Em vez da atual matriz de risco – o famoso quadrado com a evolução da incidência e do RT que nas últimas semanas teve de ser alargado para encaixar o rápido aumento de infeções no do país – um indicador que reflita a expansão do vírus, mas ao mesmo tempo a saturação de internamentos em enfermaria e cuidados intensivos, e a partir de que patamar começa a ser afetada a resposta a outros doentes. Que reflita a evolução do número de mortes, até para perceber a longo prazo se as vacinas mantêm o mesmo grau de proteção, e que não ilustre a situação nos últimos 14 dias, mas a média dos últimos sete, para uma imagem mais em tempo real da pandemia. É a proposta apresentada ontem pela Ordem dos Médicos para rever o atual modelo de avaliação da situação epidemiológica no país, agora com o trabalho científico feito em parceria com uma equipa do Instituto Superior Técnico.
Na prática, propõem que passe a haver um único indicador a agregar todas estas variáveis – um novo “termómetro” para o risco de saúde, social e económico da pandemia no país – caindo a avaliação dos concelhos apenas pela incidência cumulativa a 14 dias e atribuindo-se uma pontuação numa escala de 0 a mais de 100 (o patamar que fixam como linha crítica), quer a nível nacional, mas podendo ser aplicado a nível regional ou concelhio. Aplicando o modelo em retrospetiva, o país esteve nessa situação crítica entre outubro de 2020 e final de fevereiro de 2021 (ver ao lado). E agora também já estaria, não fosse o efeito da vacinação, defendem.
Henrique Oliveira, matemático do IST responsável pela modelação, explica ao i que as estimativas apontam que se mantivesse a mesma taxa de letalidade pré-vacina, de 2,4%, Portugal estaria atualmente com 60 a 80 óbitos diários relacionados com a covid-19. Desde 10 de abril, baixou para cerca de 0,30%, diz.
Foi nessa altura que duas curvas – a do esperado sem vacinas e a realidade – começaram a separar-se (ver também ao lado), algo intensificado no último mês em que foram feitas um milhão de segundas doses. Sem vacinas, a estimativa é que o país estivesse atualmente com mais de 9 mil casos diários. “Podíamos estar pior, mas não estamos bem”, conclui o investigador, antecipando que com o aumento da incidência, que a esta altura a equipa projeta que comece a descer no final de julho, os óbitos vão continuar a subir. Os casos reportados ontem vieram ensombrar o cenário: o país ultrapassou a barreira dos 4 mil diagnósticos em 24 horas e aumentaram os doentes internados em UCI – só os próximos dias permitirão perceber se é um aumento constante, mais cedo que o esperado. Se durante a apresentação do modelo se calculava uma pontuação de 92,7 para descrever a situação do país, à beira da linha crítica, subiu para 93,2.
Filipe Froes, coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos e um dos autores da proposta, defendeu que a par da avaliação mais atempada, o novo indicador permite fundamentar decisões e explicá-las à população, mostrando a eficácia da vacina e garantindo previsibilidade e transparência. Não contestando as atuais medidas na globalidade, defende que a ausência de antecipação, fiscalização e adesão acabam por torná-las pouco eficazes e mal compreendidas. “O que verificamos muitas vezes é que as medidas ou não são implementadas por desconhecimento, ou não são suficientemente divulgadas ou não são fiscalizadas. O nosso indicador vem completar o ciclo de conhecimento, de controlo de transmissão, de coerência nas regras. A vacina está a esmagar a curva. Se não tivéssemos vacinas estávamos em confinamento, mas é preciso manter medidas”, insistiu na apresentação. “Não propomos aqui nenhuma medida diferente. O problema não está em novas medidas, mas em aplicar as melhores medidas em cada altura e explicá-las de forma a que as pessoas cumpram e adiram. Temos sobretudo um problema de avaliação, de implementação e de envolvimento da população”, diz.
Segundo a proposta, enquanto o país se mantiver acima de um índice de 40 será necessário manter medidas de controlo da transmissão nos diferentes setores e uso de máscara sempre. Abaixo desse patamar, passariam a ser só usadas em espaço fechados e mais congestionados. O reforço da sequenciação genética e recolha em tempo real de informação sobre o estado vacinal de doentes internados, reinfeções e variantes associadas são outros reptos da proposta. A Ordem propõe ainda que, em vez de uma avaliação semanal no conselho de ministros em vista, passe a existir um gabinete de avaliação profissional que funcione em permanência, 24 horas por dia, sete dias por semana. “O vírus não espera uma semana por uma decisão”, resumiu Filipe Froes.
A proposta já seguiu para o Governo e Presidente da República. De Belém, soube o i, partiram de imediato pedidos de mais informação – desde a última reunião do Infarmed que Marcelo Rebelo de Sousa defende uma revisão das linhas vermelhas. A próxima, onde este deverá ser um dos temas, está marcada para 27 de julho. Para já, o indicador vai passar a ser publicado diariamente no site da Ordem e do IST.
Novos indicadores e linhas vermelhas
Incidência
• Em vez da incidência a 14 dias, defendem que indicador tenha em conta a média de casos a sete dias.
Letalidade
• Será avaliada em relação aos máximos registados em fevereiro. Atualmente, a taxa de letalidade é já inferior a 1% dos casos, mas perceber se novas variantes aumentam o risco é uma das preocupações.
Internamentos
• A saturação dos internamentos é avaliada com uma pontuação de 0 a 100, em que 100 são 2500 camas ocupadas por doentes covid, o limite a partir do qual é afetada a resposta a outros doentes. Em UCI, propõem baixar para 200 camas ocupadas a linha vermelha, tendo em conta que há no total 864 camas de UCI no SNS.