Desabotoe-se a pandemia

Sr. primeiro-ministro: olhe para Boris, confie no seu país e desabotoe-lhe a pandemia – está na altura de voltar a trincar as orelhas à vida.

No início do séc. XX, o nosso Rei D. Carlos recebeu o Rei Eduardo VII do Reino Unido. A vontade de agradar à corte britânica era tanta que o país se mobilizou nesse sentido. Entre várias façanhas, uma magnânima: a construção e denominação de um gigante parque em honra da tão majestosa visita – o Parque Eduardo VII. Os lisboetas, distanciando-se e menosprezando tão colossal obra, disseram-na ser ‘para inglês ver’, certamente ajudando a cristalizar uma expressão ainda hoje em voga.

Mas não só agigantada foi a obra do parque. Foi-o, também, a sua barriga. Eduardo VII era tão gordo que, a certa altura da sua vida e devido ao sufoco e desconforto que sentia, teve de começar a desabotoar o último botão dos seus coletes. A corte britânica, naturalmente, imitou-o e passou a ser protocolarmente correto desapertar-se o último botão dos coletes e casacos. O fenómeno acabaria por se espalhar pelas diferentes cortes europeias: todas acharam por bem seguir o determinado pelos ingleses.

Passados 111 anos, um outro senhor do Reino Unido – não Rei, mas primeiro-ministro –, tomou a decisão de desabotoar outro botão. Por sentir que as restrições pandémicas eram disfuncionais, desajustadas, desconfortáveis, alérgicas à saúde mental e sufocadoras da liberdade, Boris Johnson decidiu desapertá-las – desabotoando, assim, o botão da pandemia no seu país: «Vamos deixar as pessoas fazerem as suas decisões informadas acerca de como gerem o vírus. Tudo abrirá sem restrições». É sabido que o vírus continuará à solta e que as pessoas poderão continuar a securitizar-se se quiserem. Contudo, a partir de agora, terão, pela primeira vez, a liberdade de escolher encará-lo de forma mais relaxada. Sendo certo que a decisão tem considerável apoio do povo bretão e que este seguirá o desabotoamento de Boris, cabe-nos agora perguntar se a restante Europa voltará a seguir a moda inglesa.

A meu ver – e preparem as vossas fisgas com ‘negacionista’, ‘ciclista’, ‘tratorista’ etc. –, a Europa deverá fazê-lo. Ao contrário do Governo português, que desconfia da sua população, imputa-lhe culpa e trata-a como uma criança de colo, o Governo britânico opta por confiar nos seus cidadãos (afinal, ainda são os herdeiros de Locke). Na certeza de que a carência por saúde mental também esborda humanos da Terra diariamente, na certeza de que a fome se alastra pelas ruas e vielas, na certeza de que só a vacinação se prova capaz de acalmar o vírus e na certeza que esta tem cavalgado desenfreadamente, na certeza de que o ser humano é mais ave do que mamífero, na certeza de que cinco mortos diários não justificam ir-se à praia de máscara, na certeza de que o nosso Presidente da República assim o acha, na certeza de que a vida existe, é bela, e que todos os seus segundos são ouro, na certeza de que já somos literatos quanto às regras de higiene, na certeza de que queremos a voltar a ouvir música ao vivo, ir ao cinema e dançar em clubs, na certeza de que queremos voltar a ver paz – e não medo – na cara das pessoas, na certeza de tudo isto e de que a vida, efetivamente, continua, apelo: aprendamos a viver com o vírus, desabotoando-o também cá.

«O Estado não irá dizer-vos o que fazer, mas quererão decerto observar alguma responsabilidade pessoal», assim disse Robert Jenrick, secretário de Estado britânico da Habitação. Talvez esteja na altura de se alterar a expressão e, olhando para decisão inglesa, entender que esta poderá servir ‘para português ver’. Sr. primeiro-ministro: olhe para Boris, confie no seu país e desabotoe-lhe a pandemia – está na altura de voltar a trincar as orelhas à vida.

Guimarães, 8 de julho de 2021