Onde nos leva a evolução tecnológica? Eis uma pergunta que fascina uns e assusta outros. Há quem não a perceba e rejeite, e há quem a “abrace” e compreenda. A verdade é que a “migração” das mais variadas áreas para o digital tem sido uma realidade que a pandemia só veio acelerar. Mas como se tem “comportado” a arte perante essa mudança? Se antes comprávamos o bilhete à entrada de cada museu, se combinávamos uma tarde em família para visitar palácios, monumentos ou galerias de arte, atualmente essas visitas estão à distância de um “clique”, sem ser necessário sair de casa. Ou da frente do ecrã. A pandemia da covid-19 obrigou muitas dessas instituições a alterarem a sua estratégia: com as portas fechadas e sem a possibilidade de receber visitantes, era necessário chegar até eles de outra maneira. E o digital mostrou-se a melhor forma de o fazer.
Contudo, além fronteiras, há ainda outra questão que se coloca…
O FUTURO DOS MUSEUS NAS MÃOS DA NETFLIX? O Museu de Brooklyn, em Nova Iorque, tem uma nova exposição organizada pela plataforma de streaming Netflix. Não, esta não é uma exposição que traz o ambiente físico de um museu para o mundo online, não oferece aos visitantes uma viagem pelas salas e exposições, com explicações das peças, tal como tem acontecido em algumas plataformas como o Tik Tok , o Instagram ou o Twitter (facetas que muitos museus ao redor do mundo implementaram nos últimos tempos, em grande parte devido à obrigatoriedade do fecho de portas como consequência da situação pandémica global). Esta é, sim, uma exposição criada “por e para o mundo digital”: não existe na sala física do museu, apenas nos ecrãs dos computadores e telemóveis, possuindo de forma bem visivel o logótipo da plataforma responsável pela sua criação.
Com curadoria de Matthew Yokobosky, a exposição mostra os trajes utilizados nas séries de sucesso da Netflix, The Crown e Gambito de Dama. O visitante virtual pode observar todos os detalhes das roupas e adereços utilizados nestas produções e ainda, obter informações sobre os seus estilistas e a época em que foram efetivamente usados. Além disso, tem acesso a clipes das séries e entrevistas com os atores.
Será esta outra das muitas consequências da pandemia? Estarão os museus prontos para tudo, incluindo depender também da Netflix? Ou da Amazon? Ou do Google?
Questionado pelo diário espanhol El Confidencial, Vincent Poussou, diretor digital do Grand Palais, em Paris, admite que esta “é uma questão complicada”. “Sempre pensámos em como conseguiríamos trabalhar com o GAFA [sigla para as empresas Google, Amazon, Facebook, Apple] e nossa resposta é, por exemplo, não dar tudo ao Google, mas sim trabalhar com ele. Acho que se tem de encontrar uma boa forma de trabalhar com essas empresas e, ao mesmo tempo, manter-se independente”, defendeu o especialista, que, em relação à Netflix, não faz muitas objeções: “Ainda não trabalhamos com ela, mas acho que é uma empresa interessante para museus, principalmente pela possibilidade de explorar diferentes maneiras de contar uma história da arte”. Para o diretor digital, a melhor forma de gerir a relação com esses gigantes é “não ser totalmente aberto ou totalmente fechado” , mas sim criar uma “relação de interesse entre os dois e que cada um esteja no mesmo nível”, explicou.
Karin Ohlenschläger, crítica cultural que até há poucas semanas dirigia o Centro Laboral de Arte e Criação Industrial de Gijón, também está “empenhada neste tipo de aliança”, reconhecendo que os museus colaboram há muito tempo com o Google, a Apple e a Microsoft, com “o intuito de digitalizar as suas coleções”. “Estas conexões entre património material e digital, entre átomos e bytes, são hoje vitais para a sobrevivência no mundo globalizado, cada vez mais competitivo e sujeito aos imperativos da economia”, declarou também ao El Confidencial. Tal como Poussou, a sua única advertência é negociar bem com essas corporações: “A chave é saber pactuar as condições e o preço que pagamos por estarmos presentes no mundo paralelo dos bytes”.
Ao telefone com o i, Maria de Jesus Monge, presidente da comissão nacional do Conselho Internacional de Museus (ICOM-Portugal), admitiu, que apesar de perceber que, neste momento, essas colaborações são uma “tentação”, dado o poder dessas plataformas. Mas esse tipo de parceria apenas acontece nos chamados “mega museus” – não é o tipo de experiência que pode ser replicada a outros níveis.
Maria de Jesus Monge considera que “essas colaborações são de uma forma geral muito economicistas e a ideia do impacto financeiro que têm acaba por sobrepor-se àquilo que devia ser a fruição da arte, que deixa de ter uma função social, deixa de poder contribuir para a melhoria de uma série de níveis de desenvolvimento, para passar a ser apenas um bem”. E deu o exemplo da plataforma Google Arts: “Quando nós cedemos sistematicamente os nossos direitos de imagem à plataforma Google Arts, esta não perde dinheiro, nós é que perdemos completamente os direitos às imagens que partilhamos”, acrescentou. Para a responsável, há uma grande falta de regulamentação. Contudo, vê uma “luz ao fundo do túnel”, com a nova legislação sobre o digital que já foi aprovada na União Europeia e que está a ser preparada para entrar em vigor em Portugal. “É um novo mundo, que deve ser utilizado como ferramenta e não como um fim”, alerta.
A EVOLUÇÃO DAS ESTRATÉGIAS DIGITAIS As grandes questões prendem-se precisamente com essa “aliança”: essas negociações permitem uma “divisão de poderes” igualitária? Outras empresas culturais, como editoras, fizeram bem essas negociações antes? Estarão mais fortes do que há dez anos? E os criadores? Serão as exposições cada vez mais “à la carte”?
O debate esteve em cima da mesa na primeira edição da Feira Internacional de Cidades e Museus, realizada esta semana em Málaga, na qual foram apresentadas novas propostas para o futuro das galerias de arte e que teve como centro de discussão a questão digital. Este ano, todos os museus foram obrigados a dar esse “grande salto”, devido à falta de público presencial. E, embora alguns tenham conseguido abrir e inaugurar exposições, não atingiram o número de visitantes de anos anteriores. Segundo o El Confidencial, todos os museus admitem ter tido em 2020 entre 70 e 80% menos visitantes do que no ano anterior. E, por isso, a grande questão instalou-se: como cativar novamente o público e atraí-lo de volta aos museus?
“Os museus têm feito muitos esforços para resistir nas redes sociais, mas o facto das pessoas colocarem “like” não significa que foram efetivamente ver a exposição”, disse Vincent Poussou àquele diário digital espanhol. Para o diretor digital, o caminho do futuro são os “projetos com realidade virtual e realidade aumentada que permitam até montar exposições com pinturas que o museu não possui”. Com todas estas novas iniciativas, “o museu deve ter em conta que a maioria dos visitantes dessas exposições não são especialistas em arte, mas sim pessoas que de vez em quando vão ver alguma coisa, não esquecendo que o público está a envelhecer”. Assim, defende, é necessário pensar a cultura de um jovem do ano 2000, é 90% digital (redes sociais, videojogos, vídeos do YouTube, entre outras coisas) e, ir a um museu é algo muito distante”.
Mas em Portugal o paradigma é diferente, pois apesar de muitos museus já terem “dado o salto” para o digital – que, segundo Maria de Jesus Monge, foi a “ferramenta que nos permitiu continuar ligados aos nossos públicos e continuarmos a trabalhar” – o grande problema é a falta de condições humanas e técnicas para conseguir fazer um bom trabalho nesse campo. “Nós não estávamos preparados para isso, a esmagadora maioria dos museus não têm as condições técnicas necessárias, nem têm gente e a que têm, dado o seu envelhecimento e dada a formação de base, não possui provavelmente o perfil mais adequado para tirar o maior proveito possível de tudo aquilo que vai sendo posto à nossa disposição, nomeadamente nesta questão digital”, admite a presidente.
UM ASSISTENTE VIRTUAL PERSONALIZADO O conhecimento do público, o que este vê, do que gosta, que pinturas aprecia, foi outro dos temas a debater na Feira Internacional de Cidades e Museus. Na verdade, já existem empresas que se dedicam a medir esses dados e que estão a trabalhar lado a lado com instituições culturais. É o caso da Museummate, uma empresa de audioguias, que em 2019 criou um assistente virtual que acompanha o visitante durante todo o percurso da exposição, e que é instalado, seja num dispositivo físico ou no próprio telemóvel do turista – uma ferramenta de gestão de visitantes personalizada que permite gerar conhecimento e um grande volume de dados dos visitantes em tempo real.
Cada visitante possui um assistente que sabe exatamente cada passo que este dá e quanto tempo demora a apreciar cada obra de arte. “Isso leva-nos a perceber de que exposição gostou mais, gostou menos… Ao saber que o visitante está em determinado local do museu, podemos sugerir que vá até à cafetaria, ou ao saber que este passou mais tempo a apreciar uma determinada peça, podemos sugerir um produto que tenhamos na loja do seu interesse. Ou seja, este assistente permite profissionalizar a gestão”, explica Alejandro López, assessor da Museummate. Esta ferramenta já pode ser utilizada nos museus Guggenheim em Bilbao, no Capricho de Gaudí, na Cidade das Artes e Ciências de Valência, no Museu Egípcio em Turim e na Coleção Peggy Guggenheim em Veneza.
Para a responsável pela comissão nacional do Conselho Internacional de Museus, em Portugal falar sobre este tipo de assistentes é “inverter a ordem dos fatores”. “Estamos em realidades de museus em mundos paralelos, porque se não temos dinheiro sequer para ter o ar condicionado ligado, não temos funcionários para ter as portas abertas, quanto mais estar a pensar nesse tipo de estratégias”, reflete. “Primeiro de tudo nós temos de ter a porta aberta, só depois é que podemos oferecer novas formas de fazer a visita e preparar conteúdos”.
A ARTE COMO UM MERO ESPETÁCULO LUCRATIVO Mas não nos estaremos cada vez mais na senda de uma “mercantilização da arte”? Se interrogarmos as pessoas na rua quais seriam os três pintores mais citados? E se apenas se exibissem os seus trabalhos? Iríamos ver a mesma exposição em todo o mundo?
A ex-diretora do LABoral sublinha que “quando o acesso a novos conhecimentos é instrumentalizado e reduzido a um mero espetáculo para as novas feiras de banalidades, podem surgir iniciativas como ‘Van Gogh Alive’”. Esta exposição virtual foi inaugurada no final de 2019 no Círculo de Bellas Artes de Madrid depois de passar por outras salas em full tour mundial e foi vendida como “uma experiência que combina 3.000 imagens em movimento, luz e música, fazendo o visitante mergulhar totalmente no universo do artista holandês”. De momento, encontra-se instalada em Lisboa, onde pode ser visitada até 25 de julho. Para a crítica cultural, esta nova forma de se ver a arte, é quase como um “macmenu de arte”. Até porque não há peças originais envolvidas. “Estamos a falar da outra face da moeda que pouco tem a ver com o artista e sua obra, ou com a história da arte, que neste caso só serve como um recurso altamente distorcido para a criação de mercadorias e shows, aparentemente muito procurados e lucrativos”, argumentou.
Já Vincent Poussou defendeu este tipo de experiências imersivas: “Imaginemos que se aproxima uma nova pandemia… Com estes meios digitais, poderíamos ter uma exposição numa sala vazia, que através dos óculos 3D, ou do próprio telemóvel, se enchia de obras em realidade aumentada. Assim, a questão da distância social ou da transferência de obras não teria importância”, explicou. “Se tivermos uma proposta digital que explica cada uma das obras, os visitantes ficarão a entender melhor o trabalho e ficarão muito mais ricos culturalmente. […] Se as exposições digitais ajudam a transmitir conhecimento, temos de trabalhar com isso”, disse ao El Confidencial.
Maria de Jesus Monge só concorda em parte. Acha que o digital é “extraordinário pela capacidade que tem de nos permitir aceder a conteúdos, mas serve para preparar aquilo que pode depois ser a experiência presencial”. A sua experiência diz-lhe isso mesmo: “Isso viu-se aqui em Portugal a seguir ao final do confinamento do ano passado… As pessoas querem ver as coisas no vivo. Há uma emoção sensorial muito especial que não é possível através do digital e, eu acredito piamente que as pessoas continuaram a visitar os museus”.