Após anos de ataques cada vez mais ambiciosos em Cabo Delgado, de avanços e recuos das tropas moçambicanas e de mercenários que as apoiam, as forças governamentais passaram à ofensiva, após a chegada dos primeiros comandos sul-africanos a Pemba, parte de um contingente de 1495 tropas que deverá chegar até 15 de outubro, com 300 militares do Botsuana a caminho, e a entrada em combate de mil soldados e polícias ruandeses.
Eventualmente poderão ser reforçados pelos 214 comandos e fuzileiros moçambicanos a quem 45 militares portugueses dão formação em contraterrorismo, em Catembe, perto de Maputo, e em Chimoio, no centro do país, disse o Ministério da Defesa Nacional ao Nascer do SOL. A estes portugueses, que estão em Moçambique ao abrigo de um acordo bilateral, poderão juntar-se até mais 15 efetivos, bem como uma missão de formação militar da União Europeia, dirigida no terreno pelo brigadeiro-general Nuno Lemos Pires.
O problema é que há grandes dúvidas de que meras vitórias no campo de batalha resolvam a insurgência, enquanto se mantiver o descontentamento da população de Cabo Delgado. Que até pode ser agravado com a multiplicação de intervenções militares estrangeiras na província, sem um comando único central – e muito difíceis de responsabilizar por eventuais abusos contra civis.
«A presença de múltiplas missões militares provavelmente levará a prioridades contraditórias e pode levar a fricção a nível do comando militar. Isso provavelmente causará tensões entre Maputo e os seus parceiros», diz Alexandre Raymakers, analista para África da consultora de risco Verisk Maplecroft, ao Nascer do SOL. «Sim, isso também fará com que a responsabilização em casos de abusos de direitos humanos seja mais difícil».
«Pense no caso da invasão do Afeganistão», explica Milissão Nuvunga, investigador do Centro de Estudos de Paz, conflito e Bem Estar (CEPCB). «A intervenção foi uma coligação, não uma missão conjunta das Nações Unidas. As violações que aconteceram ainda hoje estão a ser julgadas por tribunais de cada país. Por exemplo, alguns soldados australianos fizeram tiro ao alvo com civis afegãos que detinham, e isso é julgado na Austrália. Mesmo num Estado de Direito avançado, houve lutas jurídicas intermináveis», salienta Nuvunga. «Como é que um moçambicano apresenta um caso judicial no Ruanda, na África do Sul, no Zimbabué, contra o comportamento dos seus soldados?».
Ou seja, se os académicos e investigadores moçambicanos já se queixavam de que nunca sabiam com quem falar para perceber o que se estava a passar em Cabo Delgado, qual a estratégia, quais os meios e os efetivos, quem eram os responsáveis por abusos de militares contra civis, agora as coisas vão ficar ainda mais complicadas.
Para o investigador do CEPCB, as intervenções estrangeiras nos tempos da guerra civil entre o partido governante, a Frelimo, e a Renamo seriam um melhor modelo com que trabalhar.
«Estivemos aqui com a ONUMOZ [Operação das Nações Unidas em Moçambique], em 1992, quando foram os acordos de paz. Tivemos muitas tropas estrangeiras, houve italianos, bangladeshis, etc, mas tudo com o mesmo comando, era tudo ONUMOZ. Nós sabíamos com quem ir falar».
«Eu sou da Beira, nós brincávamos que tivemos a sorte de ter os italianos lá, porque eles levaram as nossas irmãs todas para Itália, e as que não levaram deixaram-nas com apartamento», conta Nuvunga, entre risos. É uma história que vem a propósito. «O que quero dizer é que a passagem de qualquer grupo num local cria dinâmicas sociais extra ao próprio conflito. Mas neste contexto de falta de governação, com cada um com a sua dinâmica nacional, isso pode tornar-se grave».
Calton Cadeado, especialista em paz e segurança da Universidade Joaquim Chissano, concorda plenamente. «Hoje, o Governo moçambicano fala muito em proteger direitos humanos. Mas essa tropa que conhecemos do Ruanda não faz isso», avisa o investigador. «É por isso que digo, amanhã eventualmente vai haver abusos. E quem vai pagar a fatura é o Governo e a tropa moçambicana», acrescenta. «Quando essas tropas saírem vai ficar a mancha. E acho que é por isso que o Estado moçambicano tem insistido muito no discurso de evitar violação dos direitos humanos. Estão a contar com casos desses».
Esvaziar o território
Dias depois da chegada das forças ruandesas – conhecidas como das mais bem treinadas, experientes em guerras de guerrilha e brutais da África Subsaariana – já havia registo destas se envolverem nos confrontos mais duros, por vezes sem apoio de tropas moçambicanas, lê-se no mais recente relatório do Cabo Ligado, um observatório da Armed Conflict Location and Event Data Project.
Os ruandeses trouxeram consigo novas táticas. Desde que foram colocados nos arredores de Palma, perto das explorações petrolíferas da Total, as forças moçambicanas têm esvaziado a região de civis, juntando-os num campo de refugiados em Quitunda, de maneira a criar um campo de fogo livre para as tropas ruandesas, onde quem quer que encontrem pode ser um potencial alvo a abater.
Os riscos são imensos. «Quando se fazem estas tentativa de esvaziar território – sublinho, tentativa – não é algo garantido, porque há muitos que não querem sair», alerta Calton Cadeado. Por mais que os militares se sintam à vontade para levar a cabo ações mais agressivas, e sem testemunhas, muitos habitantes podem esconder-se e tentar voltar às suas terras, às suas quintas de subsistência, ou machambas, em vez de ir para campos de refugiados com condições insalubres. «Não é só neste caso de guerra, já aconteceu em casos de cheia aqui em Moçambique, no caso do Idai, pelo peso que algumas pessoas dão às suas tradições», alerta o investigador.
No entanto, a estratégia usada pelas forças ruandesas parece estar a funcionar. A 20 de julho já patrulhavam território a dezenas de quilómetros de Palma, chegando à aldeia de Quionga, onde encontraram insurgentes, matando uns trinta enquanto estes recuavam floresta a dentro, tentando cruzar a fronteira da Tanzânia, avançou o jornal sul-africano Daily Maverick – não há registos de quantas baixas sofreram os ruandeses. Entretanto, avançaram também nos arredores de Muidumbe, retaliando contra um ataque jiadista na região, apanhando e matando 26 insurgentes, lê-se no Cabo Ligado.
Importa lembrar que há muito que as forças armadas ruandesas são acusadas de causar o caos no leste da República Democrática do Congo, um país enorme que invadiram com sucesso por duas vezes – da segunda vez, apelidada como a Grande Guerra Africana, entre 1998 e 2008, estima-se que o saldo tenha sido de até 5,5 milhões de mortos – e onde agora estarão a financiar e apoiar diretamente grupos rebeldes.
Porque é que isto interessa para Cabo Delgado? Porque «o Ruanda enfrenta um contexto muito semelhante a Cabo Delgado no leste do Congo», nota Milissão Nuvunga. «É um teatro militar sem governação, sem Estado, lá só tem militares e aldeias. Isso favorece as tropas ruandesas», explica. «Tenho sérias dúvidas que o exército sul-africano vá ter a mesma taxa de sucesso, não está preparado para esse conflito».
Talvez seja por isso que França – que tem enormes interesses económicos em Cabo Delgado, através da petrolífera Total – apoiou o envio de tropas do Ruanda, avançou a imprensa do Zimbabué, cujo Governo recebeu uma oferta semelhante, em vez de apostar as suas próprias tropas, como fez no Sahel, com a operação Barkhane, onde milhares de tropas francesas, no terreno desde 2014, não conseguiram impedir a proliferação de jiadistas.
Recentemente, o Presidente Emmanuel Macron decidiu acabar com a operação Barkhane, prometendo um novo paradigma para as intervenções militares francesas. Talvez o uso de tropas do Ruanda, que ainda no início deste ano salvaram o Presidente centro-africano, Faustin Touadéra, aliado de França, quando este enfrentou uma ofensiva rebelde, seja essa nova solução.
«A intervenção militar estrangeira provavelmente levará a algum sucesso tático no campo de batalha», avalia Alexandre Raymakers. «Mas sem um esforço concentrado para resolver as bem enraizadas frustrações socioeconómicas que estão no centro da insurgência em Cabo Delgado, é improvável que um foco puramente na segurança leve a estabilidade a longo prazo».
«As tropas estrangeiras não podem ficar eternamente aqui em Moçambique. Tem um grande custo económico, humano, são coisas que qualquer Estado tem hesitação em estender», lembra Calton Cadeado. «A sofisticação da guerrilha pode levar à infiltração nas comunidades, mas também a esconderem as armas por algum tempo, até criar um certo desgaste na tropa estrangeira. Aí podem desenterrá-las e voltar a fazer os seus ataques»