Um Fernando que não mace

Há algo que me irrita nisto de brincar à escrita. Algo que me irritou ainda mais por o MEC o ter confirmado numa recente entrevista ao Expresso. Disse o dito que, quando escrevemos, escrevemos invariavelmente sobre nós. Podemos falar da formiga e do candeeiro, mas ao fim ao cabo aquilo é sobre nós. O que…

Um amigo disse-me que as minhas crónicas estavam a ficar maçadoras e que deveria escrever mais sobre a atualidade. Dei-lhe ouvidos e esta semana trouxe à baila um senhor atualérrimo, lisboeta e que faz as manchetes de todas os jornais do país: Fernando… Pessoa.

Há que dizer que este ex-amigo, em princípio, tem razão: eu consigo entender que as minhas crónicas possam andar maçadoras. Morte aqui, morte acolá. Escrever sobre a vida às terças-feiras quando ‘tá de chuva’ e sobre metafísica às quartas-feiras quando a sopa está salgada. Blá blá whiskas saquetas.

Certo – eu percebo.

O que me leva a perguntar: porque é que ando a escrever crónicas tão maçadoras? Será que, por ter íman para pensamentos ‘maçadores’, não lhes consigo fugir e os meus textos tornam-se inevitavelmente maçadores?

Há algo que me irrita nisto de brincar à escrita. Algo que me irritou ainda mais por o MEC o ter confirmado numa recente entrevista ao Expresso. Disse o dito que, quando escrevemos, escrevemos invariavelmente sobre nós. Podemos falar da formiga e do candeeiro, mas ao fim ao cabo aquilo é sobre nós. O que me irrita é não conseguir prová-lo errado. Pelo menos não através de mim. Tenho muitas dificuldades em sair dessa prisão de ego – e esta crónica é uma admissão disso.

Não estou só. O MEC – não tentando comparar-me a ele ou àquele que a seguir virá –, por exemplo, não consegue sair da persona metade-inglesa-metade-portuguesa que observa de cima a tugalândia mas que na verdade faz parte dela. Está absolutamente preso a isso. O Lobo Antunes, por sua vez, também não consegue evitar virar um frasco de ácido sulfúrico em cima de cada crónica que escreve. Isto é: nenhum deles consegue evitar-se a si mesmo na sua escrita. Mas há quem consiga – ou pelo menos quem pareça conseguir. Há aqueles que parecem transmutar-se do próprio corpo. Em que se sente que a escrita não está presa à pessoa. É o caso do Pessoa.

Conheço o mesmo de Pessoa que qualquer pessoa com gosto mínimo por literatura conhece. Não trago aqui teses académicas nem estudos pessoanos. Trago uma sensação. Fernando Pessoa, com a história dos heterónimos, foge a si de forma mágica. Parece um Peter Pan que salta de lugar em lugar dentro de si. É azul, para depois ser vermelho, para depois ser verde. E quando é azul é só azul. Não é azul com pintinhas vermelhas. E quando é vermelho, é apenas vermelho. Não mistura um pouco de verde. Tanto consegue ser uma estrela de rock como um contabilista. Pessoa consegue libertar-se de si quando escreve – e é por isso que é… tambores porque nunca foi dito antes… um génio.

E é esta sua fluidez de personalidade – ou espírito ou baço ou sei lá o quê – que fez com que, na minha cabeça, sempre o distinguisse dos demais autores. E acredito, solenemente, que esta tal fluidez de personalidade não seja apenas uma performance literária. Acredito que Pessoa tanto fosse árvore como arranha-céus. Canalizador como papa-formigas. De ‘tantas almas ter’, tanto escrevia um como outro. Fique-se, então, com uma oitava sua, para saborear devagarinho enquanto não vira a página (não valeria nunca a pena alongar a minha prosa depois da sua poesia, pois tudo se tornaria poluição escrita).
 

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é.

 

Guimarães, 24 de Junho de 2021