Com a desenvoltura que o caracteriza, Marcelo Rebelo de Sousa deslocou-se ao Brasil, a pretexto da reinauguração do Museu da Língua Portuguesa, em S. Paulo, que um incêndio quase consumiu há cinco anos. Fez bem. Mas o clima pré-eleitoral que já se vive no país não o poupou.
Apesar de convidado, Jair Bolsonaro não compareceu ao evento, sem aviso prévio, trocando-o por uma concentração de motoqueiros, que decorria no estado paulistano. Uma descortesia.
É certo que Marcelo soube, com ironia, furtar-se ao embaraço, ao citar um provérbio popular – «Só dança quem está na roda»…
Mas ficou o revés, tanto mais que o Presidente era portador da primeira medalha Camões, uma nova condecoração atribuída ao museu recuperado.
Poderá conjeturar-se que o facto de Bolsonaro ter ignorado a homenagem, se deveu ao atual governador de S. Paulo, anfitrião da cerimónia, ser um dos seus ativos críticos, ou ’sinal de desagrado’ por Marcelo se ter avistado com Lula da Silva, um seu declarado adversário, ainda a contas com a Justiça.
Mas nada disso absolve o gesto, que não diminuiu Marcelo, mas que foi uma nota dissonante numa celebração da Língua Portuguesa, com mais de 250 milhões de falantes, cabendo ao Brasil o contributo principal.
No plano institucional, embora Marcelo tenha sido recebido mais tarde, no Palácio da Alvorada, ‘sem máscara’, como enfatizou a imprensa brasileira, tratou-se de um formalismo que não remediou o acinte protocolar no museu, tanto mais que o Presidente da República comparecera à posse do controverso Presidente brasileiro.
É uma sina. Após um intervalo auspicioso com Fernando Henrique Cardoso, sem dúvida, um dos melhores Presidentes que o Brasil conheceu – e a quem se deve a reabilitação económica do país –, a eleição e o mandato de Lula não seriam menos polémicos, assim como o de Dilma Rousseff, que lhe sucedeu, e acabou impugnada em 2016.
Mas os Presidentes passam e a Língua Portuguesa fica, como património aberto ao futuro, apesar de o Acordo Ortográfico, que nunca chegou a ser implementado no Brasil.
O investimento feito na recuperação do Museu da Língua Portuguesa, que contou com dinheiros públicos e privados, foi um acontecimento que não merecia ter sido desvalorizado por Bolsonaro. Mas quando este ‘recolher à caserna’, a língua falada continuará a ser o Português, desde os maiores centros urbanos ao interior mais remoto do Brasil o que não é coisa pouca.
Por tudo isto, Marcelo não deveria ter ‘escorregado’ na bizarria de ‘comentar’, em solo estrangeiro, a vacinação de crianças em Portugal contra a covid, à margem da assinatura de um protocolo sobre a participação de Portugal na Bienal do Livro de S. Paulo.
Porque loas precisava Marcelo de ‘esclarecer’ uma questão do foro do Governo, arriscando-se a ser ‘corrigido’ pela DGS?
O vício de ‘comentador’ não o larga, como se percebera, mais uma vez, antes da viagem, com a infeliz ideia de convidar para Belém o programa Circulatura do Quadrado, para ‘comentar’ o estado da nação.
Marcelo não consegue separar-se do comentador. É verdade que foi o seu jeito de comunicador que lhe angariou popularidade, diferente da notoriedade como académico e jurisconsulto.
Ora uma coisa são as vestes académicas, e outra bem diferente é ser disputado para ‘selfies’. E Marcelo gosta.
O jornalismo e as ‘travessuras’ na coluna Gente, que criou no Expresso, entreabriram-lhe a porta. A rádio e, sobretudo, a televisão, descobriram nele o prazer de ser reconhecido na rua.
Como político, embora tivesse aderido ao PSD logo nos alvores da sua fundação, só nos anos 90 chegou à liderança do partido, que se revelaria pouco duradoura, embora já pautada por uma aproximação ao PS de António Guterres, amigo e companheiro do Grupo da Luz.
Foi, aliás, durante a sua liderança, que Marcelo viabilizou três Orçamentos de Estado do Governo minoritário de Guterres, enquanto reatava as relações institucionais do PSD com o PCP, interrompidas 20 anos.
Quis o destino que Marcelo-Presidente, se reencontrasse com um governo socialista minoritário, agora de ‘braço dado’ com as esquerdas para viabilizar o OE.
Ao contrário de Francisco Balsemão, que um dia confidenciou a ambição de ser ministro dos negócios estrangeiros, Marcelo nunca pareceu muito empenhado em ser governante, embora episodicamente o tenha sido.
Mas não era ‘a sua praia’, tal como em Balsemão não assentava bem o fato de primeiro-ministro, que lhe ‘caiu no regaço’, a seguir à morte de Sá Carneiro.
Neste poente da vida, Balsemão parece apostado em fixar o seu lugar na História, juntando na autobiografia a fundação do PSD, do Expresso e de um império mediático, enquanto Marcelo arrisca-se a passar à História como ‘comentador pop star’ e ‘anjo da guarda’ de governos socialistas. Ele e o país mereciam mais…