Rui Manuel Trindade Jordão era um príncipe. Havia na sua inconfundível timidez traços de delicadeza e de suprema educação que não passavam indiferentes a ninguém. Magro, esguio, corria par a par com a beleza de um animal livre pelas savanas do Serengheti. Minuto a minuto, ia crescendo, tomando conta do campo, do jogo e da atenção dos espetadores. Talvez por dentro não se sentisse muito bem com isso. É assim a natureza dos acanhados: detestam estar no pico do acontecimentos. Mas, convenhamos, com Jordão era pouco mais do que inevitável. Começava quase sem se dar por ele e, a pouco e pouco, tornava-se impossível tirar-lhe os olhos de cima.
Não sei, é difícil sabê-lo, se alguma vez teve uma atitude de brusquidão ou de violência. É algo que ficará, para sempre, guardado entre ele, que nos deixou no dia 18 de outubro de 2019, e o protagonista desse momento, se o houve. Sei que o vi, em campo, ser massacrado por adversários impiedosos que o caçavam como se fosse uma ratazana, mordendo-lhe os calcanhares e os joelhos sem contemplação, atirando-o de encontro aos painéis publicitários naqueles segundos precisos em que ele, subitamente, dava a primeira passada de um galope irresistível, e a sua resposta era sempre dada com a bola, esse objeto esférico que tinha por ele uma referência inusitada. Talvez fosse amor. Havia todas as razões para ser amor.
Uma tarde para a lenda!
No dia 30 de janeiro de 1983, eu estava em Alvalade. Era uma tarde tranquila nos Olivais Sul da minha adolescência e, vendo bem, não havia nada de interessante para fazer se não passar as horas no Café do Tó a acumular garrafas de cerveja em cima da mesa.
Fui, portanto, ao Sporting-FC Porto e nunca mais foi possível esquecer aquilo que vi Jordão fazer. O homem assumira uma alma de deus dos estádios e subiu ao lugar mais alto da montanha dos eleitos quando, ao minuto 36, pelo meio de toda a defesa do FC Porto, foi ao encontro de uma bola que vinha a meia altura, para dentro da área de Amaral, esperou que ela se cruzasse com o seu calcanhar e fez a magia de, com um toque precioso, fazendo-a subir e descer por sobre a cabeça do guarda-redes do FC Porto. Não tenho dúvidas que o próprio Edson Arantes do Nascimento, por extenso Pelé, como dizia Nelson Rodrigues, sentiria orgulho em marcar um golo assim. Eu, que me enfiara no autocarro apinhado de adeptos sportinguistas quase por desfastio, jamais voltei a ver coisa igual.
Caído do céu
Nessa tarde de Janeiro, Rui Manuel Trindade Jordão, caiu do céu aos trambolhões para desfazer a defesa do FC Porto com três golos – dois deles de grande penalidade, aos 12 e 66 minutos – mas isso não foi o suficiente para garantir a vitória dos leões.
Do outro lado do campo havia uma dupla que também era uma raridade. Muito provavelmente a dupla de pontas-de-lança mais elegante a jogar a bola com a cabeça que alguma vez existiu no futebol em Portugal: um deles era Fernando Gomes, meu querido amigo Fernando, que se misturava com o golo da mesma forma que a mão esquerda se mistura com a direita, e um irlandês que viera do Queen’s Park Rangers e se chamava Mike Walsh, Mickey para os íntimos. O que ambos fizeram durante seis anos na linha de ataque do FC Porto, pinchando como se saltassem sobre um trampolim, usando a testa com força ou com habilidade para iludir os adversários, ficou também guardado na parede branca da minha memória. Nessa tarde de Alvalade, Walsh marcou dois golos, aos 17 e aos 39 minutos, e Gomes marcou um, de penálti, aos 25.
Três-a-três é um daqueles resultados de encher a alma a qualquer espetador que não vá atrás do jogo de cachecol e bandeirinha e sim apenas com a vontade de ver a bola bem tratada em lances e golos que se guardam na retina como se num velho cofre fabricado pelos Irmãos Moura, de segredo inviolável. O Sporting-FC Porto de 30 de Janeiro de 1983, não foi feito para esquecer. Sobretudo quando, lá no alto, voando como um Mercúrio negro de asas nos pés, Rui Jordão entrou na eternidade pela porta dos príncipes.