Como te sentiste, o que te passava pela cabeça enquanto mostravas ao mundo o teu segundo trabalho em estúdio?
Estava muito ansiosa. Raramente fico nervosa com concertos, mas naquele dia estava extremamente nervosa, porque já não cantava em palco há ano e meio, quase dois anos. É aquela expectativa de voltar ao palco com as pessoas com máscara, sem poder ver-lhes a cara, então senti-me um bocadinho ansiosa.
Depois, com o decorrer do concerto, as coisas vão voltando ao normal, e vão estabilizando, mas os minutos antes não foram fáceis para aguentar o coração. O concerto correu muito dentro das expectativas, o público foi super caloroso, foi um ótimo regresso, e deixou-me com imensa vontade de continuar, e agora com a covid não está fácil…
Tive concerto no Tivoli no dia 1 [de julho], e no dia 2 fui para Badajoz, foi mesmo daquele género ‘Fazes um, e olha, boa, correu bem, gostaste, agora vais fazer outro igual’, mas correu muito bem, foi muito giro, e é sempre bom cantar fora do nosso país. Porque, é assim, cantar em Portugal é sempre diferente, porque cá as pessoas percebem tudo o que nós estamos a dizer e as letras dos poemas entram com outra facilidade.
Quando estamos no estrangeiro, tem as suas limitações, mas também tem um lado muito genuíno da música – as pessoas não sabem o que é que estou a dizer, mas sentem o que eu estou a dizer. E Espanha é já aqui, fala-se ‘portunhol’ e percebe-se tudo.
Que nomes – passado e presente – estão à mistura neste álbum?
Eu não fui procurar pessoas, mas sim sonoridades, que até surgem cá, com o jazz, o samba… Entre o primeiro e o segundo disco fui-me construindo enquanto artista e não só enquanto fadista, e fui explorar estilos musicais que foram essenciais na construção deste disco. Mas há uma coisa engraçada e raramente falo disto.
No meu primeiro disco, o Camané ainda teve uns encontros comigo para me ajudar, estava assim meio perdida e não sabia como é que havia de fazer as coisas… Mas eu acho que nesse disco não soube aplicar muito bem as coisas que ele me disse, mas neste novo disco, no Agora, consegui perceber melhor o que é que ele me queria dizer.
Disse-me para não ter pressa, para respirar, para desfrutar das palavras, que não temos de estar sempre a mostrar que temos voz, de respirar fundo e transmitir o poema. Eu acho que este é um disco de histórias e sentimentos, e é talvez essa a coisa mais interessante deste disco, que passa uma quantidade de histórias e emoções que eu acho que não consegui fazer no primeiro disco. Houve quase uma reciclagem, muito positiva.
Fazes parte da geração do ‘novo fado’, junto de nomes como Mariza, Gisela João, Ana Moura… O que é que achas que levou a esta nova vontade de pegar neste género, que se tem feito sentir nos últimos anos?
Não te sei dizer exatamente. Estava a falar disso no outro dia. Eu comecei a cantar por causa da Ana Moura. Cantava em português em casa e comecei a ouvir os discos dela. Falava-se dela, mas ainda não se falava muito, e já cantava há muito tempo, mas não tinha ainda aquele reconhecimento.
As pessoas começaram a ver malta mais nova a pegar nos fados, e os mais jovens começaram a ter curiosidade de ver o que é que se estava a passar. Claro que há aqui um aparecimento de outros instrumentos e sonoridades que vieram acompanhar os fados que naturalmente puxam outro tipo de público para aqui. E isso tem coisas boas e coisas más, tudo o que possas fazer para atrair outros públicos é bom, mas tem outro lado, porque sem querer estás a desconstruir o que são os fados, e perdes a noção do que é que afinal é fado e o que é que não é.
Eu sou um bocadinho tradicionalista, no que toca aos fados. Raramente me verás com outros instrumentos, pelo menos por agora. No disco tenho uma roda de samba e um piano, mas não pretendo que isso seja fado, são uma roda de samba e um pianista de jazz a cantar com uma fadista. É muito importante que defendas aquilo que é nosso, se não daqui a 50 anos vão olhar para isto e dizer: ‘Espera, mas bateria faz parte do fado? E o contrabaixo? E violino?’.
Não, a realidade é que não faz parte. Podes pôr, mas são fusões, são outras coisas. O aparecimento destas novas sonoridades faz com que fique mais apelativo, para pessoas que achavam que o fado era só uma grande tristeza, para pessoas com mais de 50 anos, tudo preto, deprimido… e isso não é verdade. Fala é sobre a vida, e nós não andamos sempre a chorar nem sempre deprimidos.
Perguntam-me várias vezes se vejo por aí mais uma próxima Teresinha, ou mais uma Carminho, ou seja se vejo alguém com 12 anos que está a aparecer, como quando eu apareci, e, na verdade, isso não está a acontecer. Aparece muita gente da minha idade, ou menos um ano ou dois, mas uma miúda de 12 anos não voltou a aparecer. Tenho muitas amigas da minha idade nos fados, mas de repente deixou de aparecer malta nova. Nós somos a nova geração, mas não está a aparecer aquela que nos vem substituir, que nos vem renovar.
Então tens receio que não haja continuidade?
Não sei, vamos ver. Se calhar aparecem por outros lados, como nos concursos, mas nas casas de fado não.
Mas será que é por isso?
Se calhar preferem saltar para os programas… Se calhar sim. Nos programas há mais visibilidade, nas casas de fados é menor, mas a aprendizagem é outra. Eu não trocava o meu caminho por nada, mas isso sou eu.
Mas há uma diferença então entre aprender nesses programas e nas casas de fado, não?
Claro. Aprendes muito a cantar, seja onde for, mas os fados não há outro sítio onde possas ir ver como se faz… Tens de falar com malta mais velha, ouvir os outros, passa de boca em boca. Se não vais às casas de fado, dificilmente saberás como se trabalha.
O que é que, a teu ver, ainda há por fazer no mundo do fado hoje em dia?
Já estamos a falar de duas gerações diferentes. A da Ana Moura, da Carmo e da Gisela é outra. Eu apareço a cantar com 12 anos, quando a Carminho está a preparar o primeiro disco, eu já sou de outra geração, temos uns 13 anos de delay. O que eu trago já é diferente do que elas trouxeram. E cada um tem uma linguagem. Vou ser sincera, estou com muito medo do que é que vai acontecer ao fado tradicional.
Estou a ver muitos fadistas antigos a partir, muitos músicos como o Professor Joel Pina ou a Celeste Rodrigues, que estavam cá para nos ensinar muitas coisas, a ir embora, e começam a ficar cada vez menos. E tenho receio do que é que vai acontecer quando todos eles forem embora. Quem nos vai dizer como se fazia isto? Começa a haver uma inovação tão grande que se começa a perder o limite de onde é que começa e acaba o fado, e tenho algum receio que se perca isso…
Eu acho o fado tão bonito como ele é… Eu sei que às vezes é difícil chegar à malta mais nova, e que às vezes a malta mais nova acha aquilo uma seca e não entende, mas acho que é especial. Mas se as pessoas estiverem com atenção às letras e forem ouvir, se forem à casa de fados, vão perceber a magia das coisas. Não há muito de novo que se possa trazer, mas podes sempre inovar com a tua maneira de estar.
Por exemplo, não me vais ver de xaile ou vestida de preto em cima de um palco, e é por aí que podes inovar. Tornar a tua imagem mais atual, para que uma miúda de 25 anos olhe para mim e diga ‘Ai eu até gostava de vestir aquela roupa’. É tentar que os teus pares, as pessoas da tua idade, se possam identificar contigo, sem desvirtuar aquilo em que acreditas. É um compromisso difícil…
Não gostas do xaile?
Nunca gostei da porcaria do xaile. Cantei de xaile para aí duas ou três vezes na vida, quando era miúda. Punha o xaile, prendia, mas depois aquilo tem um monte de regras. Mas só podia pôr assim sobre os braços, então agarrava de um lado, ele escorregava do outro…
Eu estava o fado inteiro a tentar agarrar a outra ponta que estava a escorregar, até que decidi que não estava mais para isso. Larguei o xaile e pronto. Na Mesa de Frades, quem sabe, já me viu cantar de calças de ganga e ténis e, às vezes, as pessoas dizem ‘Não é preciso ser tão descontraída’ e eu digo logo ‘deixem-me’. Em Badajoz houve um senhor que me disse ‘gostei muito de a ouvir cantar, mas não lhe perdoo a roupa’.
E eu estava como no Tivoli, com umas calças lilás e uma blusa branca brilhante, mas de ténis. E perguntei porquê, e ele disse que era porque não estava ‘de fadista’, e eu perguntei ‘diga-me lá então o que é estar de fadista?’. Ele falou nas roupas e nos vestidos, e eu expliquei que isso não era estar de fadista, era estar de diva ou de artista, mas um fadista cantava sobre a vida, e expliquei que tinha de conquistar a malta nova. ‘Se não ponho uma bateria, ao menos tenho de pôr uma roupa mais jovem’, disse-lhe eu, e ele disse logo ‘Ah, pois, melhor a roupa jovem do que a bateria’ [risos].
Este fado alegre que cantas em algumas das tuas canções, há quem possa dizer que não é verdadeiramente fado, por não ser trágico. O que opinas?
Tenho muita sorte por ser muito bem aceite pela malta da velha guarda, tanto que os tinha lá no concerto do Tivoli, até porque são pessoas com quem eu cresci e que eu prezo imenso e oiço com a maior atenção, e eles também sabem que é preciso ceder em algumas coisas, mas, desde que sejas honesto contigo e com os outros, podes fazer quase tudo.
O João Braga e o Rodrigo, que são dois fadistas de referência para mim, com quem cresci, e a Maria da Fé, dizem ‘Não há nada que estejas a fazer que esteja errado, porque quando fazes outra coisa dizes que é outra coisa, não vendes gato por lebre. O João [Braga] dizia ‘Não há nada que não possas fazer, tu nasceste para o fado, não podes fugir disto, por mais que tentes não dá, e quando queres fazer outras coisas, acho bem que faças, basta que digas que é outra coisa, e já não estás a ofender ninguém’.
Porque nós somos artistas, não somos só fadistas, podemos fazer outras coisas. Eu sofri muito bullying nos fados quando era nova. Levei muita tareia para aprender, a velha guarda é muito rígida. Tem uma forma de explicar as coisas que… pronto… e dizem que só fica quem gosta e aquilo é uma maneira de eles fazerem uma triagem.
O que te fez querer quebrar essa tradição do fado muito dramático e pesado e cantar sobre temas mais alegres?
Os temas alegres é fácil de introduzir porque sempre fizeram parte dos fados. Ainda agora em Badajoz um senhor me dizia que tinha gostado muito de ouvir porque era diferente, porque era alegre. E eu expliquei que os fados também são alegres. Há fados alegres, há fados tristes, há fados para todos os gostos, para a menina, para o menino, para todos [risos]. O fado alegre sempre existiu, as pessoas é que meteram na cabeça que o fado é sempre triste, o que é mentira. Agora, como é que entra aqui uma roda de samba?
Eu fiz aquela letra, que nasceu exatamente por causa de uma noite de roda de samba, e o Pedro [Castro] quando fez a música, fazia lembrar uma mancha popular e um frevo, que é um tipo de marcha brasileira. Chamei a roda de samba para tocar aquilo e virar num samba. Foi muito natural, e até já tinha feito um projeto com eles chamado Se o Fado Virasse Samba.
Eu ia ao samba todos os domingos, e cantava sempre na roda com eles, e foi uma junção óbvia. O samba tem muito mais a ver com o fado do que podemos imaginar. O samba fala sempre sobre a vida, a única diferença é que eles riem da desgraça, e nós choramos.
De que fadista da escola tradicional sentes que foste buscar mais inspiração para as tuas músicas?
Sou muito fã da Amália Rodrigues, do que representa, da voz que foi, pela escrita, que é outra das minhas paixões, e pela capacidade interpretativa. Ela era um camaleão, quando cantava uma marcha ria e sorria, quando cantava um drama era um drama a sério, quando cantava em italiano era italiana, em espanhol, espanhola, era extraordinária. Há uma quantidade de nomes fadistas que digo e ninguém conhece. A dona Beatriz da Conceição ainda foi muito conhecida, mas depois a Maria José da Guia, Berta Cardoso, Maria Leopoldina Guia, Maria Teresa de Noronha, o João Braga e o Rodrigo…
Durante quatro anos, não ouvi outra coisa a não ser a malta mais velha. Dos 12 aos 14 anos, o Pedro Castro só me deixava ouvir homens. Ia a casa dele ouvir vinis, porque ele tem milhares de discos. Ia para lá, passava o fim de semana e dizia ‘quando acordares, podes ouvir fados’. Quando acordava, ia para ao pé do gira-discos, e os das mulheres tinham todos desaparecido. Não havia um.
Ele metia-os no escritório, fechados à chave, para eu não poder ouvir, que era para eu não copiar e não ficar influenciada. Portanto tenho muitas influências antigas. Da nova geração, há nomes importantíssimos na minha construção enquanto artista, Carminho, o Hélder Moutinho, o Pedro Moutinho, o Camané, a Raquel Tavares, Ana Moura, a Kátia Guerreiro, ouvi muito Ricardo Ribeiro na Mesa de Frades, onde canta também a Tânia Oleiro… A minha querida Celeste Rodrigues, a quem faço uma homenagem no disco, com quem partilhei imensos momentos…
Como te encontraste com ela?
Foi muito simples. Ela é uma fadista – era, infelizmente partiu, mas está sempre presente – muito sui generis. Com 90 anos, acabava de cantar no Luso e, em vez de ir descansar, ia para a Mesa de Frades. À uma ou duas da manhã batia à porta e lá estava ela. Eu tenho uma relação muito próxima com a família dela.
O Gaspar, bisneto dela, é como o meu irmão mais pequenino. A minha relação com ela era muito próxima, tinha uma admiração gigantesca por ela e ela tinha muito carinho por mim, até me chegou a convidar para participar em concertos dela. E cantei muitas vezes com ela. Fomos as duas para Bilbao, quando ela disse que não lhe apetecia ir sozinha, então fui com ela. Fui até depois convidada para os concertos de homenagem.
Vê bem o leque, era o Camané, o Hélder Moutinho, o Ricardo Ribeiro e eu… [risos], mas aquilo foi uma honra, porque ela tinha muito carinho por mim. E aprendi muito com ela, não só sobre os fados, mas sobre a vida também. Éramos mesmo amigas.
Começaste a cantar aos 11 anos, mas o que te levou a escolher o fado?
É muito difícil de explicar, porque não sei bem a resposta… Eu sei que ouvi fado e percebi logo que gostava daquilo. É muito difícil explicar o que é que se sente… Sabes o que é estares num sítio e emocionares-te por fazeres parte dele? Há quem diga que se nasce fadista e não se escolhe… eu acho que isso, cada um acredita no que quer, mas a verdade é que deixa-me mesmo feliz poder cantar fado.
E há dias fiquei emocionada a ouvir coisas antigas, e a dizer que era maravilhoso, que amava aquilo. Quem me dera poder correr este mundo a cantar o fado assim como ele é, sem ter que arranjar bandarilhas. Sem ter de me preocupar com quem teria de levar comigo.
Num aniversário do Professor Joel Pina, quando fez 100 anos, o Rodrigo foi cantar. A Mesa de Frades estava cheia de malta nova, malta mais velha, mas muita gente da minha geração para ir ver o Professor Joel Pina e para ouvir a malta mais velha. Eu estava no chão a ouvir o Rodrigo e emocionei-me, chorei e chorei. Ao meu lado estava a Leonor Nobre da Costa, viúva do José Luís Nobre da Costa, que foi mestre do Pedro Castro e um grande guitarrista. A Leonor ouviu fados a vida inteira, porque foi casada com ele.
Viu-me a chorar, e só me pôs a mão no ombro e disse ‘Teresinha, são fados’, e eu a chorar e chorar… Quando ouço aquelas pessoas que me emocionam genuinamente eu lembro-me porque é que me apaixonei por isto. Não há uma justificação, sei que vibro e me emociona quando falo de fado. Se eu tiver de te convencer a ir aos fados, eu vou defender isto como a melhor coisa do planeta, porque vibro mesmo com isto.
Também começaste quase logo a compor as tuas próprias letras… Onde é que uma criança de 12-13 anos vai buscar inspiração para letras de fados?
Não tens. E por isso é que comecei a escrever, porque quando comecei a cantar, começou a dificuldade de escolher letras para a minha idade. Tinha 12, 13 anos, era uma miúda, não podia dizer que não queria amantes, porque nem sabia o que eram amantes. Não posso dizer que tinha partido alguém, se bem que eu tive a infelicidade de ver muita gente partir muito cedo.
Mas tinha uma vida pouco vivida, curta, não percebia do que estava a falar, e por isso é que comecei a escrever, para poder falar de coisas que eu já tinha vivido, que sabia. A primeira letra que escrevi, com 13 anos, foi de um desgosto amoroso que tive.
E eu escrevi essa letra porque ele me deixou, e eu andei uma hora na praia para ir falar com ele, porque estávamos zangados, ele não quis falar, e eu voltei para trás, mais uma hora na praia, cheguei a casa e pensei ‘tenho de falar sobre isto’. Eu achei que ia morrer naquela altura.
Claro que descrevi o amor como uma pessoa com 13 anos, mas não chocava ninguém, porque era uma forma tão inocente de falar do amor, que uma miúda de 13 anos podia perfeitamente cantar aquilo. E é assim que eu começo a defender-me, a falar de coisas que eu já sabia o que eram, que vivi e que sabia explicar, e é por isso que comecei a escrever.
Tentar falar e cantar coisas leves e bem dispostas, que não fossem só dramas. Toda a gente vive, até uma criança de 5 anos ou uma pessoa de 80 anos. Têm vivências diferentes, mas todos viveram, portanto conseguem sempre escrever qualquer coisa.
É fácil assumir-se como escritora no fado?
Não é nada fácil, porque vem logo o preconceito de questionar o que é que uma miúda de 13 ou 14 anos escreve, e o que é que ela tem para dizer. Começam logo a questionar se tens talento para escrever, ou se escreves assim tão bem como para cantar as tuas próprias coisas. Só que, curiosamente, a malta mais velha começou a ouvir as coisas, e, pronto, não eram poemas, mas percebiam que as histórias tinham um fio condutor, uma intenção, uma mensagem, então apoiavam-me imenso.
E diziam logo que era giro, então tornou-se a minha imagem de marca e, de repente, algumas pessoas começaram a pedir-me para eu escrever para elas… Houve quase que uma luz verde para eu escrever as minhas coisas. Mas ao início tinha de enfrentar pessoas que cantaram poetas extraordinários e, de repente, chegar lá e dizer ‘ah, eu sou a Teresinha Landeiro, comecei a escrever com 13 anos, e agora canto as minhas coisas’…
Fala-me um pouco dessa dupla vida que vives de estudante durante o dia e fadista durante a noite, como equilibras os dois mundos?
Quando estava na escola, no secundário, tudo bem, sempre fui boa aluna. Depois entrei no Instituto Superior Técnico e a coisa começou a apertar mais, e é quando as coisas na música começaram a ficar mais sérias. Surgiu a Sony Music, o meu primeiro concerto a solo no CCB, e um contrato… Aí percebi que se calhar aquilo ia acontecer mesmo.
E rapidamente a faculdade passou para o plano B. Tentei gerir da melhor maneira as coisas, mas claro que nem sempre correu como eu queria. Já devia ter acabado o curso, estou aqui a marcar passo, mas também não consigo fazer tudo, não sou uma Super-Mulher… Adorava ser, mas não sou.
Então às vezes tenho de tomar decisões e a escolha é sempre a música. Se me disserem que tenho de faltar aos exames para ir a uma tour, os exames ficam para depois. Tem a ver com prioridades e a música foi sempre a minha prioridade, a partir dos meus 19 anos. E a faculdade vai-se fazendo.
E o que é que te fez querer continuar com os estudos?
Teimosia. Chamo-me Teresinha Landeiro e sou teimosa [risos]. Sempre fui muito obstinada com as coisas e se me propus a fazer então eu vou acabar. E sempre fui ótima aluna, não faz sentido não ter um curso superior nos dias que correm. É mais sabedoria que tens, não vai ocupar espaço, vai só enriquecer-te mais um pouco. Enquanto estive no Técnico, aprendi muitas coisas, embora não tenha terminado o curso lá, aprendi muitas coisas. Especialmente que a exigência é muito importante, que temos de ser rigorosos, exigentes e trabalhadores…
Depois cheguei à NOVA e confirmei isso mesmo. E aí acontece algo engraçado. Estou no curso de Gestão, com o intuito de poder-me dedicar à gestão artística, gerir artistas… Se a música corresse mal, podia ajudar outros artistas, mas de repente estou a estudar contabilidade, economia, história… coisas que se calhar nunca me interessaram e passaram a interessar.
Comecei a ter uma visão mais global de tudo, passas a ser uma pessoa mais informada, mais interessada. Não vejo nada de mal nisso, mas quando acabar a faculdade quero ir estudar música. Nunca pus a hipótese de estudar música de forma séria, académica, nunca quis que o estudo da música fosse uma coisa obrigatória, até porque não queria que deixasse de ser o meu cantinho feliz, mas quero estudar muito música, com formação musical e dedicar-me finalmente a um instrumento que não a voz. E assim farei quando terminar a faculdade, mas também gostava de fazer um curso de línguas, até para cantar lá fora…
Porque é que não seguiste os estudos na música logo?
Tinha medo que, de repente, a música perdesse a magia que tinha em mim. Eu fui sempre muito perfeccionista, era aluna ‘top’, abaixo de 17 era má nota, era muito exigente e ainda hoje sou. Nunca nada está bem, está menos mal, mas não está bem. Às vezes nos testes, quando estava a correr mal, entrava em pânico, mas pensava logo ‘hoje é quarta, daqui a dois dias vou aos fados’ e curava as minhas feridas assim.
Pensava ‘ok, está a correr mal, mas depois também vou ali aos fados e relaxo um bocado’, e nunca quis perder esse lugar de que quando as coisas correm mal, podia depois ir aos fados. Se estava triste, pensava que a seguir ia cantar, e aquilo ia-se resolver. Pelo menos durante aqueles três minutos de fado, estava resolvida. Não queria nada que a música perdesse este encanto. Ao tornar-se a minha profissão, ganha alguma obrigatoriedade, tinha de ter disciplina.
Claro que há coisas que às vezes não me apetece fazer, como em todos os trabalhos, e o lado burocrático não me interessa nada, eu quero é criar, escrever e cantar. Mas senti que, se fosse estudar música, podia destruir este mundo encantado da música na minha cabeça.
Se não fosses fadista, o que é que achas que terias sido na tua vida?
O que eu gostava de ser era médica… mas não entrei por duas décimas. Agora, o que é que eu seria? Dificilmente seria algo que não estivesse ligado à comunicação. Curiosamente nunca foi uma hipótese estudar isso, mas teria de estar ligada a algo com gestão, comunicação, marketing, porque vivo muito da comunicação e acho que sei comunicar. Teria de ser algo ligado a isso, mas não gostava muito de ter de pensar nisso agora.
Quando começaste a estudar, alguma vez achaste que a música pudesse acabar por ocupar a maior parte da tua vida?
De todo. Quando comecei a cantar nem sabia que isto podia ser uma profissão. Tinha 12 anos, sabia lá que podia vir a cantar. Tinha sempre aquela coisa de que não era nada do que tinha planeado, que queria ser médica. Pensava muito ‘E se isto corre mal?’.
O mundo das artes é instável, mas chega um ponto em que já não há volta a dar. Há pessoas que trabalharam a vida inteira para ser artista, foram aos sítios certos, aos programas certos, mas eu nunca fiz nada, as coisas iam só acontecendo. Eu nem tinha consciência de certas coisas que aconteciam que realmente eram importantes, então levava as coisas com uma leveza tal, pronto, achava que era giro, e aconteceram coisas importantes que só percebi mais tarde.
Eu comecei muito miúda. São poucas as fadistas que fazem o CCB com 19 anos, mas eu também comecei a cantar com 12. Tudo acontece mais depressa do que quando começas com 16 ou 17. E às vezes até ficava triste. Por exemplo, na Mesa de Frades, vinha-me embora, e depois chegava alguém conhecido como a Maria de Fé, e eu chegava a casa e dizia ‘Pois, ela foi depois de eu ter lá estado!’, e a minha mãe dizia sempre que as coisas aconteciam quando tinham de acontecer, e se não a tinha visto era porque não tinha de a encontrar.
Eu fiz sempre as coisas nessa base. Umas coisas aconteceram e outras não, temos de saber lidar. Mas isto era mais quando era miúda, agora já crio expectativas, e quando não corre bem, a queda é grande, dói e aleijamo-nos… Às vezes as críticas dos discos, por vezes pensas que vão ser melhores do que são… Por exemplo, no concerto no Tivoli, lembro-me que tinha medo que o João [Braga] e que a Maria da Fé me repreendessem pela roupa ou pelo repertório, mas disseram logo que tinha sido muito bem gerido.
E outras vezes que acho que foi incrível, mas depois não dizem nada de especial. E há vezes em que te sentes injustiçado e pensas que se não te dás com A ou B não és beneficiado, e eu às vezes sinto isso, mas não quero fazer disso bandeira, porque é um bocado assunto de ressabiamento. De facto, os contactos às vezes metem-te em lugares privilegiados.
Como se reagiu lá em casa quando decidiste abraçar a carreira de fadista a tempo inteiro?
Os meus pais são muito meus fãs, acho eu. Caso contrário, andam a enganar-me [risos]. Mas eu fui a última pessoa a perceber que este ia ser o meu caminho. Já toda a gente sabia menos eu. E a minha mãe dizia dizia: ‘Teresa, fica feliz de saberes fazer algo que as outras pessoas gostam, recebes palmas e trabalhas a fazer algo que amas perdidamente’. O dia em que aceitei ser artista, foi um dia tristíssimo, porque afundei montes de outros sonhos que tinha. Tanto que comecei a cantar um fado que é o Naufrágio, e chorei tanto tanto tanto…
O dia em que aceitei que ia ser artista foi muito difícil, porque não era nada do que eu tinha imaginado. Mas os meus pais e os meus avós já sabiam. Às vezes tinha um 10 num teste e os meus pais diziam: ‘Já passaste, e pronto’, mas eu ficava frustrada porque tinha tido má nota. Não é porque não quisesse ser artista, é mais porque não realizei tudo aquilo que queria ter realizado. Hoje em dia não me imagino a fazer outra coisa senão cantar, mas naquela altura foi complicado.