O Bloco de Esquerda deu entrada a dois diplomas na Assembleia da República que visam pôr um travão à crescente prática de Jogo em Portugal – em particular às “raspadinhas”. O primeiro trata-se de um projeto-lei que “estabelece limites à publicidade dos jogos e apostas”, procurando “introduzir restrições à publicidade, promoção e patrocínio de jogos online”. Já o segundo trata-se de uma recomendação para que o Governo reforce a “regulamentação sobre as lotarias instantâneas [raspadinhas] com vista a contribuir para a diminuição dos riscos ou efeitos negativos associados ao uso abusivo ou patológico”.
No primeiro diploma, em concreto, o partido propõe “proibir a publicidade a lotarias instantâneas” e “limitar a emissão de publicidade a jogos e apostas nas televisões e rádios apenas ao período noturno das 22h30 às 7h”. Somando a isso, o Bloco deseja ainda que “a publicidade de quaisquer eventos em que participem menores, como actividades desportivas, culturais, recreativas ou outras, não pode exibir ou fazer qualquer menção, implícita ou explícita, a marcas de lotarias instantâneas”. Por fim, nos locais onde se realizarem estes eventos, “não podem ser exibidas ou de alguma forma publicitadas marcas de lotarias instantâneas”, ou seja, quer também “impedir publicidade às ‘raspadinhas’ nos jogos de futebol, andebol ou outra modalidade em que participam camadas jovens”.
Apesar de o Código da Publicidade balizar um conjunto de boas práticas a ter quanto à “publicidade de jogos e apostas”, o Bloco está em crer que “continuam a ser vários os casos de abuso verificados ao nível da publicidade online, comprometendo a proteção dos consumidores, em particular dos mais vulneráveis”. E quem são estes “mais vulneráveis”? Segundo um inquérito do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), citado no projeto do Bloco, “mais de metade dos jogadores de raspadinha são mulheres, entre os 35 e os 54 anos, com habilitações relativamente baixas e rendimentos entre 500 e 1000 euros mensais”, verificando-se ainda um avultado consumo de raspadinhas “nos segmentos da população mais idosa, em particular entre os pensionistas e reformados”. Este estudo nota ainda que “as pessoas com mais de 65 anos representam 17,2% do total de jogadores de raspadinhas” e que “76,6% dos consumidores de raspadinha são de classe média baixa e baixa”, concluindo assim que o problema afeta “profundamente” as camadas de população “com menos rendimentos e menor escolaridade”.
Por isso, o Bloco assesta baterias à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) – entidade responsável pelas ‘raspadinhas’ –, realçando que esta, não obstante estes números preocupantes, aumentou os montantes gastos em publicidade: “Verificamos que os valores ascenderam de 17 milhões e 311 mil euros em 2014 para 28 milhões e 442 mil euros em 2019 (…) [e que] a publicidade é transmitida na televisão em qualquer período do dia”, constituindo a TVI, a RTP e a SIC os principais meios de difusão. As raspadinhas são, segundo um estudo publicado na revista The Lancet Psychiatry, a principal fonte de receita da SCML, chegando aos 1718 milhões de euros em 2019. Notando a existência de raspadinhas online desde 2013 – cuja adesão “superou a de alternativas como o Euromilhões, a Lotaria Clássica ou o Totoloto” –, o Bloco evidencia que o jogo online atingiu recordes durante a pandemia: “As receitas do jogo online passaram de 70,2 milhões de euros no primeiro trimestre de 2020 para 128,3 milhões no primeiro trimestre de 2021, o maior aumento anual desde que há estatísticas sobre jogos online”, havendo um aumento de 109% de novos jogadores – sobretudo jovens – face ao período homólogo. A conclusão da relação entre estes dados é simples: “Em suma, o volume investido em publicidade aumentou nos últimos anos, tendo sido acompanhado por um aumento do número de jogadores”, lê-se no documento.
Segundo o Bloco, sustentado, entre outros, pelo estudo da The Lancet Psychiatry, “o problema da raspadinha transcende o jogo online, tendo graves riscos sociais associados ao seu impacto no aumento do jogo abusivo e patológico”. O estudo revela que Portugal é o país da Europa onde se gasta, em média e per capita, mais dinheiro em raspadinhas: mais de quatro milhões de euros por dia – o que equivale a um gasto médio anual de 160€ por pessoa face a apenas 14€ médios em Espanha.
E é através desta ponte que aprofundamos o primeiro ponto da segunda proposta: o Bloco recomenda ao Governo a “restrição de venda de raspadinhas em todos os locais que não se dediquem exclusivamente à atividade de mediação dos jogos sociais do Estado”. Em termos práticos, este ponto visa proibir a venda de ‘raspadinhas’ em “todos os estabelecimentos dos CTT”, contudo, salvaguarda os quiosques “e outros estabelecimentos comerciais onde as vendas de raspadinha representam praticamente a totalidade da sua faturação”. Outra recomendação é a de “estender a opção de autoexclusão aos jogadores de lotaria instantânea, com efeito nos locais de venda física” – ou seja, recomenda que os jogadores de ‘raspadinhas’ possam passar a pedir para serem proibidos de jogar, algo que já se faz, por exemplo, quanto a casinos ou jogos e apostas online.
O Bloco recomenda que os pedidos de autoexclusão sejam administrativamente simplificados. Note-se que o investigador e psiquiatra Pedro Morgado, autor do estudo citado, havia já sugerido a autoexclusão de jogadores de raspadinhas em entrevista ao Expresso, em 2020, indo mais longe e falando mesmo na “criação de um cartão do jogador”. Por fim, recomenda ao Governo que promova “um diagnóstico concreto do problema, reforçando a recolha de dados sobre o jogo, no domínio da procura e da oferta, contribuindo para o aprofundamento do conhecimento sobre os padrões de consumo e os seus problemas associados”, e que reforce o SNS, concretamente na vertente da “dimensão das dependências”, inserida na saúde mental.
Contactado pelo i acerca do projeto bloquista, Edmundo Martinho, Provedor da SCML, afirma não comentar “iniciativas do grupos parlamentares”, garantindo, contudo, que a “Santa Casa gere os jogos sociais do Estado no estrito cumprimento da legislação e dos respetivos regulamentos”.