A vegetação verdejante que se encontra pelo IC8 contrasta com aquela que existe à entrada de Pedrógão Grande. No município fustigado pelos incêndios de 2017, as copas das árvores destruídas pelo fogo, muitas das vezes, sobrepõem-se às daquelas que foram plantadas depois da tragédia, vincando a sua presença e provando que as sequelas do fatídico dia 17 de junho permanecem, não só nas pessoas, mas também na paisagem.
A poucos quilómetros dali, José (nome fictício) disponibiliza-se para conversar, mas pede que a sua versão dos factos seja apresentada sem qualquer referência ao nome, à idade ou à profissão. Apesar de ter medo das represálias, considera que, por mais anos que passem, a catástrofe que assolou as regiões Centro e Norte há quatro anos deve ser recordada. Acima de tudo, para que não se repita.
«Será que aprendemos alguma coisa com 2017? Isto é um barril de pólvora. É claro que temos medo de viver aqui. A nossa preocupação é que, da próxima vez, seja pior», desabafa o homem, justificando que o abandono das terras acontece devido à falta de meios económicos dos proprietários.
«Quem gosta e tem amor, ainda vai tentando fazer algo por aquilo que é seu, mas há outros que não querem saber», lamenta, realçando, porém, que «havia dinheiro para construir, mas o problema foi a ganância, porque estávamos a meses das eleições autárquicas». Na ótica do pedroguense, «houve uma guerra de titãs», na medida em que Valdemar Alves, antigo presidente da Câmara Municipal, «foi da Polícia Judiciária durante muitos anos, esteve como chefe de gabinete de Francisco Moita Flores, em Santarém, e, quando o convidaram, aceitou candidatar-se». Contudo, «tiraram-lhe o apoio político por volta de março ou abril e isto aconteceu poucos meses depois», lembra. «E mais não digo porque, quem quiser investigar, chega lá».
Apesar do julgamento de 11 arguidos para determinar responsabilidades nos incêndios de Pedrógão Grande, nos quais o Ministério Público contabilizou 63 mortos e 44 feridos que quiseram procedimento criminal, ter começado no passado dia 24 de maio, José acredita que pouco mudou e que, quando este capítulo estiver encerrado, talvez seja oportuno revelar a identidade.
«Os problemas não surgiram agora nem em 2017. Os erros dos quais reclamamos arrastam-se há 20, 25 anos. Não temos indústria, o que temos? Agroflorestal, uma serração ou duas, a Câmara, a Santa Casa, os bombeiros, uma escola profissional e mais o quê?», questiona com a amargura percetível no tom de voz, acrescentando que «tentaram trazer para aqui uma fábrica ou duas, mas não resultou. Principalmente, uma alemã, que foi só para ficar com os fundos e foi desativada. É como se tivesse havido gestação e a cria nunca tivesse nascido».
«Também há outra de uns fulanos do Norte que nem meio ano esteve em atividade. A indústria é a única coisa que ainda podia captar os jovens, mas nem isso consegue. Eles foram-se embora e vivemos a desertificação».
A opinião de José é corroborada pelos Censos de 2011 que comprovam que, então, Pedrógão Grande tinha 3915 habitantes. Destes, 434 com idades compreendidas entre os 0 e os 14 anos, 355 entre os 15 e os 24, 1815 entre os 25 e os 64 e 1311 com 65 ou mais anos.
Mas aquilo que mais o preocupa é a eventual repetição dos incêndios, frisando que «o poder político tem muita culpa nisto porque desperdiçou a oportunidade de ser um exemplo para o resto do país». Como «isto ardeu, ficou tudo degradado, devia ter protegido as aldeias». Para que tal acontecesse, José pensa que, entre «as partes agrícolas e florestais, deviam ter sido abertos estradões».
Por conseguinte, com a plantação de castanheiros, carvalhos e sobreiros, que constituiriam «uma faixa de proteção», que se juntaria à responsabilidade dos cidadãos de «manter a parte agrícola lavrada ou fresada», o drama poderia não acontecer novamente. «O cerne da questão é que os políticos continuam a ser os mais incompetentes nesta área».
Dizendo múltiplas vezes que não quer proferir declarações acerca do julgamento, revela que «o memorial está simples e bonito», e até gosta «especialmente da asa, por ser simbólica». Neste caso, refere-se ao monumento criado, pelo artista local João Viola, em Nodeirinho, em homenagem às 11 vítimas mortais da aldeia, mas também às 14 que se salvaram no tanque que foi rebatizado de Fonte da Vida.
Entre duas pedras de xisto, assentes em resquícios das casas que arderam, encontram-se duas mais pequenas, uma branca e outra negra, que Viola explicou, à agência Lusa, que simbolizam a ligação à terra e ao céu. Na parte da frente, lê-se a frase «Eis que faço novas todas as coisas» (Apocalipse 21:5).
Ainda que respeite a memória de quem perdeu a vida devido ao fogo, «gastar 1 milhão e 800 mil euros noutro não faz qualquer sentido», afirma, aludindo ao concurso lançado pela Infraestruturas de Portugal (IP), no passado mês de fevereiro, para a construção do Memorial às Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande – um lago artificial –, uma intervenção com um valor base de 1,8 milhões de euros.
O anúncio do concurso público da empreitada foi publicado em Diário da República e, à época, à Lusa, fonte oficial da IP explicitou que a mesma prevê «a construção do memorial, os acessos rodoviários, que inclui uma zona de inversão de marcha para circulação proveniente de sul e renovação da paisagem marginal da EN [estrada nacional] 236-1». Além disso, ao longo de cerca de dois quilómetros da denominada estrada da morte, onde hoje se encontram flores de plástico, que perduram tal como a memória de quem já partiu, serão igualmente «plantadas um conjunto de diferentes espécies arbóreas autóctones».
«Parecia que estava a olhar para uma fogueira»
Perto do memorial, sentada à porta da casa da filha, protegendo-se do calor com um lenço, Maria Rosa Antunes Carvalho, de 78 anos, lembra-se do dia 17 de junho como se fosse hoje.
«Vimos aquilo muito longe, mas o meu neto chegou a casa e disse ‘Avó, vamos embora, porque vem aí o fogo e morremos todos queimados’. Fomos para o cimo do lugar, chegámos à capela e percebemos que não podíamos passar, a estrada estava cheia». No automóvel seguiam Maria Rosa, o marido, o neto e o cão.
«Viemos para baixo e vimos muita gente dentro do tanque. O problema delas e de outras foi terem ido embora das suas casinhas. Foi isso que aconteceu a duas vizinhas minhas, que se enfiaram no carro, e arderam todas». Estas vítimas mortais foram Maria Odete Rosa Rodrigues, de 62 anos, e Bianca Antunes Henriques Nunes, de somente quatro.
«A avó e a neta, uma desgraça. Nem quero que passe pela ideia de ninguém ver duas pessoas a morrerem assim, parecia que estava a olhar para uma fogueira», confessa.
Segundo o capítulo VI do relatório do investigador Domingos Xavier Viegas, que o Governo decidiu não divulgar, veiculado pelo i em outubro de 2018, «pelas 20 horas – 20hl5 decidiram sair de casa, no Toyota Corolla, a gasóleo, de 1994, conduzido pela Gina, indo o Marcelo à frente, ao lado da mãe e a Odete e a Bianca atrás, esta sentada no lado direito numa cadeira para criança», ou seja, a mãe, a avó e os dois filhos da primeira.
Em casa, decidiram fugir novamente. «Voltaram a entrar no carro do qual a Bianca não tinha chegado a sair. O pai dera-lhes a indicação de se dirigirem para o tanque, mas com a confusão da saída nem o Marcelo nem a Gina se aperceberam desta recomendação».
Na estrada da morte, Marcelo, então com 19 anos, tentou salvar a irmã, «mas com os cintos de segurança, não conseguiu desprender a menina» e «com o calor do incêndio teve de se afastar do carro e embora tentasse aproximar-se de novo, não o conseguiu». A criança viria a morrer agarrada à avó.
Depois de terem assistido a estas duas mortes, apressaram-se a regressar a casa. «Ia acontecer-nos o mesmo», reconhece, conhecendo a sentença que os esperava. Até às 4h do dia seguinte, em casa da família Antunes Carvalho, «uns gritavam, outros choravam» e Maria Rosa admite que só se sentiu minimamente mais calma quando a filha apareceu.
«Ela achava que tínhamos morrido. Estávamos todos com lenços à volta da cara porque havia fumo por todo o lado. Escapou aquilo que Deus destinou que tinha de escapar. Parecia um inferno. Se Deus quiser, não volta a acontecer algo igual».
«Arderam-me duas eiras, mas, felizmente, nenhum animal morreu. Deram-nos 5000 euros para reconstruir. Chegou para arranjar. Também ardeu um trator e ajudaram-nos. Não sei se foi a Câmara ou o Estado, mas de algures veio o dinheiro e é isso que interessa», explica Maria Rosa, proprietária de hortas, ovelhas, cabras, galinhas e coelhos que tenta não desistir do trabalho árduo de décadas, junto do marido, apesar de problemas de saúde como a artrite a impedirem de fazer os esforços de outrora.
«Acho que entraram em pânico e agarraram-se uns aos outros»
No decorrer da calamidade que atingiu o norte interior do distrito de Leiria, um terço da população de Pobrais, localidade do concelho de Pedrógão Grande, com cerca de três dezenas de habitantes, morreu. Duas dessas pessoas foram as primas Anabela Araújo, de 39 anos, e Anabela Esteves, de 48.
«Estava no Porto, cidade onde vivo deste os quatro anos, e por volta das 2h, o namorado da minha filha telefonou-me e disse que ela tinha falecido. Entraram as duas para o carro, para fugir, chegaram à Estrada da Morte, e deu-se a tragédia. Tive tempo de ligar a uma amiga minha, ela foi ter comigo e eu ainda vim a conduzir até aqui. Não foi fácil. Tive força porque sabia que tinha de vir. Cheguei cá, não havia luz, água, nada», começa por narrar Maria Alice Araújo, de 62 anos, reformada de um cargo numa empresa de eletrónica.
Depois de perder a filha e a prima «que era como uma irmã», a mulher admite que a sua vida se tornou «uma tragédia», até porque já havia perdido o marido e os pais.
«Não sei se um dia vou abaixo mas, até agora, tenho conseguido continuar. Tenho um filho que vive em Famalicão e a minha neta de 18 anos, filha da minha filha, vive com ele. Como eu ando sempre dividida entre os dois sítios, a menina fica com ele», conta, admitindo, porém, que olhar para a neta faz-lhe alguma confusão.
«É uma fotocópia da mãe: a falar, o corpo… por vezes, até penso que estou a conversar com a minha filha. É óbvio que é bom ela ter deixado a menina, adoro-a, mas lembro-me constantemente da mãe», afirma, sob o teto da casa – cujas paredes ficaram pretas, o telhado em mau estado e a vegetação ardeu – onde Anabela viveu os últimos anos de vida com o companheiro.
«Se calhar, não teriam morrido se tivessem ficado aqui», suspira, olhando em redor. Levanta-se, abre uma gaveta do armário da sala, pega num álbum de fotografias e folheia-o, tentando não chorar enquanto vira cada página que a faz lembrar as diversas fases da vida de uma das vítimas mortais do acontecimento que é habitualmente comparado ao desastre de Entre-os-Rios, de março de 2001.
No capítulo VI do relatório do investigador Xavier Viegas, é possível ler ainda que «no alto dos Pobrais vive a família de José Manuel Esteves (52 anos), casado com Anabela Quevedo Esteves (47 anos), com os seus dois filhos Diogo Quevedo Esteves (26 anos) e Miguel Ângelo Quevedo Esteves (23 anos)».
Na casa onde, hoje, Maria Alice habita sozinha, do outro lado da rua, partilhavam o quotidiano Anabela Pereira Araújo e o companheiro. Sabe-se que, «no dia 17, pelas 19 horas o Miguel Ângelo saiu para ir à Figueira da Foz. Nessa altura a situação não parecia ser preocupante. Pelas 20 horas, o José e a Anabela Esteves viram aproximar-se o incêndio que iria entrar na aldeia pelo lado das suas casas. O José decidiu retirar os carros para um lugar mais seguro, pois teve receio de que, ficando ali expostos, se queimariam. Saiu no Fiat Punto, enquanto a Anabela Esteves levou o Peugeot 106 (1998)».
Quando Anabela viu a prima Anabela Araújo, disse-lhe que se juntasse a eles. Os dois carros foram em direção à EN236-1.
Quando entraram nesta estrada, aperceberam-se da confusão que havia na mesma e «saíram logo no cruzamento seguinte, para a esquerda, que é o ramal da estrada antiga, que vai para a Barraca da Boavista, e Várzeas. A sua intenção era a de retomarem a direção do IC8 e de fugirem para Figueiró dos Vinhos».
No entanto, «seguiram em frente por uma estrada de terra, que segue para Agria. Voltaram para trás e voltaram ao cruzamento dentro de Barraca da Boavista». Fazendo inversão de marcha, José Esteves virou para a direta, em direção a Várzeas, e Anabela para a esquerda.
«É seguro que tanto a Anabela Esteves como a Anabela Araújo abandonaram o carro e se dirigiram para o Ford Galaxy da família Abreu, que deveriam conhecer. A Anabela Araújo foi encontrado dentro do Ford e Anabela Esteves junto da porta traseira do lado esquerdo mas, ao que tudo indica, não terá chegado a entrar na viatura», escreveu o investigador.
Com estes e muitos outros pormenores sempre presentes em mente, Maria Alice questiona-se acerca do estado do cadáver da filha. «Dizem que eles ficaram pequeninos, queimados. Na Polícia Judiciária, eu disse que não saía de lá sem ver a fotografia da minha filha morta. Insisti e mostraram-me. Parecia um cone, os quatro corpos juntos. Acho que entraram em pânico e agarraram-se uns aos outros. Ficaram carbonizados, mas eu só via ossos», constata com uma lucidez inquietante, colocando a hipótese de ter sido confrontada com «uma espécie de radiografia que tiraram para identificar a quantidade de pessoas que iam no carro».
A observação de Maria Alice levanta dúvidas. A título de exemplo, a 21 de junho de 2017, o Jornal de Notícias noticiava que alguns dos corpos carbonizados das vítimas dificilmente poderiam ser identificados pela medicina forense.
Citando uma fonte forense, o JN indicou que os cadáveres estiveram «expostos a temperaturas superiores a 1000 graus», muitos «ficaram praticamente reduzidos a carvão» e «os dentes resistem até 800 graus, mas a temperatura a que estiveram expostas estas vítimas ultrapassa os 1000, tornando impossível qualquer identificação por este meio».
No artigo científico Patologia forense nas mortes com evidente ação do fogo, de 2006, o médico legista brasileiro Luiz Airton Saavedra de Paiva, foi ao encontro da informação transmitida pela fonte forense citada pelo Jornal de Notícias e escreveu que «os dentes, assim como os materiais empregados em dentística reparatória, por serem muito resistentes ao calor são importantes elementos a serem considerados para fins de identificação», adicionando que «o peso e a altura de um cadáver carbonizado provavelmente estarão alterados devido ao dessecamento dos tecidos, às fraturas do esqueleto e à pulverização dos discos intervertebrais pelo calor».
Maria Alice já pesquisou muito e continua a querer encontrar respostas, mesmo quando entende que as suas dúvidas podem fazê-la sofrer mais. «Não sei se é bem esse o caso ou se, no fundo, encontro mais paz de espírito por ter a certeza daquilo que aconteceu e de como o corpo dela ficou».
«Viverei com esta dor até ao fim dos meus dias», finaliza a mulher que não passa um dia sem fazer caminhadas e gosta particularmente de fazer a lide doméstica. No entanto, mesmo quando está com as netas e o filho ou a tentar distrair-se, existe uma frase que não permite que esqueça, por um segundo que seja, a eterna menina que nunca mais voltará para os seus braços: «Mamã, se morreres à minha frente, eu vou logo atrás de ti».
‘O sentimento de perda daquilo que já não volta é enorme’
«Isto foi um processo longo. Como foi um caso complicado, pelo menos para nós enquanto família, houve questões que se vieram a revelar mais tarde que não foram identificadas durante a hospitalização», elucida Rui Rosinha, bombeiro de Castanheira de pera que ficou conhecido por bombeiro herói e, volvidos quatro anos, lida com as consequências físicas e psicológicas do dia 17 de junho.
O homem, então com 39 anos, estava a regressar do combate a um fogo em Figueiró dos Vinhos quando uma viatura colidiu de frente com aquela em que seguia e ambas incendiaram-se.
Juntamente com quatro elementos da corporação a que pertencia, fugiu do local, mas deparou com uma família rodeada por chamas. Honrando o espírito de missão e sacrifício, tal como o lema Vida por vida, formaram um círculo, abraçaram-se e formaram uma barreira de proteção.
A valentia valeu a Rui um grau de incapacidade de 85%. Além disso, passa os dias a fazer fisioterapia e a ser seguido em consultas de neurologia, patologia do sono, pneumologia, fisiatria, cirurgia geral e plástica, dermatologia, oftalmologia, psiquiatria, psicologia e psicoterapia.
«Tive muitas consultas por telefone na pandemia, mas sou seguido por muitas especialidades. Temos aqui, e é um louvor que faço sempre que consigo, a unidade de saúde mental dos Hospitais da Universidade de Coimbra, liderada pela doutora Ana Araújo, que nunca nos largou», evidencia o bombeiro que vê os profissionais de saúde que o acompanham como «heróis» – tal como a população o designa – e considera que os mesmos são seus amigos também. «Sei que posso contar com eles».
Por outro lado, começou por auferir uma reforma por invalidez de apenas 395,97 euros por mês. «Os 395 euros é o valor com que fiquei da aposentação e, entretanto, fui aumentado em 10 euros, agora são 405. Portanto, tinha pouco tempo de descontos, tenho 43 anos, tinha 39, e vi-me obrigado a aposentar-me por proposta da junta médica da ADSE», lembra, destacando que o Fundo Social do Bombeiro tem uma componente de auxílio destinada a casos graves como o seu e recebe «mais 200 e tal euros até perfazer o valor do ordenado mínimo».
«O meu ordenado não era esse, mas é a lei que está vigente e não posso fazer nada contra isso. Não é perfeito, mas é mais qualquer coisa. A minha esposa recebe o ordenado mínimo. Temos encargos», declara o pai de dois adolescentes de 16 e 13 anos.
«Tenho uma casa que não posso utilizar porque é um 1.º andar e o valor das indemnizações estou a aplicá-lo, juntamente com o apoio da SIC Esperança e da Cáritas, na construção de uma casa em Castanheira de Pêra», declara, reconhecendo a «grande compaixão e solidariedade» das duas entidades, e sonhando com o dia em que esse processo estará terminado e voltará a viver com a mulher e os filhos de forma independente.
«Estamos todos juntos e, de uma forma ou outra, sempre apoiamo-nos mutuamente. Faço bastantes deslocações aos hospitais, por exemplo, e é bom saber que tenho ajuda e os miúdos não ficam sozinhos», avança. «Não nos sentimos mal, nada disso, mas já são quatro anos e sentimos falta do nosso espaço».
«Estamos em permanente reconstrução, até mesmo aqueles que não ficaram feridos fisicamente. Nodeirinho, para mim, tem um significado diferente porque morreram lá 11 pessoas. Tem aquela lenda das pessoas que se salvaram no tanque e o memorial», transmite, assumindo que os habitantes da aldeia «não esquecem» e «continuam a sofrer muito por causa deste evento».
Não só eles, como todos em geral. «É difícil lidar com isto. Todos os dias, parece que temos um 17 de junho. Não com a intensidade daquele dia, mas lembramo-nos de determinada situação, de determinada pessoa, etc. É impossível não pensar nisso. Não há volta a dar. As conversas dão sempre no mesmo. As pessoas, por muito que falem do dia e do que se passou… Ao início, não falavam, era quase tabu. Se calhar, só muito mais tarde, e agora, estão a ganhar coragem para falar daquilo que aconteceu», argumenta, sabendo daquilo que fala, pois, para além da sua vida ter mudado drasticamente, perdeu o colega e amigo Gonçalo Conceição – sofreu queimaduras graves depois do acidente do autotanque dos bombeiros onde seguia, viria a morrer no dia 19 de junho de 2017, dois dias depois do incêndio ter deflagrado, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra –, da mesma idade, com quem andou na escola e com quem partilhava tudo. «Era como um irmão».
«Estive em tribunal no dia 7 de junho, mas custou-me imensamente recordar coisas das quais já falei dezenas de vezes. Falar não ameniza a dor, no meu caso. Dizem que o tempo faz amenizar, mas não. O sentimento de perda daquilo que já não volta é enorme», diz o homem que, de acordo com informações veiculadas pela Lusa, esclareceu que «houve uma conjugação de factores entre material de combustível e condições meteorológicas adversas», que contribuíram para um «evento extremo» e um «incêndio de grande dimensões».
«Quando sofremos a nível físico, tomamos um comprimido, dormimos, o que seja. A parte psicológica é muito pior e vivemos um dia de cada vez. Como se viu no dia 17 de junho, não vale a pena fazermos projetos a longo prazo», refere, adiantando que nunca sentiu que as memórias se dissipassem numa névoa, até porque, desde que acordou do coma – em que esteve dois meses e três semanas – lembrou-se, de imediato, de tudo aquilo que acontecera.
«Lembrar-me daquilo que aconteceu não me tranquiliza, mas dá-me alguma paz. E, como equipa, fizemos aquilo que podíamos e não podíamos», garante o atual vice-presidente da Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande (AVIPG). «Aquilo que me deixa verdadeiramente triste, e é um termo que é pouco forte, é ter perdido o Gonçalo. Todos nós falamos dele. Ficará para sempre lembrado».
Naquilo que respeito à reconstrução da paisagem, diz que «o verde tem uma capacidade enorme para se regenerar», mas verifica com apreensão que, quatro anos depois, «há zonas que estão totalmente aptas, infelizmente, da maneira que cresceram desmesuradamente, a arder descontroladamente».
«Basta dar uma volta fora dos circuitos das estradas principais para ver que as coisas estão péssimas. Se não se fizer nada, acho que daqui a um ou dois anos, sem ordenamento ou limpeza, as coisas poderão correr mal», prevê, apesar de esperar estar enganado e assumindo que prevenir outro desastre «depende de todos, não só do Estado. Dos proprietários também. Da nossa vontade», pois «as pessoas falam na Proteção Civil, mas temos de ver que a mesma e o Estado somos todos nós».
«Temos de alertar as pessoas para os erros e modificar os comportamentos. Não temos de aprender a conviver com a falta de limpeza, temos de agir. Isto depende de nós enquanto sociedade. O Estado é o maior responsável porque também gere os nossos impostos, mas acho que também temos o dever e a obrigação de fazer a nossa quota parte», alerta a vítima que não concorda com a ideia de que a culpa morre solteira e está ciente de que evitar a repetição dos incêndios de 2017 é uma missão que diz respeito à sociedade, como um todo, e não apenas aos órgãos estatais.
«Prometeram-nos tanto e, ao fim de quatro anos, não temos nada. É uma machadada na consciência das pessoas. Se volta a haver uma tragédia e tudo acontece nos mesmos moldes… É mais uma falha que é impensável. Seria o cúmulo da incompetência», frisa, alinhando-se com José naquilo que concerne a plantação de eucaliptos que «foi fruto de uma falta de fiscalização enorme». «Não sei se foram as câmaras, a GNR, não faço ideia, mas foram plantados eucaliptos onde arderam pinheiros», condena,
«A AVIPG tem como missão a defesa dos direitos e dos legítimos interesses das pessoas afetadas pelo incêndio de Pedrógão Grande de 2017, homenagear as vítimas mortais e os feridos, bem como a promoção de medidas que previnam e impeçam a ocorrência de circunstâncias futuras idênticas», é possível ler no site oficial da associação que «tem vindo a desenvolver uma intensa atividade ao longo da sua curta existência e é fiel à sua missão maior: o direito à vida, uma vida com dignidade, dos povos do interior de Portugal. Porque o interior é Portugal todo».
Neste sentido, Rui justifica a sua motivação para estar conectado à mesma por meio da luta que quer que seja levada a cabo para que o interior não seja esquecido nem aqueles que perderam a vida nos incêndios.
«Vamos pressionar seja quem for. O primeiro-ministro, o Presidente da República, as operadoras, as papeleiras, o ministro A ou B. Não temos amigos nem inimigos, simplesmente não temos problemas em dizer o que está bem ou mal», denota o dirigente que espera que o poder político reconheça que «esta região, que já estava mal antes do incêndio, ficou muito pior».
«Já sofríamos de interioridade muito antes, somos poucos a votar, mas também temos direito à vida e a usufruir de determinadas coisas», remata aquele que desempenhou funções como bombeiro durante 24 anos.
«Olhem para nós com outros olhos. Não somos coitadinhos, mas merecemos algum respeito e alguma consideração. Tal como há a insularidade, há a interioridade, e é uma fatura muito cara que pagamos».