O título desta crónica reproduz o da 1ª página do Nascer do SOL da semana passada sobre o caso de uma criança de dois anos que esteve 36 horas desaparecida em Proença-a-Velha. O menino terá saído de casa sozinho, pois os pais – ele uruguaio e ela portuguesa, neta do escritor Nuno de Bragança – vivem no campo e têm a porta sempre aberta.
Ora, o diretor do jornal não podia ter escolhido melhor título para encabeçar aquela notícia. A palavra ‘incrível’ significa não crível, inacreditável. E a história que veio a público não é, de facto, digna de crédito.
Uma das coisas que estranhei foi a rapidez com que a Polícia – e os comentadores mais próximos dela – afastaram a hipótese de crime. Ainda o menino não tinha dado entrada no hospital – e, portanto, não tinha sido sujeito a exames médicos – e já as autoridades diziam que o caso estava «encerrado», pediam aos jornalistas para não enveredarem por «teorias da conspiração» e afirmavam que se tratara de um «desaparecimento espontâneo».
Nunca tinha assistido a uma coisa assim. Normalmente, as polícias dizem que todas as hipóteses estão em aberto, que é errado prosseguir uma só linha de investigação, etc. Mas neste caso passava-se exatamente o contrário: dava-se o caso por encerrado ainda sem se saber o que tinha acontecido.
Só tenho uma explicação para isto: a Polícia não quis alertar as pessoas eventualmente envolvidas no desaparecimento, não quis pô-las de sobreaviso, para ver se elas se ‘denunciavam’. Mas se foi assim, a estratégia policial foi demasiado óbvia.
Mas vamos ao caso. O menino saiu de casa dos pais entre as 6h30 e as 8h00, vestido – ter-se-á vestido sozinho –, mais tarde largou as roupas e as galochas, andou todo o dia à deriva, passou a noite ao relento, andou o dia seguinte de novo à deriva, e foi encontrado por volta das 20h00. Esteve sozinho, portanto, cerca de 36 horas, nas quais – segundo as autoridades – terá percorrido cerca de 10 quilómetros.
Ora, quando a criança foi encontrada, como estava? Desfalecida? Em pânico? Muito ferida? Nada disso: parecia calma, tinha «pequenas escoriações» nos joelhos, uns arranhões dispersos e estava «ligeiramente desidratada».
Alguém pode acreditar nesta história?
Comecemos pela roupa. Não faz grande sentido que uma criança, depois de se ter vestido, se dispa a seguir. Despir-se porquê? Para quê? Para tomar banho no rio? É possível mas não é muito provável.
A partir daqui, a criança está nua e descalça. E sem uma peça de roupa caminha pelo campo. Ora, isto já não é mesmo possível. Tenho um monte no Alentejo onde o mato é muito parecido com o daquela zona, e posso garantir que é impossível andar no campo descalço. Há cardos, há arbustos com picos, que se enterram nos pés e tornam o avanço insuportável. Nem um adulto calejado consegue caminhar muitos metros descalço no mato, quanto mais um bebé. Andar um dia descalço no campo atravessando zonas de mato é materialmente impossível.
Há a hipótese, claro, de a criança ter andado sempre por caminhos rurais. Mas caminhar muito tempo numa estrada dessas, de piso irregular, com pedras soltas e ciscos a enfiar-se na planta dos pés, é igualmente inverosímil.
Vamos agora às escoriações. Se a criança andou pelo mato, que em certas zonas atingia mais de um metro de altura, tinha de ter arranhões e até feridas em todo o corpo: nas pernas, no peito, nos braços, na cara. Se andou pela estrada, os pés estariam num estado miserável, feridos e ensanguentados. E, sendo o cansaço inevitável, cairia com frequência, magoando-se ainda mais.
Depois, tendo andado muitas horas ao sol, nu – e sendo muito branco de pele –, o bebé apanharia necessariamente um escaldão. Nesta época do ano, o Sol, mesmo encoberto, queima.
E a desidratação? Claro que o menino pode ter bebido água num ribeiro. Mas não seria fácil. Beber diretamente da água é muito difícil (correndo o risco de afogamento) e beber fazendo da mão concha é complicado para uma criança tão pequena.
Finalmente há o cão – aliás, uma cadela – de que ainda não falámos. O menino saiu da propriedade supostamente acompanhado pela cadela – e apareceu sozinho. Ora, um cão não abandona uma criança. Para explicar o ‘enigma’, a Polícia afiançou que o menino tinha passado pelo buraco de uma rede onde o cão não conseguira passar. Sucede que também esta história é incrível. Qualquer pessoa que tenha cão sabe que os cães passam pelos sítios mais improváveis. Onde um cão mete a cabeça consegue passar o corpo. O meu cão – que não é tão pequeno como isso, pois pesa cerca de 20 Kg – passa por sítios onde eu tenho dificuldade em meter o punho.
Se uma criança passou pelo buraco de uma vedação, passaria por lá um cão com o dobro do tamanho. Repito: só quem não tenha cão pode acreditar que um menino passou por um buraco e o cão ficou à porta…
Toda esta história é, pois, inacreditável. A hipótese mais provável é que o menino tenha sido levado dali por alguém e depois colocado perto local onde apareceu. Isto explicaria a distância enorme a que estava de casa (alguém o transportou), explicaria a falta de ferimentos graves ou queimaduras solares, explicaria a ausência de pânico ou exaustão, explicaria a desistência do cão. E explicaria ainda a falta de roupa. Sendo a roupa a principal identificação de uma criança raptada, a primeira coisa que um eventual raptor faria seria despi-la.
Entretanto, como parece não ter havido agressão sexual, só encontro um motivo para o ‘rapto’: tratar-se de um ato de vingança para assustar a família. Como sabemos, em casos destes os primeiros suspeitos são os pais ou os familiares próximos. Mas aqui podem ter sido vizinhos que não gostassem daquela família, que estivessem em guerra com ela, e quisessem pregar-lhe um valente susto.
Enfim, todas as especulações são possíveis. Impossível é a história que foi contada.
P.S. – O facto de o menino não ter tido logo alta no hospital, permanecendo internado mais de três dias apesar de só ter ligeiras escoriações, também dá que pensar…