Joe Berardo tem até 20 dias para mostrar se tem ou não fortuna pessoal. O empresário madeirense, que vai fazer 77 anos neste domingo, saiu em liberdade nesta sexta-feira com uma caução de cinco milhões de euros e ficará ainda impedido de sair de território nacional, tendo cinco dias para entregar o seu passaporte no tribunal. A questão que se coloca agora é onde vai Berardo arranjar os cinco milhões se, como declarou no Parlamento, é proprietário apenas de uma garagem no Funchal.
Paulo Saragoça da Matta, advogado do empresário madeirense, já garantiu que Berardo irá fazer todos os esforços para pagar o valor da caução: «Até pode ser a Santa Casa da Misericórdia, ou qualquer um de vós, que queira fazer o pagamento da caução», ironizou o causídico à saída do tribunal, reconhecendo que pode haver recurso a bens para essa garantir essa liquidação.
A quantia terá de ser colocada à ordem do tribunal num depósito autónomo ou, em alternativa, ser constituída uma hipoteca sobre um imóvel nesse valor. Também há a possibilidade de «constituição de garantia bancária com cláusula on first demand» ou ser escolhido «outro meio admissível» pelo juiz.
Joe Berardo está indiciado por crimes de burla qualificada, fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais, falsidade informática, falsificação, abuso de confiança e descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público.
Também André Luiz Gomes, o advogado de Berardo, terá de pagar uma caução de um milhão de euros e fica proibido de contactar os membros da família Berardo ou respetivas empresas. Tem também 20 dias para prestar a caução, podendo por constituição de hipoteca ou apresentação de garantia bancária com cláusula on first demand.
É certo que o valor pedido ao empresário madeirense fica bem acima do que foi pedido a Ricardo Salgado para sair em liberdade – inicialmente, o juiz Carlos Alexandre fixou-lhe três milhões de euros mas o ex-banqueiro alegou insuficiência económica para solicitar a redução da caução para metade (1,5 milhões de euros).
Há ou não fortuna?
Quando foi ouvido há mais de dois anos na comissão de inquérito à gestão da CGD, Berardo garantiu que só tinha uma garagem, não tinha dívidas e rejeitou a ideia de ter ficado «com muitos milhões» dos portugueses. Também longe de ser pacífica foi a sua resposta ao deputado Duarte Marques: «A Caixa está a custar uma pipa de massa? A mim não».
Mas não é isso que é visível. O empresário vive em Lisboa num T5 localizado na Avenida Infante Santo, num imóvel avaliado em 2,5 milhões de euros, mas que está em nome da ATRAM – Sociedade Imobiliária, empresa da qual chegou a ser administrador.
Ainda assim, em junho de 2019, o tribunal determinou o arresto de dois apartamentos em Lisboa, o da Avenida Infante Santo e outro na Lapa. O pedido foi feito pela CGD, com recurso a uma figura jurídica raramente utilizada pelos tribunais – ‘desconsideração da personalidade jurídica coletiva’ – e que poderá permitir o arresto de outros bens do empresário madeirense.
A sua paixão pelos vinhos e pela arte também é do conhecimento público. À Quinta da Bacalhôa Berardo juntou a aquisição um edifício histórico de 30 mil metros quadrados em Azeitão, separados apenas por uma estrada. O imóvel era detido pela Transportadora Setubalense – Belos (do grupo Barraqueiro, de Humberto Pedrosa, ex-acionista da TAP) e seria para dar origem a um mega-espaço cultural denominado Bacalhôa Berardo Collection (BBC).
O empresário madeirense também detém o Buddha Eden Garden, que ocupa cerca de 35 hectares, instalado na Quinta dos Loridos, no Bombarral. Nesse local encontram-se centenas de figuras orientais (como budas, pagodes e outras esculturas).
A par da Coleção Berardo – instalada desde 2007 no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, no âmbito de um acordo com o Estado português, celebrado durante a governação de José Sócrates –, inaugurou recentemente o Museu Berardo Estremoz, dedicado ao Azulejo e, há pouco mais de dois meses, o Berardo – Museu Arte Deco (B-MAD), em Lisboa.
Rombo na banca
O esquema que terá montado para escapar ao pagamento dos credores, que causou um prejuízo de quase mil milhões de euros à CGD, ao Novo Banco e ao BCP, é o seu calcanhar de Aquiles. Os créditos concedidos pelas três instituições bancárias serviram para comprar ações do BCP, que, em 2007, viveu uma guerra interna de poder. Como garantia, Berardo deu as próprias ações do BCP, que acabaram por desvalorizar significativamente, trazendo perdas avultadas para os bancos. Só a CGD tinha, em 2015, uma exposição à Fundação Berardo na ordem dos 268 milhões de euros.
Esses valores em crédito ao banco público foram denunciados em primeira mão por Joana Amaral Dias, ao revelar a auditoria da EY à CGD, onde apurou uma exposição de 267 milhões de euros do banco público à Fundação Berardo, e outra de 52,5 milhões à Metalgest, ambas as entidades ligadas ao empresário madeirense. Nos dois financiamentos, o banco registava perdas por imparidade na ordem dos 50%. Um relatório que serviu depois de base à comissão de inquérito no Parlamento.
E foi uma das primeiras a reagir à detenção de Berardo. «Ainda bem que, em janeiro de 2019, divulguei a auditoria à Caixa Geral de Depósitos. Bem dita a hora. Sem isso, teriam continuado a insistir no segredo, silenciando o Parlamento. Com a minha denúncia foi possível que a Assembleia da República fizesse o que lhe compete e que, depois, Berardo se asfixiasse na sua própria vaidade. Esperemos que esta minha luta ainda faça mais caminho», regozijou-se no Facebook.
Tudo remonta ao ‘assalto’ ao poder no BCP, como relembrou Filipe Pinhal entrevista ao SOL. Em junho de 2019, o ex-banqueiro considerou, nessa entrevista, que Berardo teria sido mais «vítima do que autor». E acrescentou: «Durante aquele tempo todo ele foi gozado de forma permanente pelos seus aliados. Só foi respeitado por Jardim Gonçalves, por mim, por Christopher de Beck e por António Rodrigues. Quem esteve do lado dele utilizou-o, instrumentalizou-o, gozou-o o tempo inteiro e ele é que investiu, é que contraiu créditos, os outros saíram lampeiros e nem sequer se dá por eles».
O ex-administrador do BCP acusou ainda Vítor Constâncio, José Sócrates e Teixeira dos Santos pelo desfecho que viria a ter e esse ‘assalto’ e consequências para o banco.
Agora, perante a detenção de Berardo, Filipe Pinhal disse apenas ao Nascer do SOL: «Sobre este assunto, sobre o papel de Joe Berardo e sobretudo sobre o papel de Carlos Santos Ferreira não terei dúvidas em falar, mas só falarei depois de José Sócrates, Teixeira dos Santos, Vítor Constâncio e Carlos Tavares – primeiro-ministro, ministro das Finanças, governador do Banco de Portugal e presidente da CMVM da altura – falarem e explicarem por que razão aceitaram Berardo como cúmplice para assaltar o BCP».
Arguidos:
Joe Berardo
Foi o primeiro arguido a ser conhecido. Ficou três dias detido nas instalações anexas à PJ, e numa das sessões teve de ser assistido pelo INEM. Saiu na sexta-feira, depois de o Ministério Público (MP) ter pedido uma caução de cinco milhões de euros como medida de coação.
André Luiz Gomes
O advogado de Berardo também foi detido na terça-feira. Em causa estará o facto de ter delineado a ocultação de património do empresário madeirense. Fica proibido de contactar com o seu cliente e amigo e de lhe prestar serviços jurídicos.
Carlos Santos Ferreira
O ex-presidente da Caixa Geral de Depósitos e, mais tarde, do BCP também foi constituído arguido. É acusado de ter favorecido o empresário na concessão dos empréstimos bancários.
Mulher e filhos
A mulher e os filhos de Joe Berardo também foram constituídos arguidos.
Jorge Rodrigues Berardo
O irmão do empresário poderá ter colaborado para esconder o seu património e também está na lista de arguidos.
Fátima Câmara
É contabilista na Madeira e presta serviços a Berardo. Foi constituída arguida.
Sofia Catarino
Tal como a vogal do conselho de administração da Associação de Coleções.
Pessoas coletivas
Nesta lista de arguidos estão ainda as sociedades Luiz Gomes & Associados, ATRAM — Sociedade Imobiliária S.A. (detida a 100% pela mulher de Berardo, Carolina), a Associação Coleção Berardo, a Associação de Coleções, a Moagens e Associadas SA e a Metalgest – Sociedade de Gestão, SGPS, SA.