Naftali Bennett. Sionismo religioso ao leme de Israel

O antigo comando, tornando magnata em Manhattan e estrela do ultranacionalismo judaico em Telavive, ganhou a lotaria da política, apostando os seus sete deputados e ganhando o cargo de primeiro-ministro. No caminho, derrubou o velho ‘rei Bibi’, que em tempos viu como um pai, antes de se desentenderem.

Quando 67 soldados de elite israelitas avançaram sobre o sul do Líbano, comandados por um ambicioso oficial de 24 anos, caminhando furtivamente entre aldeias abandonadas, deram por si sob fogo de morteiro. Era 18 de abril de 1996, decorria a Operação Vinhas da Ira, represália pelo disparo de uns trinta mísseis pelo Hezbollah. A região fronteiriça já fora varrida por pesados bombardeamentos israelitas, que desalojariam mais de 400 mil civis, mas os comandos da Sayeret Maglan, especialistas em reconhecimento atrás das linhas inimigas, tinham ordens para destruir lança-mísseis Katyusha, nos arredores da aldeia de Qana, a 12 km da fronteira. O comandante da unidade sentia-se tão confiante que até se deu ao luxo de ignorar os seus superiores, decidindo fazer o caminho numa só noite, não em duas, confessaria o próprio, anos depois. Mas, quando caíram entre cinco a oito morteiros a dezenas de metros de si, disparados a partir de um cemitério, o oficial entrou em pânico, «soava histérico», contariam fontes no forças armadas ao Channel 10. Pegou no rádio e informou que a sua unidade tinha sofrido baixas, o que não era o caso.

A vingança não se fez esperar. 15 minutos depois, 40 disparos de artilharia desfaziam um quartel das Nações Unidas nos arredores de Qana, onde estavam refugiados quase 800 civis, massacrando 106 pessoas e ferindo 110, incluindo quatro capacetes azuis. «Quando cheguei aos portões da ONU, o sangue corria em torrentes», escreveu Robert Fisk, correspondente do Independent. «Conseguia cheirá-lo. Inundava os nossos sapatos, prendia-se a eles como cola. Havia pernas e braços, bebés sem cabeça, cabeças de velhos sem corpo. O corpo de um homem pendia em dois pedaços numa árvore a arder».

A semana passada, o jovem oficial que entrou em pânico e soltou o inferno sobre Qana tornou-se o primeiro-ministro de Israel. Naftali Bennett, hoje com 49 anos, milionário e líder do Yamina (’à direita’, em hebraico), um partido ultranacionalista judaico, soube aproveitar os seus sete deputados no Knesset, ou Parlamento, montando uma estranha coligação – juntando partidos islamitas, centristas e nacionalistas judaicos, com uma margem de um único deputado – que derrubou o seu antigo patrono, o velho rei da política israelita, Benjamin ´Bibi’ Netanyahu. Após 12 anos de Bibi no governo, agora é a vez de Bennett, que deverá ficar no cargo por dois anos, antes de trocar com o centrista Yair Lapid, ex-apresentador de televisão e líder do Yesh Atid, o maior partido da coligação, com 17 deputados.

 

De Telavive aos colonatos

Bennett, judeu ortodoxo moderno, será o primeiro-ministro que usa regularmente um quipá. Num país fundado por sionistas laicos como David Ben-Gurion, até virados à esquerda economicamente, o novo primeiro-ministro é exemplo perfeito da mudança geracional nas elites israelitas. Morador numa luxuosa vila em Ra’anana, um polo tecnológico a norte de Telavive, cheio de programadores e executivos, desfrutando de uma fortuna construída no Upper East Side, em Nova Iorque, vendendo software de segurança, Bennett não vê os colonatos judaicos como algo distante, o bastião de fanáticos religiosos. Mas sim como algo crucial, o núcleo espiritual de Israel, a vanguarda na sua missão divina de tomar a Terra Prometida.

Já no que toca aos palestinianos que nasceram e viveram nessa terra, que veem as aldeias e oliveiras dos seus antepassados arrasadas por bulldozers israelitas, Bennett não é de contemplações. «Farei tudo no meu poder para garantir que eles nunca conseguirão um Estado», prometeu à New Yorker, numa entrevista de 2013, quando já era uma estrela ascendente, líder do partido Lar Judaico, de que se afastou após se desentender com rabis influentes, juntando-se a outros grupos do sionismo religioso para criar o Yamina.

O milionário nacionalista – um dos primeiros comandos abertamente religioso, num exército que então era sobretudo laico – é «tão rápido a fazer referência a um episódio de Seinfeld como a uma passagem da Tora», garantia que não haveria mais negociações, «nada de mais ilusões», e que «nunca haverá um plano de paz com os palestinianos». Nada de inesperado vindo de alguém que sempre teve como companheira de viagem – e agora terá como sua ministra do Interior – Ayelet Shaked, que em tempos escreveu no Facebook que o inimigo é «o povo palestiniano», apelando à morte das suas mães, para que não criem «pequenas serpentes».

Entretanto, a posição de Bennett – que passou por cinco partidos, vendeu a sua empresa de software nos EUA pelo equivalente a mais de 100 milhões de euros, segundo a Reuters – quanto à Palestina não se alterou, mas terá de mostrar alguma flexibilidade para não afastar os seus parceiros de coligação. Na imprensa israelita escreve-se que, por agora, a sua opção será manter o status quo, ou seja, a contínua expansão dos colonatos, à margem da lei internacional, abocanhando terra e recursos. Talvez Bennett nem consiga anexar a Cisjordânia, algo com que sempre sonhou, sendo um dos mais ávidos defensores disso enquanto ministro de Netanyahu, com quem esteve coligado entre 2013 a 2019.

 

Tal pai, tal filho?

Ironicamente, talvez ninguém tenha feito tanto pela carreira política de Bennett como Netanyahu, 22 anos mais velho. No seu pico, a relação era de adoração, descrita como quase entre pai e filho, nos tempos em que Bibi era apenas líder do Likud, relegado à oposição, e Bennett era seu chefe de gabinete, pro bono, entre 2006 e 2008. Era uma paixão antiga, Bennett crescera fascinado com contos de guerreiros judaicos como Yoni Netanyahu, irmão de Benjamin, um comandante das forças especiais morto em 1976, no aeroporto de Entebbe, no Uganda, durante o resgate de uma centena de israelitas sequestrados – o futuro sucessor de Bibi até deu o nome de Yoni ao seu primeiro filho. No entanto, a relação azedou quando Bennett acabou despedido por Netanyahu, após cair nas más graças da mulher, Sara, que, segundo o rumor na imprensa israelita, considerava Bennett demasiado ambicioso.

Para Netanyahu – que, quando era apenas um jovem diplomata, acabado de sair das forças especiais, já prometia ser primeiro-ministro, dizendo que «os dinossauros do Likud estão a morrer e os príncipes têm demasiado sangue azul para lutar pela coroa», segundo o Haaretz – devia ser um pouco como olhar-se ao espelho.

No entanto, apesar das semelhanças, Bibi e o seu sucessor vêm de tradições bem distintas. O antigo primeiro-ministro vem da linha zionista revisionista, ferozmente laica e conservadora, herdeira do Irgun, uma organização terrorista nos tempos do Mandato Britânico da Palestina, moldada à imagem de Ze’ev Jabotinsky, que queria uma «regime de colonização», presente «de ambos os lados do Jordão».Durante décadas, os revisionistas disputaram Israel com os trabalhistas, que, nos últimos anos, acabaram esmagados pela viragem à direita do público israelita. Dando espaço ao sionismo religioso, articulado pelo rabi Abraham Isaac Kook, que via sionistas laicos como peões num plano divino, construindo inadvertidamente o Reino de Deus pela força das armas, numa espécie de messianismo sem messias. O assassinato do primeiro-ministro Yitzhak Rabin, em 1995, por um judeu religioso opositor dos acordos de Oslo, foi um revés – nesses anos, Bennett, que abandonara o quipá ao entrar no exército, voltaria a usá-lo, furioso com a suspeição – para o movimento, mas este voltaria com toda a força, nos tempos de Bibi.

Na base do sionismo religioso estão colonatos, cheios de judeus com fé suficiente para abandonar o conforto da cidade e viverem escondidos atrás de muros e soldados, paranoicos, em terras que pertenceram a outrem, pelo sonho da Grande Israel – ou, noutros casos, porque o imobiliário é muito mais barato lá. Aliás, o próprio Bennett mudou-se para o colonato de Beit Aryeh, na Cisjordânia, por convicção, mas em quatro meses estava de regresso a Manhattan, e depois ao luxo de Ra’anana.

Há muito que o crescente poder político dos colonos – são menos de 700 mil dos 9,3 milhões de israelitas, mas muito politicamente ativos e com uma taxa de natalidade superior à média nacional – causa desconforto em Israel. «É impossível ver o que está a acontecer como algo mais que uma província colonial a tomar o seu país mãe», queixava-se Ari Shavit, colunista do Haaretz, há mais de uma década. Agora, com o país governado pela primeira vez por um colono, esses receios só aumentarão. Sobretudo se as suas promessas de mais pressão sobre os palestinianos que estão a ser despejados em Jerusalém Oriental – aquilo que desencadeou os recentes bombardeamentos em Gaza, ainda antes da saída de Netanyahu – causarem novos confrontos.