Na quinta onde viviam os meus avós há um muro altíssimo que está lá há, dizem, pelo menos 200 anos. Como lá foi parar é um mistério. Certo dia, um antigo trabalhador da quinta dizia-me que já os seus avós, que também por lá lavravam, se questionavam sobre como teria sido o muro construído. O muro lá estava, pedra a beijar pedra, com os seus dez metros de alta imponência e quilómetros de suor esquecido. Desmistificando, não será difícil perceber como terá sido erguido: durante dezenas de anos, camponeses anónimos e os seus pobres bois arrastaram pedra, de sol a sol, para poderem murar parte da quinta dos meus avós. Não há vergonha nem orgulho nesta história: há, como canta Fausto, uma condição (que não resta senão aceitar).
Na quinta onde morreram os meus avós havia verde. E havia gente. E havia ‘povo daquele lugar’. E havia passarinhos. E dobravam os sinos da paróquia quando morria ‘povo daquele lugar’. E rezava-se muito o terço. E havia muita folia, roda, e cantar ao desafio. E havia malgas de tinto. E havia malgas de verde: de vinho e de olhos. Havia mulheres bonitas: afinal, era o Minho em todo o seu esplendor.
Mas não só de fresco belo verde se faziam as terras minhotas. Havia morte, miséria e fome. Havia abusos dos Senhores. Havia o peso físico da existência por se nascer numa condição que obrigava a limpar o suor à terra, algo apenas compreendido pela ‘vontade de Deus’. Há tempos ouvi uma história, julgo que de D. Afonso III, em que este, numa das suas calcorreadas pelas terras do interior, pernoitara de supetão na ‘casa’ de um lavrador. O lavrador preparara a estadia de Sua Majestade com enorme devoção, tamanha era a honraria de a ter debaixo do seu teto. À mesa, para jantar, sentavam-se Sua Majestade, os Senhores que a acompanhavam, o nosso lavrador e a sua mulher. Durante o repasto, preparado com o melhor que aquela casa tinha, Sua Majestade terá ordenado a todos que dali saíssem à exceção da mulher. Assim foi. Relata a história que, dali, D. Afonso III terá desflorado, sem rodeios e em cima da mesa, a pobre camponesa. Consta que, até ao fim dos seus dias, o seu marido nunca mais lhe tocara. E assim era, e assim foi, até há poucas décadas, parte da relação dos Senhores com o povo.
Hoje, graças ao avanço da vida no ocidente, a maior parte de nós tem nome, lar e pão. A maior parte nada a vida em vez de ser afogado por ela. Já não se normaliza violações. Já não se morre logo ao nascer. Até há pouco tempo eram centenas de milhares os que, sem nome, se dedicavam apenas a construir muros e lavrar as terras. Efémeras existências entregues à busca pelo pão. Vidas sem sujeito ou predicado, em que homens e mulheres não foram além de verbos: trabalhar, comer, dormir, respeitar, trabalhar, comer, dormir, respeitar. E envelheceram, sem lar nem pão, para irem morrer na miséria do Deus pelo qual rezaram toda a vida.
Mas não só de miséria se faz esta história, porque o Minho é verde no campo e no coração. Por mais campo que o lavrador lavrasse, por mais renda que a mulher cosesse, por mais caseira que o Senhor violasse, por mais criança que Deus matasse, havia sempre, sempre, orgulho em ser-se. Ser-se da terra. Ser-se. Havia sempre, sempre, uma mãe quente com esperança de que o filho voltasse ou um lavrador dedicado com esperança de que a tempestade parasse.
Apesar do sofrimento, havia sempre, sempre, Minho. Havia sempre brincos de oiro fino para ‘amostrar’, havia sempre vinho novo para ‘buber’. Havia sempre, sempre, vida para celebrar. É beleza em bruto. É a vida do Minho. Do povo robusto que andou de sol a sol. Do ‘povo natural da terra’. Do povo que, por mais que não soubesse escrever e tivesse que assinar em cruz, acabara por escrever, com as suas vidas, uma das histórias mais bonitas do mundo: a sua – a do Minho.
Guimarães,
10 de setembro de 2021