Cabul conhece bem demais o estrondo de explosões e tiroteio, o som estridentes das sirenes, os gritos dos feridos e o desespero de quem procura entes queridos. A capital afegã caíra na mão dos talibãs sem o caos de uma batalha urbana, mas as dezenas de milhares de pessoas que tentam fugir do país, aglomerando-se no aeroporto internacional Hamid Karzai, entre um perímetro controlado pelos talibã e uma pista de aterragem gerida por forças da NATO, tornaram-se um alvo fácil. Mesmo ao gosto do Estado Islâmico de Khorasan (IS-K, na sigla inglesa), amargo rival dos talibãs, que reivindicou os atentados suicidas que massacraram mais de cem pessoas, na quinta-feira, incluindo 13 militares americanos.
Não se tratou de algo inesperado. Dias antes do atentado, o Pentágono alertara para o risco de um ataque terrorista antes do final do prazo para a evacuação, esta terça-feira, pedindo à multidão desesperada que não se aproximasse dos portões. Os próprios talibãs em redor do aeroporto pareciam muito nervosos, escreveu o Guardian – agora, a expectativa dos EUA é de mais ataques do IS-K, recorrendo a carros bomba ou até disparos de rockets.
Joe Biden, face ao dia com o maior número de baixas das forças americanas esta década no Afeganistão, prometeu vingança contra os responsáveis. «Saibam isto: Não perdoaremos. Não esqueceremos», prometeu o Presidente dos Estados Unidos, perante as câmaras. «Vamos caçar-vos e fazer-vos pagar».
Não é claro como essa caçada ocorrerá, mas tanto a Casa Branca tem apontado ter capacidade para atingir alvos no Afeganistão à distância, presumivelmente recorrendo a ataques aéreos – como os ataques de drones com que devastaram áreas rurais ao longo das últimas décadas, conhecidos pelas elevadas taxas de baixas civis, atingindo até casamentos e funerais, deixando uma geração inteira de afegão com medo de olhar para o céu, e mais vulnerável ao recrutamento pelos talibãs.
O uso de drones através de fronteiras não seriam uma estratégia inusitada para os Estados Unidos, dado que já o fazem em países como o Paquistão, Yemen, Somália, com entre oito a 16 mil mortos desde 2010, incluindo entre 283 a 454 crianças, segundo o Bureau of Investigative Journalism.
Contudo, Thomas Ruttig, fundador e codiretor da Afghanistan Analysts Network, não vê grande apetite para uma campanha do género, mesmo face à tragédia no aeroporto de Cabul. «Sem bases territoriais claras do IS-K, não vejo quaisquer alvos que possam ser atingidos», avalia o analista, ao Nascer do SOL. Mas há outras vias possíveis.
«Com os acordos de Doha em 2020, os Estados Unidos tentaram convencer os talibãs a ter alguma cooperação a nível de operações de antiterrorismo. Talvez esta seja a rota tomada», considera Ruttig. «Acho que o assunto será muito mais à volta de recolha de informação que com ataques de drones ou algo do género».
Se lhe parece estranho a possibilidade dos talibãs e os Estados Unidos colaborarem na caça a terroristas, importa salientar que o grupo fundamentalista islâmico já se oferecera a tal no passado. Quando enfrentavam uma invasão americana, em outubro de 2001, no rescaldo do 11 de setembro, os talibãs mostraram-se prontos a entregar Osama Bin Laden a um país terceiro, a troco do fim dos bombardeamentos aéreos, mas a Administração de George W. Bush recusou.
IS-K, Al Qaeda, rede Haqqani
Ouve-se muito falar do risco de o Afeganistão se tornar um refúgio para organizações terroristas. Na prática, os principais receios são quanto à Al Qaeda, com a qual fações talibãs historicamente sempre tiveram relações cordiais, ou com a filial local do Estado Islâmico, com quem se passa exatamente o contrário – o grupo é liderado por dirigentes que romperam com os talibãs, acusando-os de não serem islâmicos o suficiente, denunciando as negociações que levaram à retirada dos EUA.
No que toca ao IS-K, já viu melhores dias. Perdeu quase 12 mil combatentes entre 2015 e 2018, ficando com menos de 1500 em 2020, segundo dados da ONU, sendo expulso até dos seus bastiões, entre a comunidade salafita – uma leitura do islão particularmente rígida – do sul do Afeganistão, em províncias como Nangarhar.
«Tinham consigo só uma pequena porção da população, mas perderam-na. Até foram as próprias comunidades que chamaram os talibãs e as tropas governamentais, após os receberem inicialmente», relembra Ruttig. «Se o Estado Islâmico ressurgisse de novo e começasse a capturar território, seria fácil para os talibãs os reprimirem».
«Na prática, o que resta parece ser uma rede clandestina que pode ser ativada, talvez até do estrangeiro», considera. Caso o IS-K lance uma nova campanha de atentados – fizeram-no durante as negociações de Doha, presumivelmente paras as destabilizar, sobretudo contra a comunidade hazara, uma minoria étnica xiita – são péssimas notícias para a população, realça Ruttig. «Mas duvido que a IS-K seja forte o suficiente para ameaçar a dominância dos talibãs, ou fazer mais do que incomodá-los».
No caso da Al Qaeda, a situação é diferente. Por um lado, os talibãs comprometeram-se em impedir que a organização se reagrupe no seu território, como condição para a retirada americana. Por outro, a Al Qaeda sempre se misturou com a rede Haqqani, fundada por Jalaluddin Haqqani, treinado e armado pela CIA, nos tempos de Ronald Reagan, para lutar contra os soviéticos. São os combatentes mais temidos dos talibãs, responsáveis por alguns dos piores atentados das últimas décadas. Hoje, são as tropas do filho de Jalaluddin, Sirajuddin, número três dos talibãs, que estão encarregues de controlar Cabul, avançou a Voice of America.
Mesmo assim, Ruttig sente-se seguro de que os talibãs manterão a Al Qaeda com rédea curta, mesmo tendo libertado milhares dos seus militantes preso, ao tomar a base aérea de Bagram
«A Al Qaeda já não é tão forte no Afeganistão, estão escondidos, e os talibãs controlam-nos», explica o analista. «Não é do interesse político dos talibãs que alguém comece a montar operações terroristas através das fronteiras, porque querem ser deixados em paz para implementar os seus planos para o Afeganistão».
O caso pode mudar de figura se a fação moderada dos talibãs, liderada por Abdul Ghani Baradar, não conseguir montar o «Governo islâmico inclusivo», incluindo até opositores, que prometeram. É que poderão ser os líderes da ala dura dos talibãs, Mullah Mohammad Yaqoob – filho do fundador do grupo, Mullah Omar – e Jalaluddin Haqqani a decidir o futuro do Afeganistão. «Estão todos em jogo, isso é certo», diz Ruttig. «Não me atreveria a fazer uma previsão».