Subitamente, a África do Sul irrompeu em chamas, fúria e violência. O mundo assiste incrédulo enquanto vizinhos se viram contra vizinhos, autoestradas são bloqueadas a tiro e camiões queimados, impedindo acesso a bens essenciais, com turbas a devastar as províncias de KwaZulu-Natal e Gauteng, onde fica Joanesburgo, saqueando centros comerciai e lojas, destruindo até farmácias comunitárias e ambulâncias. O rastilho pode ter sido a prisão do ex-Presidente Jacob Zuma, havendo suspeitas que os seus aliados nas secretas tenham orquestrado o caos. Mas a escala da destruição, que levou as autoridades a lançar 25 mil tropas nas ruas, deixou claro que a África do Sul já era uma panela de pressão prestes a rebentar.
Há muito que a revolta borbulhava. Não apenas pelas décadas de corrupção descarada entre o partido governante, o Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla inglesa), que deixou por cumprir as promessas de Nelson Mandela, de uma sociedade justa, após a brutalidade do Apartheid, mas também pelo impacto de sucessivos confinamentos.
Com boa parte dos sul-africanos sem acesso a água, eletricidade ou serviços de saúde, e uma taxa de desemprego de 32,6%, chegando a uns gritantes 46.3% entre jovens, muitos não tinham nada a perder. Para alguns, o seu único escape era o álcool – mas não nos últimos tempos, com o Governo da África do Sul a proibir totalmente a venda de bebidas alcoólicas, devido à pandemia. Não espanta, por isso, que entre os grandes alvos dos motins estejam lojas de bebidas espirituosas. Só em KwaZulu-Natal foram saqueadas mais de duzentas, segundo a News24.
«Quando olhas e percebes quanto álcool foi roubado podes ver que isto não tem a ver com o Zuma», queixou-se Noma Vundla, moradora de Joanesburgo e originária do Zimbabué, que todos os dias têm tido medo de cruzar as ruas para ir trabalhar como doméstica, em casa de gente rica. «Alguns tipos saíram daquela loja com carne, carvão e especiarias», contou ao Sowetan Live, apontando da varanda da sua casa. «Eles estão a dar uma festa».
Ressaca do caos
«Sinto-me horrível», desabafou Sifiso, um empregado da hotelaria, de 32 anos, despedido devido à pandemia. Dias antes, uns amigos que estavam a roubar álcool ligaram-lhe, e ele juntara-se aos motins, acartando frango, farinha, Pepsi e até comida de cão para a sua família. Agora, apercebia-se que, pelo meio do caos, o pequeno supermercado do seu bairro, em Soweto, fora destruído, que gente da sua comunidade também ficaram sem o emprego.
«As pessoas perdem a sua consciência», admitiu Sifiso, ao New York Times. Quando viu o seu frigorífico ficar vazio, temeu não conseguir comprar mais comida devido ao bloqueio da autoestrada N3, que liga Durban, o principal porto do país, a Joanesburgo e Soweto, por onde passam uns 80% dos bens sul-africanos. E nem pensou duas vezes.
«O Governo está a falhar-nos, não querem saber o que sentimos enquanto população da África do Sul», explicou o jovem desempregado. «Se isso significa que vamos a um centro comercial pilhar ou bloquear uma estrada para que o Governo de facto oiça os gritos das pessoas, que seja».
‘Vida própria’
O saldo do caos já vai em mais de 72 mortos e 1700 detenções, com as autoridades a estimar que tenham sido roubados quase 850 milhões de euros em bens só em KwaZulu-Natal, o grande bastião de Zuma, onde se começam a ver filas gigantescas de gente a tentar obter alimentos ou gasolina.
O Governo até teve de recorrer caravanas de camiões escoltados pelos militares para fazer chegar bens essenciais a Joanesburgo, segundo a Associated Press, colocando tropas à porta dos centros comerciais em Soweto. Muitos dos quais foram deixados vazios, cheios de lixo e destroços, como uma carcaça abandonada.
Se para muitos amotinados a motivação foi a fome e a revolta, para outros nem tanto – vários analistas têm notado que, entre a multidão, viam-se também gente de classe média, à procura de bens luxo, ou mobília nova ou televisões, algo bem mais complicado de explicar.
«A pesquisa sobre saques, sugere que tais fenómenos raramente são causados apenas por uma única coisa», escreveu Guy Lamb, investigador de Ciências Políticas da Universidade de Stellenbosch, num artigo no Conversation. «Individuos que são propensos à violência tendem a iniciar os saques. Gente comum depois pode-se juntar.Os atos de saque são frequentemente contagiosos e desenvolvem uma vida própria».