Tenho um cão a morrer de cancro em casa – e não falo de mim. Claro que, por se tratar de um cão e não de um humano, não é suposto impressionar tanto – e não impressiona. Contudo, não deixa de ser triste.
Já escrevi algures nesta coluna sobre a morte. Tenho a certeza de não haver assunto ao qual, na minha vida, tenha dedicado mais neurónios. Nunca cheguei a grandes conclusões porque, certamente, não haverá grandes conclusões às quais chegar. Fiz o parkour clássico dos que crescem: de existencialismo para pessimismo, de pessimismo para o absurdismo, do absurdismo para o halterofilismo. Cioran magoou-me e um texto do Eduardo Lourenço oficializou o meu resgate à vida. «It gets better».
Houve, contudo, no meio desta confusão, duas frases de que não me esquecerei. Uma é de um português diletante, a outra é de um alemão alegadamente nazi – ambos figuras do século XX, narigudos e controversos. Embora as frases apresentem soluções absolutamente opostas ao mesmo problema, é engraçado notar como se complementam.
João César Monteiro, no seu filme Vai e Vem, diz-nos que «o ser humano ou o que dele resta tem que viver com a insolubilidade da vida». A frase remete, obviamente, para um absurdismo camusiano, pelo que, teoricamente, configura um lugar-comum da Filosofia. Contudo, há algo que nela me fascina – e penso que só quem fala português o poderá entender.
É a própria palavra «i-n-s-o-l-u-b-i-l-i-d-a-d-e»: esta encerra, em si e na sua soletração, um certo soluço – o mesmo que encontramos em tentar entender a vida. É um trava línguas e um trava teclados. Por achar piada a este paralelismo – e à frase em si – não me esqueci dela.
A outra frase, bastante mais poderosa, pertence a Heidegger: «Se eu levar a morte à minha vida, reconhecê-la e encará-la diretamente [squarely], libertar-me-ei da ansiedade da morte e da insignificância da vida – e apenas aí serei livre para me tornar eu mesmo». Aqui, Heidegger, ao contrário de César Monteiro, torna a morte numa coisa absolutamente solucionável que facilmente poderá ser posta para trás das costas.
O que mais gosto na frase é a expressão «squarely». Ao sugerir esta forma de enfrentar a morte, o alemão transforma-a num calculável quadrado que devemos encarar sem rodeios e com plena consciência do que significa. E assim é, e assim acontecerá.
E como se complementam duas frases que parecem antagónicas? Por um lado devemos aceitar a insolubilidade da vida – entender que tudo indica que não caminhamos para uma escatologia ou para uma cidade idílica de Deus – e não nos deixar perturbar demasiado com isso. Devemos dançar e fazer o pino em cima dessa consciência – em suma, divertirmo-nos muito: uns em discotecas, outros em bibliotecas – cada um curte como sabe. Depois, reconhecer e assimilar ‘quadradamente’ que isto tem um fim e que a morte chegará.
Tal consciência da efemeridade da vida e da iminência – e eminência – da morte nada mais faz do que ser um absoluto motor do seu valor (como se fossem os motores das motos-de-água que fazem bolhas quando ligam: só quando se os liga é que aquilo se torna divertido – até lá é uma valente seca).
A morte, a morte, a morte. Por mais que queiramos não a conseguiremos espantar. Aceitemo-la, então, conscientes de que uma vida sem solução será sempre mais divertida do que a sua inexistência. Mais divertida, até, do que não nascer e ficar, para sempre, a levitar na antecâmara do nada dobrado em oitos – para onde todos os que leem este texto irão, em breve, descansar. Sorriam ao chegar e, enquanto não for o caso, muitos peões de mota-de-água.