Apesar do muito prazer que tinha em tocar piano e de ter uma grande admiração por Chopin, partilhada pela sua sobrinha Teresa Melo Ribeiro, não quis fazer carreira na música. É que, para Galvão de Melo, na arte, como de resto em quase tudo na sua vida, «ou se é tudo ou se é nada». A própria profissão de aviador militar, que acabou por seguir, também não esteve logo nos seus planos. Pensou formar-se em Direito e foi para a faculdade, mas em plena Segunda Guerra Mundial convenceu-se de que Portugal não podia escapar sem pegar em armas. «Eu que nunca gostei de ser amador em coisa nenhuma, então, uma vez que corria o risco de ir a essa guerra, preferi ir como militar profissional». As justificações da sua escolha em ingressar na Força Aérea Portuguesa, dadas pelo próprio numa entrevista emitida pela RTP, a propósito da sua candidatura presidencial às eleições de 1980, são muito reveladoras da forma de estar na vida do aviador.
Carlos Galvão de Melo, que faria 100 anos esta quarta-feira, nasceu a 4 de agosto de 1921 em Buarcos, Figueira da Foz, onde a sua família, originária de Mangualde, distrito de Viseu, passava férias. Estudou no Liceu Camões, em Lisboa, e frequentou a Academia Militar. No final do curso integrou a Aeronáutica Militar, passando mais tarde para a Força Aérea Portuguesa (FAP), quando esta foi criada nos anos 50. Em 1959, tornou-se o primeiro comandante da recém-inaugurada Base Aérea de Monte Real. Em 1960 destacaram-no para Moçambique e no ano seguinte para Angola, onde mais tarde denunciou negócios feitos com aviões militares, que estavam a ser encobertos por altas patentes.
A cisão com a hierarquia militar foi inevitável e Galvão de Melo passou à reserva, por vontade própria, em 1966, em discordância com a forma como o regime utilizava a FAP. Terá sido essa uma das razões para que, oito anos depois, fosse desafiado a entrar para a política com o 25 de Abril. Fez parte da Junta de Salvação Nacional, o primeiro órgão político-militar saído da revolução.
«Sabedores desta minha atitude [passar voluntariamente à reserva], era perfeitamente natural que aqueles que quiseram fazer o golpe do 25 de Abril me convidassem. E reparem até nesta curiosidade, é que eu fui o único oficial que estando na reserva eles vieram convidar para participar no movimento revolucionário. Por outro lado, e não era segredo para ninguém, eu sempre alimentei e defendi ideias verdadeiramente democráticas», explicou em entrevista. No entanto, passado pouco mais de um mês sobre o 25 de Abril, Galvão de Melo mostrava já alguma desilusão pelo resultado da revolução.
O português autêntico
No dia 27 de maio de 1974 fez uma declaração na RTP na qual demonstrava receios em relação ao caminho que se estava a traçar no país. O general denunciou alguns excessos da revolução de Abril, citando o conteúdo de uma carta endereçada à Junta de Salvação Nacional, «escrita por um só português, mas que poderia ter sido escrita por todos os portugueses autênticos».
«Não represento ninguém, senão eu próprio, mas, passadas quatro semanas sobre o 25 de Abril, começo a perguntar, e não obtenho resposta, se isto será a Liberdade que o Povo Português sonhava», leu o general. «Isto que é libertarem-se terroristas sem Pátria e transformá-los em heróis nacionais! Isto que é permitir-se e fomentar-se a caça ao homem, o insulto gratuito, as ofensas corporais, o saque de casas!». Mas não ficou por aqui, fazendo questão de mostrar que também ele fazia parte do que chamou de ‘portugueses autênticos’, partilhando assim das preocupações do autor da carta. «No Mundo, existe um valor: o Homem. Neste Homem devemos entender todos os homens: o ministro, que noite dentro cogita preocupado sobre o que será melhor para o povo que nele confia; e o cavador, que, de sol a sol, fecunda a terra com o esforço dos seus braços robustos. Ambos são dignos do nosso respeito e do nosso agradecimento (…) Foi para este Homem – para estes dois homens – que certa juventude militar, amadurecida no drama africano, se levantou cedo na madrugada de 25 de Abril e, unânime e decidida, abriu de par em par as portas da liberdade ao homem português: A liberdade de pensar e se instruir; A liberdade de criar ideias próprias e as discutir com o seu igual, o homem da cidade e o homem do campo, para, ambos, encontrarem a melhor ideia e a mais digna».
A declaração de Galvão de Melo ficou conhecida como a ‘Carta de um Português Autêntico’ e consta do Centro de Documentação 25 de Abril. A desilusão com o resultado da revolução tornou-se cada vez maior e o general participou mesmo ativamente na manifestação da Maioria Silenciosa, iniciativa política de apoio ao então Presidente da República, general Spínola, que acabou por ser travada a 28 de Setembro pelo Movimento das Forças Armadas, que entretanto impõe a saída dos três generais mais conservadores da Junta de Salvação Nacional, sendo Galvão de Melo um deles.
É talvez esse o momento, depois do 28 de setembro, que dá o tom quente e combativo que sempre pautou a relação entre o general e o Partido Comunista Português.
Guerra aberta na Assembleia e secreta nos ‘bastidores’
Galvão de Melo, cada vez mais fervoroso e orgulhoso anticomunista, teve por isso duras disputas com os partidos mais à esquerda na Assembleia Constituinte, para a qual foi eleito como deputado independente pelo CDS, a convite de Diogo Freitas do Amaral.
Mas o interesse da Esquerda pelo general e pelas suas movimentações não começou apenas depois da eleição como deputado, em abril de 75, como contou ao Nascer do SOL José Luís Andrade. O na altura estudante de 20 anos, da Academia Militar, recorda que foi detido em Évora e levado para o Forte de Caxias, onde «depois de alguns dias de isolamento» foi interrogado «durante oito horas ininterruptas» pelo alferes Lopes da Silva, que se fazia acompanhar «por um civil que, durante o interrogatório, se denunciou como membro do Partido Comunista». O aluno de Engenharia foi questionado sobre várias «atividades conspirativas», em particular sobre a sua participação e de outros elementos (oito rapazes e uma rapariga, entre os 16 e os 23 anos) nas campanhas políticas do general Galvão de Melo, cuja figura pareceu a José Luís Andrade ter sido um dos principais objetivos da recolha de informações.
Galvão de Melo era de tal forma visto como voz da ‘reação’ que o insulto que mais lhe apontavam na Assembleia Constituinte era «fascista», algumas vezes precedido de «bandalho». Eram outros tempos e, embora houvesse também ordens para acalmar os ânimos dos deputados, as línguas eram mais soltas e menos politicamente corretas.
Quanto pesa uma moca de Rio Maior?
Foi sempre assim no tempo em que o general esteve na bancada do CDS, a Esquerda não perdia uma oportunidade de o associar a ideias e iniciativas de contragolpe, ataques a que gostava de responder com ironia e sarcasmo.
Numa intervenção na Assembleia, o deputado Manuel Nobre Gusmão, do PCP, acusou Galvão de Melo de, num comício em Rio Maior, dizer que «os comunistas deviam ser empurrados até ao mar, para aí morrerem de morte natural» e que «para melhor ilustrar a sua ideia (…) brandiu mesmo uma moca. Teria, aliás, afirmado ser isso a voz de Rio Maior». Sublinhe-se que a moca de Rio Maior tornou-se um símbolo da luta contra o comunismo e a Reforma Agrária por alturas do Verão Quente de 1975, quando aquela cidade do Ribatejo se tornou fronteira simbólica de um país dividido em dois: no sul a revolução e no norte a reação.
Galvão de Melo não contestou logo Nobre Gusmão, mas também não quis deixar esfriar o caso e, poucos dias depois, numa sessão legislativa, respondeu com ironia e sarcasmo, muito ao seu estilo. «Decidi desta vez responder, não esquecendo nem o banho de mar nem a matraca que exibi no comício de Rio Maior. Eu, todos o sabem, sou anticomunista na medida em que sou antitotalitarista», começou por dizer o deputado, acrescentando: «Contudo, mais que anticomunista, eu sou democrata, e portanto respeitador das ideias dos outros homens. E portanto respeitador das ideias dos comunistas». «Muito bem!», comentou o agora presidente da Câmara de Sintra, Basílio Horta, então companheiro de Galvão de Melo na bancada do CDS, partido do qual foi fundador.
O discurso do general prosseguiu com um elencar dos males do comunismo e acusações de tentativas de implementar uma ditadura comunista, sem esquecer os «autênticos roubos e destruições» feitos «a coberto da reforma agrária». Isto sempre com apupos e gritos de indignação como som de fundo. Foi então que Galvão de Melo abordou o 25 de Novembro, que segundo ele teria precipitado toda a Nação em «dramático banho de sangue, se não fora a competência, a disciplina e o patriotismo das forças armadas e das forças de segurança».
Vital Moreira, à época deputado do PCP, não se conteve: «Não seja demente, Sr. Deputado. Não seja demente» – sendo chamado à atenção pelos termos utilizados.
Galvão de Melo continuou a sua intervenção para se dirigir diretamente a Nobre Gusmão, que afinal não estava presente naquele dia, mas isso não travou o deputado independente: «O que é um possível banho de mar comparado à tentativa de um banho de sangue?», questionou. «O que foi o meu ‘incitamento à violência’ em Rio Maior, para usar a vossa linguagem, comparado aos criminosos incitamentos do Rádio Clube tantas e tantas vezes repetidos ao serviço do Partido Comunista? (…) O que foi o meu ‘incitamento’ comparado com o vosso abortado golpe de 25 de Novembro? (…) O que vale a ‘matracazinha’ de meio quilo?», continuou, antes de terminar de forma irónica: «Cândidas indignações contra o banho de mar e contra a pequenina matraca apenas me fazem sorrir».
A intervenção foi muito aplaudida pela sua bancada, mas a relação entre Galvão de Melo e o CDS não duraria muito mais tempo, também por causa destas tiradas sarcásticas e certeiras.
A cisão definitiva viria acontecer em 1977, pouco depois de Galvão de Melo dar uma entrevista na qual admitia soluções menos democráticas, desde que temporárias, e criticava diretamente o então Presidente Ramalho Eanes, mas também o líder do CDS, Diogo Freitas do Amaral. Acabou por ser afastado da bancada parlamentar já no tempo da primeira Assembleia Legislativa.
Todos os caminhos iam dar ao Porto
Em 1980, foi candidato independente às presidenciais, tendo na sua sobrinha, na altura com 16 ou 17 anos, uma das apoiantes mais entusiásticas. Teresa Melo Ribeiro, hoje advogada, tinha uma «admiração enorme» – pessoal e política – pelo tio, dono de «um charme extraordinário» e com quem tinha uma relação especial, estreitada pela paixão que ambos partilhavam por Chopin, paixão essa que tantas vezes os levou juntos a concertos.
Dele, o que melhor recorda é a «coragem, a integridade e o patriotismo», qualidades mais do que suficientes para que Teresa Melo Ribeiro fizesse o possível e o impossível para mostrar o seu apoio a Galvão de Melo.
A história que partilhou com Nascer do SOL é exemplo disso mesmo. A advogada fazia questão de marcar presença num comício do tio no Porto mas, por ter pouco tempo para lá chegar, decidiu ir de avião. «Cheguei ao aeroporto já em cima da hora e entrei para o avião já atrasada, fiquei sentada ao lado de uma senhora que meteu conversa comigo por causa da camisola de campanha que eu tinha vestida e expliquei-lhe que ia ouvir o Galvão de Melo discursar. É então que ela me diz que não sabia que o Galvão de Melo ia fazer um comício no Funchal. Fiquei baralhada e repeti que era no Porto, ao que a senhora me respondeu que aquele avião, que já estava prestes a levantar voo, ia para a Madeira. Chamei a hospedeira e disse-lhe que tinha mesmo de ir para o Porto, ela falou com o comandante e lá me deixaram sair», recordou.
Apesar do apoio fervoroso da sobrinha, Galvão de Melo saiu derrotado frente a Ramalho Eanes – recandidato a Presidente e apoiado pela Esquerda, apesar de Mário Soares ser contra –, e a Soares Carneiro, que contava com o apoio da Aliança Democrática.
Eanes ganhou a eleição e Galvão de Melo, desiludido com a fraca votação, menos de 1%, retirou-se da vida política ativa, mas não interventiva. Estava ainda para vir uma das maiores polémicas do general. Em 1994, criticou publicamente o apoio de Portugal à independência de Timor-Leste, defendendo a anexação do território pela Indonésia.
Morreu aos 86 anos, a 20 de março de 2008, vítima de doença súbita. O centenário do seu nascimento assinala-se apenas uns meses depois de o seu antagonista maior, o PCP, ter também comemorado um século de existência. Ironia que talvez Galvão de Melo apreciasse.