O título do livro remete para um discurso que Steve Jobs fez em 2005, na Universidade de Stanford, onde pediu aos jovens licenciados que se mantevissem «loucos e famintos». Um pedido que, para João Gabriel, «faz cada vez mais sentido repetir numa época de tantas dificuldades e incertezas». «Não sei se os alunos de Stanford, que tiveram o privilégio de assistir àquele discurso de Jobs, perceberam a força e o saber do que lhes foi transmitido naquela tarde. Felizmente, para todos nós, ficou gravado. De tempos a tempos, revejo esse discurso! Tem uma força única», diz.
João Gabriel viveu alguns dos episódios que partilha no livro Mantenham-se loucos e famintos, mas assegura que «não é um livro biográfico» – e acrescenta outros que diz que «gostaria de ter vivido ou pelo menos de ter sido contemporâneo deles».
Mantenham-se loucos e famintos é um livro sobre comunicação, mas é muito mais do que isso.
«O que é que uma agência de publicidade tem a ver com a desmobilização das FARC, na Colômbia, e o com o Guggenheim em Bilbau? Uma vontade de mudança! E José Mourinho, Steve Jobs, o Papa Francisco ou Trump? Mais do que imaginamos! As suas histórias de vida, os momentos de superação ou fracasso, a determinação de uns, as dúvidas e as incertezas, a intolerância e o radicalismo de outros, ajudam-nos a perceber as bases que suportam uma boa comunicação», é assim que o livro começa, numa viagem que tem mais de 400 páginas. Nesta pré-publicação, o leitor pode ler parte de alguns dos principais capítulos e histórias que irá encontrar neste Mantenham-se loucos e famintos, que tem, entre outros, Donald Trump, Durão Barroso e Emídio Rangel como protagonistas.
Trump é um jornal tabloide
Vamos viajar pela América desconhecida e intolerante de Trump, perceber que a maior ameaça aos Estados Unidos não vem de fora, mas está lá dentro, e que o empresário de «penteado extravagante e rosto manchado de laranja» ganhou em 2016 não apenas porque Hillary nem sequer conseguiu cativar a totalidade do eleitorado democrata, mas porque foi coerente. «Quem fez a comunicação de Trump conhecia-o e respeitou o seu pensamento. Atacou os imigrantes, atacou os políticos, denunciou a corrupção», explica Juan Campmany, um dos mais conceituados publicitários espanhóis, que o autor convoca para as páginas do livro. «Independentemente da agressividade e do estilo, aquilo era a personalidade dele, não mudou para estar ali. Foi na campanha o que tinha sido toda a sua vida. A diferença é que agora estava nos media nacionais a toda a hora», diz o publicitário catalão, e João Gabriel complementa, explicando que a «autenticidade não é sinónimo de ética ou decência, significa apenas que não mudamos de pele, que não nos trasvestimos para nos apresentarmos como alguém que verdadeiramente não somos. Trump foi autêntico, não se esforçou para parecer decente. Tudo aquilo era ele».
E quando mudou a meio da campanha, conforme o livro relata, assumindo uma postura mais formal e menos beligerante, a sua massa eleitoral não gostou. «Quando tentamos vestir uma pele que não é a nossa, perdemos coerência», explica o autor. «Trump era um jornal tabloide, sensacionalista, pouco preocupado com a verdade, mas apenas com o impacto e as vendas. Se mudamos a sua linha editorial, abandonando o populismo mais básico, para tentar vestes mais sérias, vai perder os seus leitores originais, sem ganhar novos leitores. Mas, se mantiver a sua essência tabloide, está a respeitar a sua identidade e o seu público e vai manter a sua base. Com Trump acontecia o mesmo».
O livro questiona qual é o limite de mentiras que as democracias podem suportar e recorda o Watergate, em 1974: «Desde esse ano, qualquer que seja o escândalo político, e não apenas nos Estados Unidos, ganha o sufixo ‘gate’. Este talvez seja o legado mais duradouro de Richard Nixon». Mas foi Trump, constata o autor, que testou como nenhum outro esses limites, e o livro reflete sobre a herança deixada por este homem num dos períodos mais sombrios da política americana. «Os próximos anos dirão se a passagem do empresário foi uma mancha que lentamente pode ser apagada, ou se se trata de uma nódoa que não consegue ser removida. Trump não liderou a América, envenenou-a, e os seus últimos dias na Casa Branca foram a melhor prova disso. Apesar de tudo, a democracia resistiu, resta saber com que sequelas. A América, terra dos sonhos, transformou-se num país amargo e dividido».
Barroso e a verdadeira história da cimeira dos Açores
No capítulo dedicado à mentira, embora Trump seja a figura principal, está longe de ser a única. O livro leva-nos até 2004, aos atentados de Atocha, em Madrid, revela o telefonema do então primeiro-ministro espanhol ao diretor do El País, que fez mudar a manchete, atribuindo os atentados à ETA, quando Aznar já sabia que assim não era. No livro recuamos, ainda, à guerra do Iraque, e ficámos a conhecer a verdadeira história por detrás da ‘cimeira dos Açores’. Através de um trecho maior do livro é possível perceber que, afinal, Barroso foi convidado por Aznar a estar presente nos Açores.
«Podíamos ser levados a pensar, mesmo divergindo das razões e do método, que as convicções de Barroso o tinham levado a tomar a iniciativa, convidando a administração americana para tal cimeira. Acreditar até que tal encontro se destinaria – como foi veiculado por alguns – a discutir estratégias para conseguir fazer passar no Conselho de Segurança a necessária resolução que legitimasse uma intervenção militar. Mas, conhecidas as razões e os propósitos do encontro, Barroso não ficou bem na fotografia. Não foi protagonista, porque nada nos Açores foi da sua responsabilidade, limitando-se apenas a seguir uma vontade alheia».
«Tinha proposto os Açores para realizar a cimeira com Bush e Blair. Eu próprio liguei a Durão Barroso para lhe comunicar a proposta e convidá-lo a juntar-se à iniciativa. Pediu-me algum tempo para responder, mas pouco depois ligou-me a informar-me de que não só faria de anfitrião como se juntaria aos atos previstos», assim relata José María Aznar o envolvimento de Barroso na cimeira. O primeiro-ministro português era desta forma convidado a participar numa cimeira que ia decorrer nos Açores, mas que fora decidida por chefes de Governo e Presidentes estrangeiros.
«A primeira proposta», explica Aznar, «realizada por iniciativa de Bush, sugeria que celebrássemos a cimeira nas Bermudas. Respondi, sempre, que participaria com gosto em qualquer reunião em que estivessem Bush e Blair, mas que as Bermudas não me pareciam o lugar mais conveniente. Argumentaram que as Bermudas tinham sido o cenário tradicional de algumas reuniões de líderes atlânticos, e eu respondi que conhecia e respeitava a tradição, mas que em Espanha o nome das ilhas estava associado a uma peça de vestir [calções] que não era propriamente a mais adequada à gravidade do momento que vivíamos». Aznar decidiu, por isso, propor os Açores, batendo-se pela realização da cimeira no arquipélago português até conseguir a anuência de Blair e Bush, e então, sim, comunicou a Barroso como facto consumado.
«Insinuaram que viajar até aos Açores levantava um problema ao presidente norte-americano, ao que respondi que, pela minha parte, estava disponível a ir a qualquer lugar que não as Bermudas. George Bush acabou por aceitar vir aos Açores, apesar das horas de voo adicionais que tal significava. Evidentemente, ficava um problema por resolver, os Açores eram território português, pelo que me comprometi a falar com Durão Barroso». É desta forma que Aznar recorda o papel de figurante do primeiro-ministro português naquela reunião. Tal como Trump, Barroso também não sai bem tratado das páginas do livro. «Foi necessário esperar 17 anos», escreve João Gabriel, «por um tímido mea culpa de Barroso». Depois de dizer que não gosta de ‘julgamentos retroactivos’, admitiu finalmente que, se fosse hoje, com o que se sabe, «provavelmente não teria a mesma posição». Depois de tudo o que se ficou a saber, do fracasso das agências de inteligência, da manipulação das ‘provas’, Barroso ficou-se por um acanhado e indecoroso ‘provavelmente’, depois de apoiar uma decisão que desestabilizou toda a região e favoreceu a ascensão de grupos extremistas. A guerra do Iraque foi claramente um erro que transformou o mundo num lugar menos seguro.
‘Uma TV vende tudo, até o Presidente da República!’
Num dos episódios iniciais do livro, João Gabriel fala sobre a TSF, de Emídio Rangel, onde o autor do Mantenham-se loucos e famintos entrou pela mão de David Borges. Mas não se tratou de um processo de recrutamento normal. Durante uma semana, João Gabriel ‘plantou-se’ na receção da rádio à espera de Rangel, tendo sido durante esses dias ignorado por este; contudo a persistência do então jovem estudante de Direito acabou por ter um resultado positivo: David Borges foi o interlocutor que lhe abriu as portas da rádio, ainda pirata.
«A TSF era uma espécie de igreja, com uma liturgia própria e jornalistas fiéis ao mais fundamentalista dos sacerdotes, Rangel. Depois da revolução que provocou na rádio, voltaria a fazê-lo na televisão, aos comandos da SIC. Tempos em que Rangel foi tocado por alguma arrogância, não no trato ou na disponibilidade que tinha para as pessoas, esses nunca mudaram, mas na forma como encarou o poder que passou a ter e o uso que lhe deu. Já não se tratava de passar alguns limites, mas de entender que não havia limites».
Na campanha eleitoral autárquica para a Câmara de Lisboa, em 1993, Rangel promoveu, em nome das audiências, sem consentimento prévio do candidato socialista e ao tempo presidente da Câmara em funções, Jorge Sampaio, um debate entre este e Macário Correia, candidato do PSD, ignorando os restantes candidatos.
«Fiel à sua posição, o candidato socialista não aceitou o ultimato de Rangel e fez saber que não iria. A SIC avançou na mesma, transformando o debate numa entrevista a Macário, com uma cadeira vazia ao lado, numa clara provocação a Sampaio. Era um tempo de excessos. Quatro anos mais tarde, Rangel viria a proferir uma afirmação que gerou enorme polémica e reparos de todos os quadrantes: ‘Uma estação que tem 50% de share vende tudo, até o Presidente da República! Vende aos bocados: um bocado de Presidente da República para aqui, outro bocado para acolá, vende tudo! Vende sabonetes!’».
«Uma afirmação absurda, pensaram muitos, mas hoje é evidente que Rangel tinha razão. Aconteceu em Portugal e no mundo à frente dos nossos olhos. Marcelo Rebelo de Sousa e Donald Trump são prova disso».
Mantenham-se loucos e famintos é o resultado de três anos de trabalho e algumas viagens que levaram o autor ao encontro dos testemunhos que podemos encontrar nas suas páginas. John Carlin, o jornalista britânico que acompanhou Mandela desde a sua libertação à presidência sul-africana; José Miguel Sokoloff, o publicitário colombiano que derrotou as FARC; Juan Manuel Vidarte, um dos responsáveis pela chegada do Guggenheim a Bilbau e até agora o seu único diretor; Sampaio e Mourinho são alguns dos testemunhos que ajudaram João Gabriel a construir este livro.