Toda gente sabe que Brasil é sinónimo de ‘joga bonito’, num país onde o desporto-rei manda como em lado nenhum. E, se a chegada da Copa América ao Brasil, este domingo, foi apresentada como triunfo pelo Governo de Jair Bolsonaro, a verdade é que rapidamente se tornou num foco de contestação. Cada vez mais, os brasileiros estão furiosos por o país receber o evento à última hora, depois de ter sido recusado pela Argentina e pela Colômbia por motivos sanitários, tendo em conta que o Brasil está bem pior em termos de contaminação da covid-19 do que os seus vizinhos. As queixas fazem lembrar as que se ouviram em relação à final da Liga dos Campeões no Porto – só que, para já, com menos vandalismo e numa escala maior, no segundo país com mais novas infeções, batido somente pela tragédia na Índia.
«É impossível descrever a insanidade de tentar receber um evento desta magnitude aqui e agora», espantou-se o infetologista José David Urbaez à AFP; numa perplexidade que se espalha pelo Brasil, sobretudo após o Supremo Tribunal ter autorizado por unanimidade o Governo a avançar com o evento, esta sexta-feira. Afinal, o país – onde o Executivo do Presidente Bolsonaro tem sistematicamente tentado bloquear medidas de confinamento impostas pelo estados – ainda continua com contágios em níveis recorde, com quase 90 mil casos registados só na quarta-feira, num total de 17 milhões de infeções.
Também não ajuda à contestação o facto de o Executivo de Bolsonaro estar a ser exposto perante a Comissão Parlamentar de Inquérito à covid-19, mostrando lacunas básicas de conhecimento – Nise Yamaguchi, conselheira de Bolsonaro para a pandemia, debateu-se em diferenciar um vírus de um protozoário, perante as câmaras – e sendo acusado de flagrante incompetência. Uma questão que ganha maior relevo quando se descobre que o Governo brasileiro fez pouco – ou chegou a bloquear, dizem alguns – a aquisição de vacinas contra a covid-19.
Aliás, soube-se que «53 emails da Pfizer ficaram sem resposta» do Governo Bolsonaro, quando a farmacêutica multinacional tentava acertar a venda das suas vacinas ao país em dezembro, denunciou no Twitter o senador Randolfe Rodrigues, vice-presidente da comissão de inquérito parlamentar à covid-19. Enquanto esses emails «desesperados» eram ignorados, o ministério dos Negócios Estrangeiros brasileiro dedicava-se a pressionar a Índia para acelerar a entrega de hidroxocloroquina – uma pseudo-cura milagrosa para a covid-19, apoiada por Donald Trump, Bolsonaro, e a sua conselheira Nise Yamaguchi, ainda que a ciência indique que não tem efeito.
Já o ministério da Saúde brasileiro justificou que a demora em responder à Pfizer foi devido a um «ataque de vírus» que deixou o email «inoperante» – enquanto isso, a mudança da Copa América para o Brasil era aprovada numa questão de dias pelo Governo brasileiro. «Desde o princípio, sempre disse sobre a pandemia: lamento as mortes, mas temos que viver», defendeu Bolsonaro, perante os seus apoiantes em Brasília.
No entanto, até a própria seleção brasileira se mostrou furiosa com a ideia de receber a Copa América no Brasil, um evento que implica receber dez delegações em simultâneo, com fãs a circular pelo país. «Somos contra», lia-se um manifesto, assinado por estrelas como Neymar, após especulação que a própria seleção da casa poderia boicotar o evento – mas não deverá ser o caso. «Somos contra a organização da Copa América, mas nunca diremos não à seleção», continuava o manifesto. «Quando nasce um brasileiro nasce um torcedor».
Primeiro jogo
O primeiro jogo da Copa América, entre o Brasil e a Venezuela, marcado para este domingo às 18h (14h em Portugal continental), no Estádio Nacional de Brasília, começa precedida de uma onda de manifestações massivas por todo o país ao longo de semanas sem comparação com qualquer outra em tempo de pandemia. Os gritos que mais se ouviam eram coisas como «Bolsonaro genocida» – vários ativistas que utilizaram essa palavra de ordem já foram detidos ao abrigo de uma lei que não era utilizada desde os tempos da ditadura, que criminaliza insultos ao Presidente – ou «fora Bolsonaro».
Com 61% dos brasileiros contra a receber a Copa América e apenas 24% a favor, segundo uma sondagem recente da EXAME, parece muito difícil que o Governo de Bolsonaro consiga tirar proveitos políticos do evento – durante os dias seguintes à notícia, a pergunta: «Quem autorizou a Copa América no Brasil» foi a pesquisa no Google mais feita pelos utilizadores brasileiros, segundo o UOL.
Contudo, isso não implica que Bolsonaro não tente utilizar o desporto-rei para galvanizar a sua base de apoio. «Até nisso, o Governo Bolsonaro vai imitar o regime militar», considerou o jornalista Matheus Leitão, da Veja, lembrando que durante a ditadura – de que Bolsonaro é tão saudosista – o Presidente Emílio Garrastazu Médici, que liderou o período mais sangrento do regime, projetou uma imagem de fã número um da seleção nacional, numa tentativa de parecer mais próximo dos brasileiros.
«A cortina de fumaça é trabalhar para fazer um evento absolutamente inoportuno num momento em que o Governo está acuado. Bolsonaro está em campanha eleitoral, e vai jogar com tudo que tiver para manter sua popularidade», concordou Flávio de Campos, investigador da da história do futebol na Universidade de São Paulo, ao El País Brasil. «É natural que faça o uso político do esporte mais popular do país».
Entretanto, vários governadores brasileiros, de estados como Pernambuco e Rio Grande do Sul, já se mostraram contra a Copa América, recusando recebê-lo – para fúria do Governo, que tentou obrigá-los na justiça mas não conseguiu – o que o levou a procurar novas cidades anfitriãs.
O preço da insistência do Governo de Bolsonaro pode muito bem acabar por ser paga pelos brasileiros, alertam os especialistas. «Estamos enfrentando uma segunda onda que não arrefeceu ainda. A taxa de transmissão também está muito elevada e estamos numa situação de descontrole», e a taxa de imunização continua baixa, considerou Antonio Augusto Moura da Silva, professor de Saúde Pública da Universidade Federal do Maranhão, à BBC Brasil.
O mundo pode sofrer com isso. Recorde que, entre as muitas variantes preocupantes da covid-19 que surgiram nos últimos meses, está a P.1, a chamada ‘variante brasileira’, que devastou Manaus – e, com o vírus a circular cada vez mais, aumenta a probabilidade de uma segunda ‘variante brasileira’.