espanhola» (camisola grená e calções azuis) e insistir no azul como equipamento alternativo. O golo de Matateu não foi mais do que magro consolo já que os escoceses vieram até Lisboa desfalcados dos jogadores do seu campeão Hibernian, em digressão pela Europa.

O conhecimento de Béla Guttmann, que fora treinador da Hungria de 1945 a 1949, sobre o futebol alemão – embora nesta sua nova vertente de Leste -, dava ao selecionador um pequeno estímulo de confiança que a generalidade do público lhe negava. Costa Pereira (Benfica), Acúrsio (FC Porto) e Vital (Lusitano de Évora); Vergílio e Barbosa (FC Porto), Serra e Angelo (Benfica); Fernando Mendes (Sporting), Arcanjo (FC Porto), Vicente e Figueiredo (Belenenses), Mário Torres (Académica) e Alfredo (Benfica); Carlos Duarte, Teixeira e Hernâni (FC Porto), Coluna, Águas e Cavém (Benfica), José Augusto (Barreirense), Rocha (Académica) e Matateu (Belenenses), formavam o grupo escolhido por José Maria Antunes, o selecionador, no qual apenas o benfiquista Alfredo fazia figura de caloiro.

Do futebol da Alemanha Oriental, que se sabia? Que o Wismut, da antiga cidade de Chemnitz, conseguira alguns resultados razoáveis na Taça dos Campeões Europeus; que o guarda-redes Spickenagel, do Ask Worvearts, era conhecido pela rapidez dos seus reflexos; que o defesa Bringfried Müller, do Dínamo, fazia alarde da sua dureza; que o avançado Willy Troeder, do Wismut, tinha fama de rematador exímio; e que recentemente, em Dresden, fora capaz de criar embaraços à ainda forte Hungria, perdendo por 0-1. Nada mais.

Surpreendentemente, Portugal excedeu-se. Sem Hernâni, com problemas físicos, e com Matateu em grande – o contingente de soldados russos que assistiu ao encontro chegou ao ponto de gritar o seu nome em coro –, os portugueses dominaram as operações de forma soberana, marcando um golo logo aos 12 minutos, num lance rendilhado: Carlos Duarte, na direita, centrou atrasado para Coluna que passou por dois adversários e ficou frente a Spickenagel mas preferiu oferecer a oportunidade a Matateu que ainda teve o requinte de driblar um defesa que vinha ao seu encontro antes de atirar para a baliza.

A reação germânica não teve expressão avassaladora, mas Acúrsio ainda foi obrigado a algumas defesas de aparato antes que voltássemos a tomar conta do jogo e resolvêssemos a questão com um golo de Coluna a meio do segundo tempo. O final da partida, já em «baile», faria com que Portugal desperdiçasse mais duas ou três boas ocasiões para marcar.

A equipa alinhara em WM: Acúrsio – Virgílio e Angelo – Fernando Mendes, Figueiredo e Vicente – Teixeira e Coluna – Carlos Duarte, Matateu e Cavém, e já ninguém duvidava que iríamos jogar os quartos-de-final contra a Jugoslávia que eliminara a Bulgária (2-0 e 1-1). 

Nas Antas, no jogo em que Virgílio cumpriu a sua 34ª «internacionalização», batendo o recorde que era então de Travassos, a vitória repetiu-se, desta vez por 3-2. Como é natural num jogo em que uma equipa se sente à vontade e a outra quer apagar erros recentes, as posições inverteram-se. Portugal foi individualista e o conjunto perdeu-se perante o terreno molhado e a força física alemã. José Maria Antunes limitou-se a uma alteração: a de Vicente por Alfredo. Os golos foram disfarçando uma superioridade discutida palmo a palmo. O primeiro seria de Coluna, de cabeça, em voo, sobre o intervalo.

O segundo, do mesmo Coluna, aos 16 minutos da segunda parte, isto é, treze minutos após o empate de Vogt: desta vez um remate forte, de baixo para cima, à boca da baliza, na sequência de um canto. Cavém faria o 3-1 com um pontapé colocado aos 69 minutos, para Kohler reduzir três minutos depois. Nem o selecionador nem o treinador escondiam a sua alegria. E prometiam êxitos. Sonhos que uma derrota vibrante (3-5) em Paris, face à França, no final do ano, não foi capaz de ensombrar. 

Sempre problemas…
Nem as vitórias afastavam os problemas contínuos da seleção. O jogo de Ludwigshafen teve consequências fortes nos encontros que se seguiram, frente à Jugoslávia, primeiro em Lisboa, depois em Belgrado. Havia a consciência clara de que Portugal se preparava para defrontar uma das grandes potências do futebol europeu. No Mundial de 1958, tinha sido eliminada pela Alemanha Ocidental (0-1) nos quartos-de-final e vencera a França (3-2), que seria terceira classificada, na primeira fase.

Além disso, os jugoslavos vinham de três finais consecutivas no Torneio de Futebol dos Jogos Olímpicos: 1948, Londres, Suécia (1-3); 1952, Helsínquia, Hungria (0-2); 1956, Melbourne, URSS (0-1) – venceria, em Setembro seguinte, a final olímpica de Roma, frente à Dinamarca (3-1). Velhas glórias como o guarda-redes Beara, Boskov, Bobec ou Bora Milutinovic tinham dito adeus à seleção. O veterano Branco Zebec apadrinhava uma nova vaga de grandes jogadores entre os quais se destacavam Mujic, Kostic, Jerkovic e, sobretudo, o ainda muito jovem Dragoslav Sekuralac.

Aliás, as preocupações lusitanas eram tais que se decidiu pela interrupção do campeonato para que a seleção dispusesse de mais tempo para se treinar. Mas, como quase sempre em ocasiões semelhantes, o otimismo era crescente.

Relembravam-se as duas vitórias portugueses frente à Jugoslávia (2-1, nos Jogos Olímpicos de 1928 e 3-2 num particular disputado no Lumiar) e perspetivava-se um Portugal-Espanha para as meias-finais – já se sabia que o vencedor do Portugal-Jugoslávia jogaria com o vencedor do Espanha-URSS – os espanhóis acabariam afastados por se terem recusado a viajar até ao País dos Sovietes para a partida de retorno  da eliminatória. 

Não houve duas sem três: Portugal voltou a ganhar (2-1), mas não deixou em campo grandes motivos para crer verdadeiramente que aguentaria a vantagem no jogo da segunda «mão». Foi uma seleção surpreendente, aquela que entrou em campo.

Tão surpreendente que seria recebida com estupefação pelo público do Jamor que acompanhou a sua subida ao relvado com um silêncio reprovador. José Maria Antunes castigara os «piegas» (José Águas e José Augusto), de Ludwigshafen com a exclusão.

O espetáculo voltou a ser bisonho: Santana e Matateu levaram Portugal à vantagem relativamente confortável de dois golos mas, a sete minutos do final, Sekuralac deu a Kostic a hipótese de reduzir para 1-2. E a discussão instalou-se: considerava-se que tirar os jogadores da equipa pelo que eles não haviam feito na Alemanha penalizava mais a equipa do que os jogadores. E que, a partir do momento em que eles não tinham sido imediatamente dispensados da convocatória na sua chegada a Lisboa, o selecionador e o treinador tinham caído num equívoco, enganando os adeptos e enganando-se a si próprios.

Insistência
José Maria Antunes e Béla Guttmann mantiveram a sua teimosia em Belgrado. Hernâni e Santana, que tinham substituído José Águas e José Augusto, voltaram a ser titulares. O benfiquista Mário João estreou-se no lugar do seu companheiro de clube Ângelo.

Vinte minutos diabólicos dos jugoslavos deitaram por terra qualquer ténue esperança portuguesa. Durante a primeira parte ainda fora possível disfarçar a superioridade do adversário. Sekularac fizera o 1-0, mas Cavém empatara de cabeça, na sequência de um canto. Um «frango» de Acúrsio, que não susteve uma bola chutada por Cebinac da linha de cabeceira, levou a Jugoslávia em vantagem para o intervalo. No segundo tempo, Kostic, Galic e novamente Kostic selaram uma vitória gorda (5-1).

Portugal perdia o jogo e a cabeça: alguns jogadores entraram em lances de dureza excessiva e injustificável e saíram de campo sob um coro estridente de assobios. Depois de três vitórias consecutivas, a seleção deixava a Taça das Nações pela porta pequena.

Valeu-lhe, quanto muito, ver os jugoslavos chegarem à final do Parque dos Príncipes, para jogar  a final contra a URSS do imenso Yashin. A vitória nas meia-finais sobre a França por 5-4 foi espetacular e deixava vivo o sonho que a Taça das Nações seria para manter.

Manteve-se até hoje. Ainda a tempo de vermos Portugal jogar aquela maldita final de Lisboa contra a Grécia e aquela bendita final de Paris frente à França. No dia 10 de julho de 1960, já lá vão 61 anos, os golos soviéticos de Metevelli (49m.) e Ponedelnik (113m) bateram o de Galic (43m), já no prolongamento, e foi Lev Yashin, a Aranha Negra, a levantar a Taça Henri Delaunay. Dificilmente ficaria em melhores mãos…