por Fernando Matos Rodrigues
Antropólogo, Lahb/ Investigador CICS.Nova UM
e António Cerejeira Fontes
Arquitecto, Lahb / Investigador CICS.Nova UM
Adiscussão pública do problema da habitação está demasiadamente condicionada pela agenda político-partidária, pelos interesses de grupos imobiliários e pelas políticas neoliberais que dominam desde os finais dos anos 70 do século XX até ao aparecimento da pandemia covid-19 — com destaque para os períodos de confinamento social e económico –, e pouco ou nada preocupada em implementar novos paradigmas e novos programas de habitação básica participada.
O reconhecimento da habitação como um direito constitucional acontece pela primeira vez com a Constituição de 1976, consagrado no artigo 65.º, que possibilitou uma maior consciência pública e política por parte dos cidadãos, organizados em comissões e associações de moradores. Este reconhecimento do direito à habitação teve um período de ouro entre 1974 e 1976, com o aparecimento espontâneo de movimentos populares sob o lema ‘Casas Sim, Barracas Não’.
Estes movimentos conduziram à ocupação de casas, de bairros, e a processos de autoconstrução que mais tarde seriam integrados pela criação do Programa SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), com a operacionalização das célebres operações SAAL por todo o território nacional.
Estamos perante a legitimação do ‘poder popular’ pelo MFA, aquilo que veio a designar-se como a ‘Aliança Povo-MFA’, que se apresentava como um caminho para a democracia popular, considerada a última fase a atingir pela revolução portuguesa.
Sobre o papel das organizações populares Otelo Saraiva de Carvalho declarou: «As Comissões de Moradores representam pequenas células do povo português a viver intensamente a sua Revolução. Eu dou, portanto, o meu integral apoio a essas comissões de moradores, na medida em que elas podem ser conselheiros reais das entidades, das câmaras municipais, dos governos de distrito e do Ministério da Administração Interna para a resolução do problema habitacional em Portugal» (A Capital, 28/4/1975).
A habitação é, assim, entendida nas suas funções mais básicas de conforto e segurança, espaço essencial para a dignidade da vida familiar ou espaço de socialização alargado à vida em comunidade. O 25 de Abril possibilitou a estes movimentos populares uma espécie de apoteoses da exterioridade absoluta — a mais radical das exteriorizações populares pelo direito à habitação na cidade. Todo o residente nas ilhas e colmeias, pátios ou vilas, bairros populares e barracos clandestinos da cidade fez uso deste momento de explosão de liberdade para reivindicar o seu direito a uma habitação digna na cidade.
Assistiu-se a uma explosão de manifestações centradas nos problemas concretos da habitação (a insalubridade habitacional, a falta de infraestruturas públicas, como eletricidade, saneamento, rede de água pública, equipamentos sociais e educativos), que eram causa de grande insatisfação.
O problema da habitação ficou também marcado pelas políticas policiais e higienistas do Estado Novo, que conduziram à implementação de programas de vigilância intensiva em nome da ‘moral familiar’ e da higienização social do lugar. As primeiras movimentações urbanas têm como principais atores os moradores dos bairros históricos da cidade do Porto, que viviam nas ilhas e colmeias em condições indignas, e nos bairros camarários. No dia seguinte ao 25 de Abril, estes movimentos vêm para a rua protestar e denunciar; e outros colocam em causa o regulamento municipal para a habitação, que atentava contra a vida privada e a liberdade dos moradores. No dia 1 de maio de 1974, os moradores do antigo Bairro de São João de Deus, no Porto, manifestam-se junto ao Quartel-General e apresentam o seu caderno reivindicativo, o primeiro contra o regulamento camarário em vigor.
Durante as últimas décadas, as políticas de habitação encolheram, e os municípios abdicaram de criar mais oferta de habitação a custos controlados. Alimentamos a ideia de que os municípios são proprietários de um número excessivo de fogos. Nesse sentido, a oferta municipal centrou-se exclusivamente na oferta de fogos para os segmentos de população de rendimento mais baixo, abandonando ao mercado de arrendamento livre os segmentos de rendimento médio-baixo.
Assistimos à liberalização das leis de arrendamento urbano (RAU e NRAU), com a precariedade no direito à habitação e a um aumento de despejos e de não renovação de contratos de arrendamento.
Durante estas décadas, Portugal seguiu uma política de apoio à aquisição da primeira habitação, com a promoção sucessiva de alargamento dos prazos de amortização dos empréstimos.
A crise do subprime e a consequente falência de alguns gigantes da financeirização global nos EUA e a sua contaminação às economias globais, em particular à economia portuguesa, teve consequências brutais no aumento das dívidas privadas e públicas, com sérias consequências na liquidez de alguns bancos, contaminando os créditos de habitação. A crise que se abateu sobre Portugal entre os anos de 2011 e 2015 veio demonstrar a fragilidade de todo um sistema neoliberal de financiamento ao consumo, no qual se integrou o setor da aquisição de habitação própria.
Hoje, com a aprovação da Lei de Bases da Habitação (a Lei n.º 83/2018 de 3 de setembro), e com a aprovação do Plano de Resiliência e Recuperação, esperamos que o atual Governo e a Assembleia da República sejam capazes de mobilizar os moradores, as comissões e associações de moradores, as associações de inquilinos e de proprietários, os laboratórios de habitação básica e a cidadania participativa na definição de novos programas que possam contribuir para a construção de uma solução sustentável e digna de habitação. Numa palavra, fomentar um Programa Nacional de Habitação Básica Participada.