A entrada na margem da estrada nacional 9, que liga Torres Vedras a Alenquer, dá acesso a uma avenida com 300 metros de comprimento e ladeada de plátanos centenários. No outono, as folhas de cinco pontas pintam-se de castanho, amarelo-torrado, cor-de-laranja e vermelho escuro, para depois caírem e formarem um tapete de tons acobreados e ferruginosos.
Antes de desembocar no jardim elíptico, a longa avenida passa por dois chalets de telhados íngremes, quase fantasmagóricos. Ao centro do jardim, uma enorme taça de água reflete um conjunto harmonioso de edifícios cor-de-rosa que já foi descrito como «uma pequena jóia encastrada na paisagem». O corpo principal é coroado por um frontão onde se lê: ‘Estabelecimento Thermal e Hidrotherapico’.
Mesmo com as portas deste antigo balneário encerradas há mais de 20 anos, muitos continuam a vir para aqui, atraídos pela mata e os jardins luxuriantes, que nunca deixaram de ser populares para passeios, piqueniques e sessões fotográficas de casamentos. Por decisão dos proprietários, o Vale dos Cucos – assim baptizado porque reza a tradição que os cucos iniciavam o seu cantar de primavera nesta mata – mantém-se não só cuidado como acessível a todos, apesar dos encargos e riscos que isso acarreta.
«Quando os Cucos foram constituídos, em 1892-93, vieram 2500 árvores dos viveiros do Bussaco, das mais variadas espécies, para fazer uma mata», explica-nos José António Neiva, engenheiro silvicultor e um dos sete herdeiros das termas. Grande parte dessa mata seria abatida para responder à Campanha do Trigo lançada em 1929 para promover a autossuficiência alimentar do país. Só a zona em redor das casas foi poupada.
«O meu pai, segundo creio, até chorou a tentar convencer o meu avô a não desarborizar a serra», recorda o silvicultor. «A Campanha do Trigo no primeiro ano foi um milagre, deu 30 sementes. No ano seguinte deu 20 sementes, depois dez, depois cinco, e ao fim de pouco tempo era só erosão, as encostas a vir por ali abaixo. O meu pai voltou a rearborizar, mas com menos sucesso do que tinham tido as espécies levadas para a primeira arborização no final do século XIX».
Banheiras de mármore, torneiras de bronze
Se pudéssemos franquear as portas fechadas destes edifícios, encontraríamos lá dentro uma estância-modelo de finais do século XIX – uma espécie de cápsula do tempo. «As banheiras eram todas da Moreira Rato, em mármore. Hoje as banheiras já não podem ser de mármore, têm de ser de alumínio, porque se a pessoa cai parte a cabeça no mármore – durante 100 anos ninguém partiu, mas enfim…», comenta José António Neiva. «As torneiras, que eram de bronze, hoje também têm de ter um sistema diferente. Nas cozinhas os utensílios eram de madeira – um material hoje vetado. Tudo aquilo que fez o encanto, o charme do final do século XIX, agora não passa de uma referência museológica». Hoje, o conjunto tem o encanto equívoco de um testemunho de um mundo condenado a desaparecer.
Fundadas em 1892 por José Gonçalves Dias Neiva, um minhoto com a «barba ruiva e o olhar branco-azulado» (como o descreveria mais tarde o seu sobrinho-neto), as Termas dos Cucos tinham «o que na época havia de melhor numa escala pequena». As análises das águas tinham a assinatura do químico Charles Lepierre, a grande autoridade na matéria, que mediu os índices de radioatividade e as achou «bacteriologicamente muito puras».
Além de empregarem os conhecimentos e equipamentos técnicos e científicos mais avançados da Europa, respeitando rigorosos princípios higiénicos, as instalações ostentavam interiores primorosos, com bonitas escadarias, chão de mosaico e tetos de estuques trabalhados, ou não fosse o fundador «um homem requintadíssimo».
Mas antes de tudo foi preciso desviar e murar o Sizandro, cujas águas todos os invernos galgavam as margens, inundavam a zona e se misturavam com as da fonte termal. Só depois de ‘domesticado’ o rio foram levantadas as paredes e equipadas as instalações.
Uma praga de filoxera havia naqueles anos atingido dramaticamente as vinhas, uma das principais fontes de riqueza da região, pelo que não é de estranhar que as termas tenham sido vistas pelos populares como uma bênção e o seu proprietário como um salvador. No dia da inauguração oficial, 15 de maio de 1893, Dias Neiva foi recebido «à entrada da vila com archotes acesos» e acompanhado «até ao Club, onde havia uma récita em sua honra».
Uma taça de champanhe para o régio visitante
Em 1908, aquando da celebração do centenário das Linhas de Torres, José Gonçalves Dias Neiva daria as boas-vindas a um ilustríssimo visitante: nada mais, nada menos que o Rei D. Manuel II. «Pouco se demora Sua Magestade na egreja da Graça onde, depois de fazer a oração ao Santissimo, recebe os cumprimentos das deputações dos padres do Varatojo e do Barro, da irmandade, etc., partindo a visitar a magnifica estancia de aguas dos Cucos, para onde segue em automóvel com sua comitiva», escrevia a revista Occidente de 30 de agosto daquele ano.
Apesar dos traumáticos acontecimentos ocorridos apenas alguns meses antes – o homicídio do Rei D. Carlos e do príncipe herdeiro Luís Filipe à chegada ao Terreiro do Paço, a 1 de fevereiro –, o ambiente era de júbilo: «Aguardam Sua Magestade e Sua Altesa na deliciosa estancia o proprietário sr. Dias Neiva, toda a colonia de aquistas, grande quantidade de povo, as musicas da guarda municipal e infanteria 2 que tocam o himno, e no ar estalam foguetes numa grande alegria de festa. […] O sr. Neiva tinha preparado uma taça de champagne para oferecer ao regio visitante, levantando-se brindes em honra ao Senhor D. Manoel, acompanhados de entusiásticos vivas ao monarca, á família real, etc.».
Na sequência da régia visita, seria oferecido ao proprietário das termas o título de conde de Machêa, de acordo com o nome da quinta da família. «Mas o meu tio-bisavô não aceita», esclarece o descendente. «Tenho a carta em que ele diz não merecer tal honraria… A monarquia estava por um fio e os títulos já não tinham grande credibilidade. Até havia um dito popular: ‘Foge cão, que te fazem barão. – Mas para onde, se me fazem conde?’. A monarquia em risco oferecia títulos aos burgueses, tentava puxá-los para ainda aguentar o regime. Além disso estes títulos também constituíam ónus pesados». Tinham o seu preço em dinheiro.
Dois anos depois dessa recepção apoteótica ao Rei, «o mesmo povo felicitou a República com o mesmo entusiasmo», ironiza José António Neiva. Depois do 5 de outubro de 1910, a Rua Dias Neiva, «uma das principais ruas de Torres, ficou apenas com duas ou três portas», nota o engenheiro silvicultor. «E só não mudou toda de nome porque houve um amigo republicano do meu tio-bisavô que disse: ‘Não façam isso ao Dias Neiva, ele foi sempre tão amigo da terra’».
Uma estação no topo da quinta
José Gonçalves Dias Neiva era um homem cioso do seu poder e do seu estatuto. Montava sempre um cavalo branco, «nunca quis casar para não ter de partilhar o poder e era um narcisista», revela o seu sobrinho-bisneto. Um traço de personalidade bem patente num objeto ao mesmo tempo comum e singular: um copo de vidro onde o fundador dos Cucos mandou gravar a sua orgulhosa efígie, que o engenheiro silvicultor guarda entre os incontáveis objetos da sua coleção.
Rico, determinado e visionário, Dias Neiva tinha projetos grandiosos para os Cucos. Imaginou um elevador que levaria os banhistas para o alto da serra – e chegaram a ser instalados os cabos de aço para esse efeito. Ambicionava dotar a estância com quarenta chalets (dos quais apenas dois foram construídos) e um hotel com 300 quartos. «Entretanto houve uma crise financeira e esses projetos tiveram de ficar na gaveta. Eram projetos de vistas largas, mas feitos sempre passo a passo, a testar a viabilidade», explica o descendente. De resto, o proprietário tinha por princípio nunca recorrer a créditos bancários.
Os poderosos cabos de aço no alto da serra, sem uso, ficaram como «imagem duma grandeza frustrada», como lhes chamou o sobrinho-neto do fundador. Em compensação, Dias Neiva beneficiava de outras comodidades modernas.
«Tinha uma estaçãozinha no topo da quinta onde o comboio parava sempre que ele ia a Lisboa ou vinha de Lisboa. Depois ia uma charretezinha lá buscá-lo para o trazer para a casa principal. As pessoas, enquanto esperavam, tinham um espaço de convívio. Hoje essa estação está invadida de mato à volta», descreve José António Neiva, enquanto nos vai apresentando o impressionante arquivo dedicado às Termas dos Cucos que vem reunindo ao longo de décadas.
Entre as centenas e centenas de documentos, organizados em dossiês devidamente identificados, há requintados rótulos de garrafas de água em estilo arte nova, cartões-de-visita da aristocracia e da sociedade elegante que frequentava as termas, preçários, recortes, relatórios de vistorias, listas de hóspedes indesejáveis, um ‘inventário do barbeiro’, jornais antigos, desdobráveis e postais de todas as épocas. «Gastei uma fortuna em postais», confessa o nosso anfitrião. Um deles mostra uma carruagem puxada a cavalos estacionada em frente do edifício do balneário.
Ainda estava para chegar o reinado do automóvel.
Espetáculos de ilusionismo e missas em latim
José António Neiva testemunhou os tempos gloriosos das Termas dos Cucos. Lembra-se bem das bolas de marfim que rolavam no pano da mesa de bilhar e dos espetáculos de música e teatro que animavam as noites no ‘casino’. Chegou a participar em muitos deles.
«Mas houve um arquiteto que o meu pai encarregou de remodelar as instalações, e que decidiu fechar o teatro porque achava que não tinha uso», recorda. «Foi uma pena porque em miúdos fazíamos lá grandes representações, depois havia os ilusionistas, havia os músicos que andavam de terra em terra. Até que chegou a televisão e as pessoas queriam ver as novelas. O ilusionista, coitado, só depois da novela é que podia começar o espetáculo».
Do outro lado, na capela, rezava-se a missa em latim. Como estavam isentados de pagar estadia e tratamentos, os padres e as freiras eram grandes frequentadores dos banhos. E volta e meia precisavam de um assistente para os ajudar a celebrar a missa. «Como fiz da 1.ª à 4.ª classe no Colégio S. João de Brito, eu sabia ajudar à missa, e chegava a ajudar duas e três missas por dia, quando havia enchente de padres, o que era para mim uma penalização. Sabia quando devia tocar o sino e aquelas coisas todas. Ainda hoje sei a missa em latim», revela o engenheiro silvicultor.
As lamas miraculosas
Mas o fulcro das termas não era nada disto – nem os tetos estucados, nem as banheiras de mármore, nem os espetáculos no casino, nem as missas em latim. Nem sequer a paisagem luxuriante. Eram sim as águas, «as mais lithinadas de Portugal», e as lamas minero-medicinais, muito indicadas para curar a gota e o reumatismo.
«As águas dos Cucos para obterem fama mundial não teriam que fazer reclamo, bastava que apresentassem as suas curas», escreveu Egas Moniz em 1907. «Para mim, os melhores resultados que se tiram da água dos Cucos são sucessivamente devidos à sua aplicação por uso interno, lamas e banhos de imersão demorados», complementava o ilustre médico e Nobel da Medicina português.
José António Neiva bebeu muitas vezes a água radioativa dos Cucos, que era engarrafada e vendida em Lisboa. «Quando sai da nascente é intragável. Cheira a ovos podres e é quente. Mas quando ficava fria era tipo Água das Pedras, com muitos mais sais, quase salobra. Eu acho graça às águas que têm sais, que se mastigam».
O engenheiro silvicultor também experimentou o banho de lama um par de vezes. «É violento mas é agradável. A lama faz uma camada impermeável, isolante – sente-se o calor a entrar em profundidade. A seguir é tirada a lama, com um banho de imersão ou de jacto. A pessoa, quando sai, bebe muita água e transpira durante horas. Nesse processo, liberta as toxinas».
Correndo num túnel subterrâneo natural a mais de 600 metros de profundidade, estas lamas assomavam à superfície por meio de uma falha geológica, sendo depois recolhidas em tanques, onde ficavam a maturar, até adquirirem as propriedades que as tornavam quase milagrosas. De cor escura, consistência pastosa e odor sulfídrico, eram formadas por «terras dos aluviões, argilo calcáreos, impregnadas dos sais das águas termais e com detritos orgânicos», registou em 1947 José António Neiva Vieira, hidrologista e então diretor clínico e proprietário das termas.
«Estão durante muitos meses expostas ao sol e às chuvas, depositadas num tanque, onde sofrem a acção de uma nascente de água natural, que brota a 40º e as cobre. Desenvolve-se nestas condições rica flora bacteriana, que não parece ser estranha às virtudes terapêuticas».
O mesmo opúsculo notava que os doentes que sofriam de gota (uma acumulação de ácido úrico que afeta as articulações) eram dos principais frequentadores dos banhos: «Descrentes no primeiro ano, atolados em lama, irritados pela crise termal, sentem no inverno seguinte que valeu a pena fazer tais sacrifícios. Têm um inverno melhor, sem crises ou mais raras e atenuadas, os movimentos facilitam-se e passam a ser então fanáticos destas termas».
O adjetivo «milagrosas» não surge ao acaso. Um doente – Manuel Martins Bretes, natural de Fonte Longa (Castelo Branco) – testemunhava em junho de 1963: «Aos 72 anos foi atacado por forte crise de reumatismo; durante quatro anos fez uso de várias águas e submeteu-se a diversos tratamentos sem qualquer resultado positivo. Veio para as Termas dos Cucos de maca, no 1.º ano; no 2.º de carrinho; no 3.º de muletas, deixando cá ficar estas no 4.º ano, para fazer saber que estas termas tornam ricos os pobres de saúde».
Neiva Vieira recordava outro exemplo, de um paciente outrora incapacitado que depois dos tratamentos «gostosamente se ia exibir no Palco do Casino, ensaiando passos de dança, com os movimentos ainda grotescos».
Dos romanos às barracas de madeira
A fama dos Cucos vinha muito de trás. Em 1959 foram encontradas ali lápides com inscrições em latim que atestam que a zona era ocupada no tempo dos romanos, que provavelmente já conheciam as propriedades terapêuticas das suas águas. Só muito mais tarde, porém, seria lavrado o primeiro documento a dar conta das virtudes desta nascente.
«Esteve esta água sempre incógnita até que um grande cirurgião do Partido da Câmara desta Vila pela observar no ano de 1746 a pôs em uso na medicina. Chamado o Dr. Cirurgião Máximo Monis de Carvalho, e tem alcançado esta água notáveis efeitos em desterrar sarnas, lepras, caquechias, inchações, e cura chagas sordicas, gotas arteticas, convulsões, paralisias, e obstruções dos olhos, servindo algumas de remédio paliatico a chagas cancrozas, e pode servir para remédio de muitas outras queixas», escrevia o Padre António José de Faria nas suas Memórias Paroquiais, de 1758.
Tudo começara de forma bastante modesta, quase espontânea. E, passado mais de um século, os banhos ainda eram tomados em tinas de madeira, como descreveu Ramalho Ortigão em Banhos de Caldas e Águas Minerais, publicado em 1875.
«O sitio e as suas redondezas, em que se cultivam muitas vinhas e se fabricam excelentemente pequenos queijos e requeijões de ovelha, é muito aprasivel, ainda que improprio para um estabelecimento de banhos. […] Os banhos são ministrados debaixo de barracas de madeira em tinas de madeira cravadas no local em que nascem as aguas. […] Os banhos dos Cucos são muito pouco concorridos, comquanto eu tenha ouvido exaltar muito das suas virtudes therapeuticas, principalmente do tratamento da gotta. Ao dr. Brandt, distincto médico, meu amigo, actualmente estabelecido no Porto, ouvi fazer d’estas aguas o maior elogio. Mistress Brandt, padecendo as maiores horríveis dôres de cabeça e tendo consultado os mais ilustres médicos da Europa, curou-se com poucos banhos da Fonte dos Cucos, reconhecendo-se que era a gotta a causa do seu atroz padecimento». O sarcástico Ortigão, tão lesto a lançar as suas acutilantes Farpas, também sabia distribuir elogios…
Em menos de duas décadas, a propriedade veria serem plantadas as 2500 árvores do Bussaco e erguer-se o edifício clássico do balneário. Estava a chegar a época das banheiras de mármore, dos maquinismos importados, das rigorosas análises científicas à composição das águas.
Uma infância ao ar livre
Em 1914 Dias Neiva (que viria a falecer em 1929 sem deixar descendentes diretos) afastou-se da administração das suas propriedades, entregando-a a um sobrinho de quem fez seu herdeiro. «O meu tio-bisavô fundou as termas. O meu avô, que era sobrinho dele (o meu avô e a minha avó eram filhos de duas irmãs do tio-bisavô Neiva) fez o hotel e desenvolveu a parte dos balneários», conta-nos o engenheiro silvicultor.
Na década de 1930 foi feita uma tentativa para instalar uma escola, para que as instalações funcionassem o ano todo – com aulas no inverno e banhos no verão. Não resultou. «Como era novidade, foram para lá os corrécios do país todo, que andavam a ser expulsos dos colégios internos. Só queriam era ir para a serra andar à pedrada», diz-nos o engenheiro silvicultor.
José António Neiva conserva bem viva a memória do tempo em que o seu avô acumulava os papéis de grande lavrador e proprietário das termas. «Tomei tantos banhos e apanhei tantos peixinhos nestas azenhas», recorda, enquanto olha para um postal antigo. «No meu tempo o rio tinha cágados, tinha rãs, tinha cobras de água, tinha os ruivacos, que são os peixes daquela zona. Isso morreu tudo com a poluição feita pelas destilarias de bagaço e os lagares de azeite, que despejam os desperdícios no rio e mataram os peixes quase até ao mar».
A liberdade, as aventuras e a proximidade com a natureza eram os ingredientes fundamentais de um quotidiano que ajudou a moldar a sua paixão pela vida ao ar livre. «Foram tempos deliciosos», resume. «Quando estava lá com o meu avô, passava o dia à minha vontade, naquelas brincadeiras pelos telhados, nas correrias, a andar de bicicleta. Ia às grutas, corri alguns riscos, e apanhei grandes sustos. Entrar era fácil, às vezes para sair tinha de ser às arrecuas.
Em várias ocasiões estive para ficar debaixo da carroça, que era conduzida por um indivíduo que andava sempre alcoolizado. Cheguei a ficar pendurado no travão da carroça e vi as rodas quase em cima de mim…».
Aquilo que via e vivia compensava largamente os riscos. «Vi raposas, saca-rabos, muito animal bravio. Metíamos os pirilampos em frascos de vidro e, como eles acendiam desigualmente, funcionava quase como uma lanterna natural», descreve. Os banhos no rio, então ainda de águas límpidas, e as pescarias eram outro dos prazeres dos meses de verão. «Os miúdos têm estas crueldades: no jardim, apanhávamos as abelhas e as vespas pelas asas, púnhamos no anzol, o rio era a dois minutos, íamos a correr ao rio [para a vespa ainda lá chegar viva] e vínhamos logo com peixe, porque com o bater das asas do inseto o peixe picava logo. Havia muitas enguias e fazíamos caldeirada».
Nos seus passeios pela serra também encontrava fósseis – que recolhia e que estiveram na origem do que hoje é uma espantosa coleção.
Um autêntico jardim zoológico
José António Neiva tirava o melhor do campo. Essa era, porém, apenas uma das faces da moeda: a das pessoas desafogadas. Paredes-meias, havia uma vida de sacrifícios e dificuldades. «Pude ver o que era a agricultura de pé descalço e de força braçal ou, nas zonas planas, de força animal, com parelhas de bois de tração. Era o trabalho de sol a sol, a esperança de vida era baixíssima. As doenças, as infeções, os parasitas estavam ali à beira de semear. E havia o risco de cair ao poço», acrescenta. «Os meus companheiros de brincadeira e de jogos de bola, de vez em quando morria um de uma doença. E ficaram quase todos na agricultura. Alguns mais ‘sortudos’ foram para camionistas ou para indústrias não especializadas. Os companheiros do meu irmão, que tem menos sete anos do que eu, já quase todos estudaram. Foi uma mudança muito rápida».
Sob a administração do seu avô, a propriedade produzia de tudo. «O meu avô morreu quando eu tinha doze anos. Nesse tempo só não se produzia peixe na quinta – e ainda havia uns tanques com carpas», recorda. «Havia cães, gatos, porcos, galinhas, patos, perus, gansos, pombos… Era um autêntico jardim zoológico. De vez em quando tínhamos direito a um arroz de borracho, umas canjas de galinha deliciosas, bebíamos o leite diretamente do úbere da vaca. Havia águias por todo o lado, pássaros que eu nunca mais vi, perdizes e codornizes naquela seara a perder de vista. Aliás, em Torres Vedras, nos anos 40 ainda apareceram lobos, vindos da Serra de Montejunto. Depois mudou tudo, esse ambiente desapareceu», lamenta.
Médico, intelectual e lavrador
A história das Termas dos Cucos é indissociável da figura de José António Neiva Vieira, médico hidrologista e homem de cultura que herdou as termas e a Quinta da Macheia, a grande propriedade da família contígua à estância, em 1962. «Ele era essencialmente um citadino, um intelectual e um médico com consultório em Lisboa. Ao contrário do meu avô, que tinha sido criado e educado no campo, o meu pai teve que aprender muita coisa para gerir a quinta, mas era um homem muito inteligente, culto, dialogante», conta José António Neiva, seu filho.
Este é «um ano especial para a família»: nascido a 13 de setembro de 1921, José António Neiva Vieira faria agora 100 anos. No dia anterior, vai ser colocada uma placa nas termas. «Uma coisa muito simples – ‘Médico e humanista, uma vida inteira dedicada à Quinta da Macheia e Termas dos Cucos’ – mas para que fique lá o nome dele. O meu pai esteve nas termas cerca de 30 anos como diretor clínico, é uma injustiça não haver qualquer referência».
Sob a orientação de Neiva Vieira, as termas, que haviam atravessado um período de relativa estagnação, conheceram um novo estímulo, alicerçado sobretudo nos novos conhecimentos clínicos e científicos que o médico acompanhava avidamente. «O meu pai era uma pessoa muito documentada, viajou, formou-se lá fora em hidrologia e em reumatismos, que eram especialidades que cá não existiam. Graças ao seu poder financeiro, esteve em Barcelona, esteve em Londres, esteve em Paris, ou seja, nos melhores centros da Europa, onde adquiriu uma bagagem muitíssimo grande».
Além desses conhecimentos, havia a dedicação total à estância. «O meu pai vivia lá praticamente. Dormia em Lisboa, ia às sete da manhã, passava lá o dia e regressava à noite. Ao princípio a viagem demorava três horas. Para o fim já só demorava uma hora». Seria exatamente numa dessas viagens que José António Neiva Vieira acabaria por perder a vida, num trágico acidente numa passagem de nível, em agosto de 1987.
«É difícil para um filho estar a dizer isto, mas o meu pai tinha essa veia do culto da perfeição, o culto do sucesso profissional. Sempre que eu falo das ‘minhas coisas’ com os meus filhos, falo das ‘nossas coisas’. O meu pai dizia ‘a minha quinta’, ‘a minha família’, ‘os meus antepassados’, ‘os meus herdeiros’. Tinha uma personalidade forte, seguiu o seu caminho e sempre fez o que quis. Em termos familiares era, por assim dizer, um autocrata. Não partilhava poder de decisão com ninguém», revela José António Neiva. Aos filhos, o médico repetia incessantemente o seu lema de vida: «Exigentes connosco, tolerantes com os outros». E punha-o em prática.
Todos o adoravam
«Parece uma contradição: era reservado e metido consigo, e ao mesmo tempo era um conversador nato e um homem de extraordinária afabilidade e comunicabilidade. Era uma pessoa de muitos salamaleques, todos o adoravam», discorre José António Neiva. «Mas não tinha amigos cujas casas visitasse, não jantava fora. Não tinha vida social fora de três eixos: a família, a medicina e a quinta e os trabalhadores. Vivia isolado do mundo em geral. Fechou-se na sua cultura, na sua medicina, na sua casa agrícola e na família».
Essa foi, ainda assim, uma regra que admitiu excepções. «Por cedência ao meu avô, foi presidente do Torreense. Não porque fosse fã de futebol mas porque era um serviço que prestava à sociedade regional e era uma alegria que dava ao pai», explica José António Neiva. «Eu que nunca liguei ao futebol fui sócio do Torreense e acompanhei o meu avô e o meu pai aos jogos, num tempo de glória em que o clube esteve na primeira divisão e até foi à final da Taça de Portugal». O outro compromisso extra família e trabalho foi assumir o cargo de provedor da Santa Casa da Misericórdia de Torres Novas.
A condição social e a esmerada educação de Neiva Vieira não eram obstáculo a que falasse e se desse com toda a gente, inclusive com as pessoas mais simples. «Tinha com todos uma relação privilegiada. Com os doentes, quem não pudesse pagar não pagava, havia tratamentos gratuitos para meio mundo. As consultas não eram com tempo contado. As amostras de remédios não eram para a família, eram para os doentes que tinham dificuldade em comprar».
Na sua propriedade agrícola não era muito diferente. «Os trabalhadores tinham uma adoração por ele».
Uma mudança brusca
Mas o mundo entretanto ia mudando e dentro de casa as relações já não eram as mesmas. «De repente os miúdos crescem, os mais velhos têm estudos e ideias próprias. Já não vamos todos almoçar à mesma hora, as refeições começam a ser desencontradas, a televisão abre novos costumes, aquilo que antes seria impensável – como tirar uma batata frita do cantinho da travessa ou levantar-se sem pedir licença – passa a acontecer bastas vezes. Para o fim já o meu pai fazia as suas torradas e preparava o seu café de balão para o pequeno-almoço, sem precisar de ninguém para o fazer por ele, porque se levantava às seis da manhã».
A nível dos trabalhos agrícolas as mudanças não eram menores. «A chegada dos primeiros tratores – que trabalhavam tanto em zonas planas como nas encostas – foi uma mudança brusca. Uma quinta onde trabalhavam cem pessoas em permanência, e duzentas nas ceifas e nas vindimas, passou a ter um número de trabalhadores cada vez mais reduzido. Dos 36 cães que havia no tempo do meu avô, que era um grande caçador, passou só a haver um para tomar conta da quinta, e os outros foram entregues para abate, com grande revolta minha, porque não tinha o pragmatismo do meu pai», recorda José António Neiva.
E, por fim, chegou o 25 de Abril de 1974.
Ao início não foi um problema, até porque o médico e proprietário mantivera sempre uma salutar distância em relação ao regime. «Nunca hostilizou o 25 de Abril», garante o descendente. «Era um espírito liberal, nunca teve a preocupação de doutrinar os filhos ou de lhes impor um modelo de sociedade ou de política. Tinha as suas convicções e expressava-as sem cerimónia, mas respeitava as ideias de cada um». O seu filho é um bom exemplo disso: «ultra-religioso» na juventude (a caminho do liceu Passos Manuel, todas as manhãs ia pôr uma vela à igreja de Nossa Senhora das Mercês) –, depois perdeu a fé, tomou-se de simpatias pela esquerda e chegou a andar fugido da PIDE.
Revezes afetivos
José António Neiva Vieira tentou acompanhar os novos ventos, moldar-se às circunstâncias. Para mostrar a sua ‘boa-vontade’, «fez mais investimento em termos agrícolas, para criar mais postos de trabalho», revela o filho. Em simultâneo, encomendou um estudo de expansão e modernização da estância dos Cucos ao ateliê do arquiteto Conceição Silva. O projeto previa um parque infantil, equipamentos desportivos – piscina, ténis, minigolfe – e até um centro comercial com cinema e supermercado. Como outros planos ambiciosos, este nunca chegou a ir para a frente.
«O meu pai era uma figura de transição entre um mundo passado das glórias e um mundo moderno onde cada vez se sentia menos seguro», diz-nos José António Neiva. «Houve alterações que lhe tiraram alguma da alegria de viver.
Com os novos negócios do 25 de Abril passou a haver os novos-ricos sem cultura, muitas vezes sem valores, e o dinheiro ganhou uma conotação que não era a do dinheiro tradicional ligado às fábricas e terras, passaram a ser as finanças, os negócios, as espertezas, o acesso às ajudas para investimento, as falências fraudulentas…».
Se, por um lado, o médico se sentia cada vez mais um estranho entre os novos protagonistas, por outro lado a forma como era visto pelos que antes o adoravam também ficou comprometida. «O ambiente de trabalho nas termas mudou um bocadinho, houve mais reivindicações, exigência de melhores condições de trabalho, doentes que faziam exposições a dizer que as condições de trabalho eram desumanas», recorda o filho. Curiosamente, as termas continuavam a funcionar a todo o vapor, talvez mais ativas que nunca, graças a um protocolo com a Segurança Social. Também isso teve consequências. «A relação quase familiar com os doentes perdeu-se completamente, porque se havia três vezes mais doentes não era possível dispor do mesmo tempo para cada um».
E, depois, houve «alguns revezes afetivos com alterações comportamentais», considera o filho. «Sentiu que não era compensado em termos daquilo que para ele era muito importante, que era ser amado, ser retribuído pela opinião pública e pelas pessoas. Agora já não era um homem-providência, era apenas um dos muitos que representavam uma sociedade menos equitativa e menos justa».
O desencanto de José António Neiva Vieira não se baseava apenas numa questão de percepção das mudanças à sua volta. Decorria também de circunstâncias muito concretas do quotidiano.
«Era um grande proprietário, o carro era um Mercedes topo de gama. Lembro-me de a minha irmã Teresa chegar a casa um dia muito magoada: ‘Chamaram fascista ao papá!’. Havia na região uma imagem de generosidade, de afabilidade, quer à volta do meu pai, quer à volta da quinta e das termas. Com o 25 de Abril essa situação mudou radicalmente. Grande parte das manifestações de apreço por uma figura da região passaram a ser encaradas como subserviência». Na entrada da propriedade da família começaram a aparecer ameaças de ocupação.
Três camionetes carregadas de pão
Um episódio revelador de até que ponto os tempos tinham mudado deu-se a 1 de novembro de 1974, dia em que, nos meios rurais, se celebrava o pão por Deus. «A quinta tinha uma tradição de virem as pessoas das redondezas, das aldeias e das quintas pedir o pão por Deus», relata José António Neiva. «Já ninguém morria de fome por essa altura, mas as pessoas visitavam as quintas e conversavam, era uma tradição antiga muito participada».
O médico e lavrador não viu motivo para que no ano da revolução fosse diferente. «Fez questão de fazer exatamente o mesmo – e mais ainda. Vieram três camionetes carregadas de pão para mostrar que o 25 de Abril não tinha alterado a tradição. O meu pai reuniu a família, fez questão de ter lá os filhos, os empregados da casa agrícola e da quinta».
Tudo estava preparado a preceito. Mas as horas passavam e nada acontecia. «Não apareceu ninguém. Não foi nada organizado, foi espontâneo: as pessoas consideraram que uma festa com aquele cariz já não tinha lugar no pós-25 de Abril. Para ele foi um grande rombo porque mostrava que já não havia a tal contrapartida do reconhecimento público». O pão teve de ser distribuído pelas misericórdias da região para não se estragar.
Uma família desorientada e órfã
O maior revés de todos chegou na década seguinte, sob a forma de um brutal e inesperado acidente. A 28 de agosto de 1987 a família foi surpreendida pela morte de José António Neiva Viera na passagem de nível de Runa, quando o seu automóvel foi colhido por um comboio. «Deixou uma família desorientada e órfã, pois ele era a figura que tomava todas as decisões. Tinha visão, tinha poder financeiro e tinha a respeitabilidade». Sem experiência empresarial e sem a voz de comando do chefe de família, os herdeiros foram gerindo as termas e a propriedade como puderam e nem sempre de acordo.
Melhor ou pior, as termas continuaram a funcionar. A quinta começou a decair aos poucos.
«O meu pai, quando morreu, deixou a quinta fantástica. Mudou os telhados, fez uma adega-modelo, arranjou muros. Trouxe artesãos do Norte para fazer os fingidos – as portas de pinho eram pintadas de maneira a parecerem de madeiras mais nobres». A casa de família «ficou uma pequena maravilha», resume José António Neiva.
Mas o facto de deixar de ser habitada mudou tudo. «Com a morte do meu pai começaram os assaltos sistemáticos. Levaram as torneiras e os fios elétricos, os tonéis e os portões, as ferragens, as pedras lavradas e as mós dos moinhos. Depois houve um trabalho mais especializado de quadrilhas, com roubos orientados para determinadas peças. A Polícia Judiciária ainda conseguiu recuperar em Estremoz móveis antigos que desapareceram da nossa quinta».
‘Não conseguimos dar a volta’
Os vidros partidos deixaram de ser substituídos e a chuva começou a entrar. As infiltrações agravaram-se. Ganhando confiança e sabendo que os proprietários estavam fora, o saque assumiu outra escala. «Ao longo de um fim-de-semana, desmontaram todos os equipamentos em cobre gigantes da adega de aguardente. Alambiques enormes, foi tudo com camionetes e guindastes. Há muitos anos que não há ninguém lá a viver, e isso foi fatal», lamenta José António Neiva.
Os atos de vandalismo e as utilizações para atividades marginais tornaram-se rotineiros. Outrora uma quinta altamente rentável e produtiva, hoje está reduzida a ruínas. «É de cortar o coração», desabafa o herdeiro.
Quanto aos banhos das Termas dos Cucos, inaugurados provisoriamente em 1892 e oficialmente em 1893, abriram pela última vez em 1998. Contrariamente ao que se poderia pensar, a lotação esteve esgotada. «Encerrámos porque corríamos o risco de sermos encerrados compulsivamente a meio da época, por causa de um valor numa análise da água. Considerámos que mais valia fechar ou podiam fechar-nos a meio da época e o desprestígio era maior».
Só que, assim que a engrenagem parou, já não foi possível voltar a pô-la em movimento. «Não conseguimos dar a volta», reconhece José António Neiva. Em 1999 as termas já não abriram as portas e assim se conservam até hoje.
Encontram-se atualmente à venda, tal como a quinta.
Enquanto espera por um projeto que devolva aos Cucos o brilho de outros tempos, José António Neiva continua a juntar as peças do gigantesco puzzle do seu arquivo e as de um outro puzzle imaterial, constituído pelas suas emoções e reminiscências. Além dos papéis antigos, há as recordações dos banhos e pescarias no Sizandro ou dos sustos que apanhou nas grutas da região. E, claro, no centenário do nascimento do seu pai, segue o exemplo do ilustre médico: ‘Exigentes connosco, tolerantes com os outros’. Oengenheiro silvicultor não pôde evitar as pilhagens na quinta nem o declínio das termas, mas pode, pelo menos, bater-se para que as memórias do lugar e daqueles que o habitaram não se dispersem como folhas ao vento.