O Estado é laico. E tem uma televisão pública. Sendo essa televisão do Estado, e sendo este laico, deverá o mesmo transmitir a eucaristia dominical? Há quem defenda que sim, e há quem defenda que não. Os primeiros alicerçam-se no facto da cultura do país ser católica e, consequentemente, o conteúdo televisivo que passa na RTP ser um espelho desta cultura. Os segundos consideram o contrário: ou seja, que um Estado laico não deve, em situação alguma, passar conteúdos religiosos.
A polémica ganhou asas após a leitura da Epístola de São Paulo aos Efésios em direto na Eucaristia Dominical da RTP, cuja passagem – não na íntegra – aqui reproduzimos: “As mulheres sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o chefe da Igreja” ou “assim como a Igreja é submissa a Cristo, assim também o sejam em tudo as mulheres a seus maridos”. Faz sentido, em 2021, o Estado patrocinar uma plataforma que transmita conteúdos como este? E o que quer isto dizer? Deverá ser lido como uma metáfora, ou deverá ser lido à letra?
“A RTP deve ser privatizada” Ao i, Carlos Guimarães Pinto começa por dizer que a “RTP deve ser privatizada para que não se coloquem este tipo de problemas”. Na sua opinião, “é escusado termos uma TV gerida consoante os gostos momentâneos de quem decide dentro do Estado”. Havendo-a, há uma suscetibilidade de “estarmos sempre a dizer se se deve ou não transmitir isto ou aquilo” ou de debatermos “se este programa viola ou não a liberdade das pessoas”.
“Eucaristias são serviço público” Já André Ventura, líder do Chega, e o Padre Edgar Clara consideram a eucaristia dominical “verdadeiro serviço público”. “Sendo o povo português maioritariamente católico, faz sentido que a cerimónia religiosa seja transmitida pelo canal público”, disse ao i André Ventura. Edgar Clara, Padre e Colunista no Nascer do SOL, expande a sua resposta: começa por explicar que a “RTP não é gerida pelo Estado”, mas que se trata de uma “empresa estatal paga com os impostos de cada um”. Neste grupo, explica, incluem-se os católicos: “Os católicos pagam também a televisão publica. E portanto, quem faz, de certa maneira, a TV pública, são os interesses públicos”. O padre, que há uns ano fez parte da equipa que coordena as missas na RTP e trabalhou noutras transmissões de missas no estrangeiro, garante ainda que a “eucaristia é um interesse público em todos países da Europa” e que a transmissão desta não obsta que “existam programas de outras confissões”, como A Fé dos Homens. A Fé dos Homens é um programa televisivo, habitualmente transmitido de segunda a sexta-feira, às 15h00, na RTP2, que concretiza o artigo 25 da Lei de Liberdade Religiosa, onde se garante “um tempo de emissão” às “igreja e demais comunidades religiosas inscritas”. Além deste programa, de periodicidade regular, a “RTP produz programas para cada religião conforme a sua representatividade” (que é aferida através do número de pessoas inscritas no organismo do Estado que regista as religiões), explicando que estes podem ser “a transmissão de cerimónias ou documentários”. “A RTP, de certa maneira, o que faz, é espelhar, nela própria, as sensibilidades de cada um que paga os seus impostos”, sendo que a missa ganha um destaque maior por a “Igreja Católica ser a mais representativa”. Algo que, frisa Edgar Clara, “é do interesse público”, dando exemplos: a “DGS, [no contexto do covid], disse aos idosos para não irem às missas presenciais e para verem-na na TV. Foi a própria DGS que disse, ou seja, é algo também do Estado”.
Outro argumento esgrimido pelo padre Edgar Clara surge da sua experiência enquanto colaborador na Eurovisão: “Na altura em que estava à frente da Eurovisão, uma das coisas que reparámos é que o número de pessoas que via a missa ao domingo era uma coisa incrível. Esse share é enorme. É um interesse mais que do interesse público. É o programa mais visto ao domingo de manhã. Os idosos que estão no lar, onde há um ou dois televisores para cem, não vão ver uma cerimónia muçulmana. Isto sim é do seu interesse”.
Também Alexandre Poço, líder da JSD, deputado do PSD e candidato pelo último partido à Câmara de Oeiras, é favorável à continuidade da Eucaristia Dominical. Ao i, explica que o “o laicismo do Estado implica a separação constitucional e legal das igrejas do Estado” mas não “hostilidade nem o banimento das religiões do espaço público”. E acrescenta: “Uma sociedade democrática consolidada deve respeitar o importante papel das igrejas na vida da sociedade e a sua relevância histórica e cultural”.
Por essas razões, “a transmissão semanal do culto da religião católica num serviço público não o ofende nem perturba”, concluindo para afirmar-se a favor das missas na RTP: “Os católicos portugueses são também dignos de representação audiovisual”.
São Paulo e “as mulheres submissas aos homens” “As mulheres sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o chefe da Igreja”; “assim como a Igreja é submissa a Cristo, assim também o sejam em tudo as mulheres a seus maridos” – Epístola de São Paulo aos Efésios. Em 2021, faz isto sentido na televisão pública?
Para Carlos Guimarães Pinto, não – mas compreende a posição de quem não concorda consigo: “Não me parece que faça sentido passar isso numa televisão pública. Isso tem um significado para um conjunto de pessoas, para outro tem outro. E ambos têm razão em queixarem-se porque a televisão é pública e é de todos”. E daí, questiona: “Como é que se faz uma televisão que é supostamente paga por todos? Como é que se conseguem ter conteúdos que não desagradam a ninguém?”. E daí, responde: “É impossível. É por isso que não faz sentido ter uma televisão pública. Faz sentido haver uma televisão paga que só vê quem quer”.
Eduardo Barroco de Melo, deputado socialista, e Alexandre Poço, por sua vez, manifestam-se contra leituras à letra e falam de enquadramento histórico. “Sendo eu católico e percebendo a Igreja Católica Apostólica Romana de forma humana – e portanto com falhas –, não entendo a Bíblia como um conjunto de textos que devam ser lidos ipsis verbis mas sim como um conjuntos de textos que tinham um papel social que bebe dos valores da época, sendo que é preciso interpretá-los à luz desses valores”, afirmou Eduardo. Uma visão partilhada por Alexandre que, apesar de “ser político e não teólogo”, afirma saber, “como qualquer católico, interpretar as passagens bíblicas no seu contexto histórico e à luz da mensagem de amor e da doutrina atual da Igreja”.
Já para Edgar Clara a frase deve ser interpretada à luz do contexto holístico da obra de São Paulo. O padre admite estar a par que São Paulo seja visto como “misógino” por muita gente. Contudo, garante Clara, São Paulo é “absolutamente precursor da igualdade de género”. E expande: “Dizer, há dois mil anos, ‘maridos amais as vossas mulheres’, seria inconcebível para o judaísmo, para a cultura ocidental. Claro que só fica no ouvido a questão das mulheres, por causa da submissão. Mas depois, a certa altura, diz São Paulo: o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa e aí serem só carne”. Nesta passagem, explica o padre, “aquilo que está a dizer São Paulo é que os dois são uma só carne. E se assim são, não há ninguém superior a ninguém”. Apesar de compreender a polémica, acredita que só por “má-fé” ou “burrice” – “como alguém não consiga ler um texto de princípio ao fim sem o contextualizar” – se possam ver ali “coisas que não existem”. “Se quiserem ter má-fé concentram-se na submissão. Se quiserem ter boa-fé, olham para o texto e daí retiram que São Paulo esteja a mandar que os maridos amem as mulheres, as mulheres amem os maridos, e eles sejam um só. Tem que se ler na íntegra” – conclui.