O que é que ficou da criança que cresceu no Alentejo e que adorava passar tardes na cozinha a ouvir as conversas dos mais velhos? [gargalhada] Pois é. Era uma das coisas que mais gostava de fazer… Ficou tudo dessa criança. Ficou mesmo tudo. Eu acho que um artista tem sempre esse ar de criança, esse estar sempre à procura, esse querer descobrir sempre tudo, encontrar sempre a novidade no mundo e, sobretudo, extasiar-se com ela. Identifico-me com essa criança sonhadora, introvertida, apaixonada pela representação, pelo teatro, pela palavra, pela poesia. Tudo o que eu faço é resultado dessas primeiras emoções, desse despertar para a vida.
Nessa altura, esse menino que projetava as suas filmagens para os seus amigos no quintal da avó, já sabia que lhe esperavam ‘quintais’ muito maiores? É verdade! [risos] Na casa da minha avó existia um quintal e era lá que eu fazia os meus teatros. Desenhava, escrevia, tinha uma máquina de filmar e projetava as coisas que gravava para os meus amigos. Acho que nessa altura já tinha a noção daquilo que seria o meu futuro, que o meu mundo seria sempre o teatro. Aliás, talvez pelos livros que lia ou pela minha própria maneira de ser, sempre vi o mundo um bocadinho como um grande teatro. A ficção, para mim, sempre se misturou muito com a realidade. Como vivemos num mundo projetado pelo homem, nunca conseguimos entender bem onde começa a realidade e termina a ficção.
Como é que um menino do Alentejo vem parar à capital? A minha família veio muito cedo para Lisboa. Eu sempre tive um grande contacto com o sítio de onde vim, mas julgo que quando a minha família decidiu vir para cá, tinha por volta de quatro anos. Tive um período em que fiz a primária em Vila Nova de São Bento que antes era a Aldeia Nova de São Bento, mas depois vim definitivamente para Lisboa. A capital, aos meus olhos, sempre foi uma lenda, um grande fascínio, um cenário repleto de luzes. Eu sabia que seria aqui que realizaria os meus sonhos.
Quando é que percebeu que dedicaria a sua vida à arte do espetáculo? Sempre soube desde de criança que seria isto que queria fazer da minha vida.
O que é para si o teatro? Acho que a minha resposta dirá tudo: para mim o teatro é vida, é aquilo que eu respiro. Vivi agora uma experiência muito austera, muito dura, de 14 meses afastado do teatro e custou-me muito, embora tenha aproveitado para escrever novas peças, para sonhar novos sonhos. Um afastamento forçado que nos deu cabo da vida… O regresso ao Teatro Politeama está a ser um novo processo de voltarmos a abraçar a vida.
Isso significa que, ao contrário de muitos artistas que durante este período sofreram grandes bloqueios criativos, o Filipe conseguiu escrever novas produções… Exatamente, eu não tive nenhum bloqueio criativo. Estive no Alentejo muito isolado e o único escape que tinha era sonhar, sobretudo porque também tenho uma grande responsabilidade perante os atores. Alguns deles, nomeadamente o João Frizza e o Filipe Albuquerque, não me deixaram desistir. Telefonavam-me todos os dias, fazíamos reuniões online, estavam sempre a surgir ideias novas para outros espetáculos. Portanto, criatividade foi o que não faltou! Mesmo esta nova produção, Espero por ti no Politeama, teve muitas fases, porque isto não é apenas uma revista, é uma revista cabaré e pontapé! Porque damos um grande pontapé a tudo isto! [gargalhada]
Qual é o lugar do teatro na sociedade portuguesa? O teatro está para Portugal como a Broadway está para Nova Iorque? Não, claro que não… Infelizmente nós não damos essa importância à cultura… Nem com os quase 50 anos de democracia passámos a estimá-la como devia de ser. Basta olharmos para o Orçamento do Estado… Nós somos parentes muito pobres, quase uns pedintes da sociedade… E veja, até neste confinamento se falou muito – e com toda a justiça -, do turismo, da restauração, mas muito pouco da cultura. Acredito que nem o próprio público se apercebeu do quão duro foi este momento para os artistas… As pessoas não têm noção das dificuldades que muita gente passou. Eu tenho aqui muitos artistas que foram obrigados a ir fazer outras coisas: trabalhar em supermercados, entregar comida, ajudar os hospitais, inclusive trabalhar nas obras! É uma profissão muito desprotegida, quase desprezada. Há de facto uma enorme diferença, um abismo gigante entre os teatros públicos e os teatros privados e a vida de um profissional de teatro, quem diz ator, diz um técnico, um criador, um coreógrafo, um bailarino, um músico, é muito hostilizada, muito desprezada. Isto foi uma prova duríssima, é muito triste perceber as lacunas que resistem nos apoios dados a este setor e eu acho que o público também não tem essa noção.
Lembra-se da primeira vez que subiu a um palco? O que é que sentiu? Lembro-me de ter sentido muito medo, muita responsabilidade, mas ao mesmo tempo, muita consciência de que estava a fazer aquilo que gostava, aquilo que sempre sonhei. O termos medo de falhar é normal, mas com o tempo vamos percebendo que a vida é feita disso mesmo, de falhas e triunfos, de luz e de sombra.
O Filipe passou de ator a encenador. Como viveu essa mudança? Eu acho que essa mudança está relacionada com a minha sede infinita de fazer tudo. Eu comecei pela escrita, a minha paixão era essa. Em miúdo escrevia muito, colaborava no Diário de Lisboa Juvenil onde trabalhei com o Mário Cesariny e com o Armando Tavares Rodrigues. Portanto, sempre escrevi para jornais e, foi exatamente a palavra que me trouxe ao teatro. A grande paixão pela palavra, a grande paixão pela possibilidade de, a partir da palavra, criar outros mundos. No teatro tudo começa pela palavra e só depois é que se materializam as diversas disciplinas que este acarreta. Como lhe disse, sempre desejei fazer tudo, desejei começar sempre por uma página em branco e daí construir o meu teatro. Por vezes até me acusam disso mesmo… Eu estou sempre lá, eu quero gerir todos os pormenores, do mais essencial ao mínimo detalhe, desde figurinos a cenários etc. Estou sempre inteiro em tudo aquilo que faço. Cada criação transporta até ao público a minha maneira de me exprimir, de me melhorar e, em consequência, aos outros.
Acho que uma das coisas mais bonitas que nos vem à cabeça quando pensamos em si, é a sua gargalhada. Isso liga-se imediatamente a todas as suas grandes produções. Quais são as singularidades deste género teatral? O humor é resistência. Por exemplo, passámos agora por este pesadelo todo, mas temos a necessidade de dar gargalhadas. Este novo espetáculo Espero por ti no Politeama, é exatamente isso, oferecer uma gargalhada à maior contrariedade que se pode ter na vida. Portanto, o humor é resistência, sempre!
E este é o género mais difícil de se fazer? É verdade. É o mais difícil. A comédia e, sobretudo o teatro musical, obriga a uma pluralidade de técnicas ao ator, que vão desde representar, cantar, dançar, saber de música, saber dizer, sapatear. Tudo! É quase a arte total. É como a ópera!
A técnica de revista é diferente da técnica do teatro de texto? Pode explicar-me as principais diferenças? Sim, são muitas as diferenças. A revista é um género extraordinário ao qual se dá muito pouco valor em Portugal. Contudo através dela, pelos seus trechos, sobretudo daquela a que chamamos de Revista à Portuguesa, temos uma visão muito completa deste país, a história desde a regeneração, até aos dias de hoje. Ao ler os textos da revista, ficamos a conhecer a crónica anedótica, passamos a possuir um conhecimento total e pormenorizado da nossa história. E claro, a técnica da revista exige muitíssimo do ator. Lembro-me que a coisa que mais me impressionou de ver no Teatro Português era a alegria do Vasco Santana ou da Laura Alves, o sorriso, o querer pegar o público pela mão, abraçá-lo, sentar-se quase ao seu colo e, sobretudo, o grande talento para a improvisação. No teatro de texto é diferente, os atores estudam de dois a três meses uma personagem. As exigências são outras e, as próprias características desses atores, para os atores de revista, são diferentes. Embora quase todos os grandes atores, como é o caso da Maggie Smith e Laurence Olivier, terem feito revista. É importante que um ator seja polivalente.
Considera que possa existir um estigma relativo ao teatro de revista? O estigma não é só relativamente à revista. Eu acho que o português valoriza muito pouco aquilo que é seu, o português quase que tem vergonha de ser português quando é um dos povos mais admiráveis do mundo, com uma história fabulosa, com uma identidade, caráter e força que muito poucos países têm. Mas depois tem esse complexo de inferioridade perante o estrangeiro. Veja na política ou na arte, nós ajoelhamo-nos sempre perante aquilo que é estrangeiro e não devia de ser assim, porque nós somos um povo extraordinário, um povo como há muito poucos no mundo.
Ao trabalhar com grandes elencos, realizando grandes produções, devem ser muitas as histórias vividas atrás das cortinas. Tem algum episódio em especial que me possa contar? Eu sou uma pessoa muito pouco presa ao passado, eu tenho é saudades do futuro! Portanto, em cada espetáculo, mesmo nos que são infantojuvenis como é o caso da Rapunzel, eu dou tudo, dou sempre o meu melhor. Dizem que eu sou muito rigoroso, que exijo uma enorme disciplina, que arranco quase a alma ao ator e isso é verdade. Porque eu quero que seja sempre melhor. O passado a mim pouco importa, eu quero o presente e sobretudo o futuro.
O Filipe é conhecido pela sua exigência, por puxar muito pelos atores, mas também pela sua grande generosidade. Como é que se equilibra essa balança? Já tenho muita experiência em gerir os egos. Já tenho uma grande experiência de compreensão e humanidade perante as pessoas, de saber que todos nós temos as nossas grandes fragilidades, mas também tenho a grande experiência em acreditar e querer dar sempre ao público, às pessoas que vêm ver os meus espetáculos, o melhor. Não tenho o complexo de “somos um país muito pobre e Lisboa tem poucos habitantes”. Eu faço os meus espetáculos como se estivesse em Nova Iorque ou em Londres e, digo com orgulho, que muitas versões que fiz, ditas até pelos próprios autores, são melhores do que o que se faz lá fora.
Fez 76 anos no dia 17 de Maio. Para uma pessoa que já vivenciou e presenciou tantas mudanças no país, como é que viveu os períodos de confinamento longe do palco? Vive-se com resistência e com humor. Vive-se o dia a dia, sem prever muito o futuro. Estamos num equilíbrio instável, quase suspensos. Nunca tinha pensado viver isto na minha época. Sabia pelos livros que li, pelos filmes que vi que isto poderia acontecer, mas nunca pensei vivenciá-lo. Li A Peste de Albert Camus que tem muito a ver com o que estamos a passar agora. A peste era muito comum tanto na Idade Média, como no Renascimento e até na Idade Moderna. Portanto, nós estamos a ser colocados à prova e eu acho que a humanidade ainda está muito longe de perceber que nós temos de mudar. Nós destruímo-nos, destruímos o planeta… Esta vida é uma correria para o absurdo, estas cidades cheias de latas, cheias de carros… Este correr para o vazio, este endeusamento do dinheiro, de tudo ser justificado pelo dinheiro… Se o homem não muda, o homem destrói-se e isto foi um grande aviso, que eu acho que as pessoas não estão a compreender. O homem tem de melhorar e ao fazer revistas ou teatro de texto, temos de dar este grito de alerta! Até esta produção que é uma crónica/anedota a tudo aquilo que nos acontece, é um grito para o ser humano melhorar!
Como foi estar à frente do Teatro Politeama nestes 14 meses de encerramento aquando da pandemia de covid-19? Foi dramático, muito dramático… Só agora, na última fase, é que tivemos um pequeno apoio da Câmara Municipal de Lisboa e também por parte do Ministério da Cultura, mas foi muito difícil, é muito pouco. Na verdade tudo é muito pouco para uma engrenagem tão grande, para um teatro que vive da bilheteira.
Espero por ti no Politeama é ‘um hino à vida e à alegria de sermos portugueses’, por que é que este tipo de espetáculo é tão importante nesta altura? Como está a ser a reabertura das portas? É um hino à alegria de viver! Sobretudo à alegria de viver! [gargalhada]. Eu acho que a reabertura está a correr bem, o público tem correspondido, apesar de sentir que mesmo assim, ainda existe algum medo. É preciso que as pessoas percebam que aqui existem todas as medidas de segurança necessárias, estamos a cumprir todas as normas da DGS: à entrada o público passa pela medição da febre, é encaminhado ordeiramente até às cadeiras, o distanciamento de cadeira a cadeira é mantido, os atores são testados todas as semanas… Portanto, não há razões para ter medo. Temos toda a atenção!
Pode-nos desvendar alguns pormenores? Claro que sim! Este espetáculo começa quando Mercúrio é mandado por Júpiter a ver o que se passa neste país. Então, o Deus Mercúrio encontra o português que lhe vai contar todas as aventuras e desventuras que teve durante o confinamento e já depois dele. Será a partir daí que o público ficará a conhecer todos os protagonistas desta produção que vai desde a atualidade social, política, desportiva e artística. Rimos e pomos em cena estes temas com muita ironia e muita sátira.
Os seus espetáculos são, na maior parte das vezes, precisamente sátiras que vão desde a sociedade, à política, ao desporto e à arte. O Filipe vivenciou a ditadura Salazarista, pode falar-me um bocadinho das grandes diferenças entre a maneira de se fazer teatro antes e depois do 25 de Abril? Fica-me na memória a censura. Lembro-me dos ensaios de censura, com os censores sentados na plateia a lerem o texto e a interromperem constantemente. “Corta! Corta!”. Era muito diferente. Portanto, quando agora me falam da nova censura, eu fico cheio de medo e de revolta. Já bastou de censuras na minha vida!
Como tem sido manter certos registos numa altura em que o politicamente correto tenta impor certos limites? Ora bem, acho que é precisamente por essa questão que nunca tive grandes subsídios, nem grandes ajudas do Estado. Fui sempre uma pessoa politicamente incorreta, hei de morrer politicamente incorreto e ainda bem para mim! [gargalhada].