O Parlamento Europeu aprovou, nesta quinta-feira, uma recomendação que atenta contra o direito dos médicos à objeção de consciência para rejeitarem a realização de um aborto.
A recomendação do Parlamento Europeu – que reveste a forma de relatório não vinculativo – foi aprovada com 378 a favor, 255 contra e 42 abstenções. Nestes votos a favor, curiosamente, constam o nome de dois médicos portugueses: Manuel Pizarro – presidente da distrital do PS_Porto – e Sara Cerdes, também eurodeputada eleita pelos socialistas.
O relatório, cujo título é A situação da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos na UE no contexto da saúde das mulheres, ficou conhecido como ‘relatório Matic’ – sendo este o apelido do seu proponente, um eurodeputado croata membro do Progressive Alliance of Socialists and Democrats, família europeia da qual faz parte o Partido Socialista português.
Foram os artigos no ponto d) – sob a epígrafe «Serviços de aborto seguro e legal baseados na saúde e nos direitos das mulheres» – que geraram maior discussão no plenário.
O ponto 34º, por exemplo, «insta os Estados-membros a despenalizarem o aborto e a eliminarem e combaterem os obstáculos ao aborto legal (…)».
Já o ponto 37º – mais contestado – «lamenta que, por vezes, a prática comum nos Estados-membros permita que profissionais médicos – e, em algumas ocasiões, instituições médicas inteiras – se recusem a prestar serviços de saúde com base na chamada cláusula de consciência, o que conduz à recusa de serviços de aborto por motivos de religião ou consciência e põe em perigo a vida e os direitos das mulheres». Ainda o ponto 38º «exorta os Estados-membros a aplicarem medidas regulamentares e executivas eficazes, a fim de garantir que a cláusula de consciência não põe em risco o acesso atempado das mulheres aos cuidados de Saúde Sexual e Reprodutiva».
Saliente-se, porém, que este articulado não é vinculativo. Trata-se de um ‘Relatório’ de iniciativa em que há, basicamente, um conjunto de ‘considerandos’ cujo objetivo é meramente indicar, dirigindo-se ao Conselho Europeu e aos Estados-membros, uma pré-disposição do Parlamento Europeu.
Ao Nascer do SOL, Fausto de Quadros, professor catedrático jubilado da FDUL, explica que a resolução apenas «é valida como mero ato político. Não é jurídica ou vinculativa, pois não obedeceu a um procedimento legislativo». Para Fausto de Quadros, «os atos legislativos que o Parlamento aprova são regulamentos, diretivas, ou decisões», não sendo o caso deste ‘relatório Matic’, que «não obedeceu ao formalismo do artº 288 e seguintes». É perentório: «O Conselho da EU não foi ouvido. E o Parlamento Europeu, resolveu, por impulso de um deputado croata, aprovar uma resolução que não é ato legislativo, mas sim um ato meramente político que não obriga ninguém a seguir os seus passos. Já há países que dizem que não vão seguir a norma. É um estado de alma».
Bastonário dos médicos arrasa eurodeputados
Confrontado com a aprovação deste ‘Relatório Matic’ pelo Nascer do SOL, o bastonário da Ordem dos Médicos não poupa nas críticas aos eurodeputados. «A objeção de consciência não é uma brincadeira, mas sim das coisas mais importantes que temos», realça Miguel Guimarães, frisando que não se pode «impor às pessoas praticarem um ato que põe em causa a suas consciência». O bastonário também salienta que se trata apenas de uma recomendação que não poderá ser seguida, já que considera que «nem outra coisa poderia ser porque colocaria em causa a democracia».
Quando ao facto de o documento querer considerar um aborto como um direito humano, Miguel Guimarães acha que tal é «excessivo e contraditório» com a própria carta dos Direitos Humanos – uma vez que é esta que precisamente consagrada o direito à vida.
O médico mostra-se ainda preocupado com o facto de existir «este tipo de recomendações», considerando que estas «podem causar um mal estar generalizado dentro dos direitos liberdades e garantias».
«Tal como nas grandes guerras, tenta-se aprovar uma série de coisa nos pingos da chuva. É o que está a acontecer no Parlamento Europeu. Este tipo de coisas são excessivamente sérias para serem discutidas, se quiser, desta forma como o PE está a fazer», acrescentou o bastonário, condenando todo o processo seguido pelos eurodeputados para aprovar o ‘Ralatório Matic’.
Questionado sobre o facto de dois médicos portugueses terem votado a favor do relatório, Miguel Guimarães refere que ambos estão «a fazer política e não medicina».
«São cidadãos como outros quaisquer», salvaguarda o bastonário, acrescentando: «E por isso é que a liberdade de consciência dá jeito numas coisas e noutras não».
Miguel Guimarães confessa que lhe fazem confusão tais votos – «não só deles» mas de todos os que votaram favor –, porque «aqui não está a ser colocada a validade do aborto, mas sim haver médicos e enfermeiros a deixarem de poder exercer a sua objeção de consciência nesta matéria. E de serem obrigados a praticar os abortos».