Situada na remota Nova Gales do Sul, a 555 km de Melbourne e a quase outro tanto de Sydney, a pequeníssima localidade costeira de Eden deve o seu nome a um nobre inglês – George Eden, político liberal, primeiro conde de Auckland, governador-geral da Índia entre 1836 e 1842 – e não ao facto de se tratar de um qualquer paraíso perdido banhado pelas águas do Pacífico.
O levantamento da zona foi feito pelos britânicos em 1842, os primeiros terrenos foram loteados em 1843 e o primeiro hotel, o Crown and Anchor – uma bonita casa colonial de um só piso com um alpendre de ferro forjado –, começou a funcionar em 1845. Em 1847 abriu a estação dos correios e dez anos depois a escola pública.
A povoação, que viveu sobretudo da pesca, nunca cresceu por aí além – segundo um censo de 2016, conta atualmente pouco mais de três mil habitantes. A malha urbana permanece essencialmente idêntica ao que era há cem anos e o Crown and Anchor não só se mantém de pé como ainda proporciona alojamento. O turismo é uma das principais fontes de receita. Entre as atrações mais procuradas contam-se a pesca desportiva e os passeios de barco para avistamento de baleias.
Outrora caçados com arpões pela sua gordura, pela sua carne, pelas barbas e pelo aromático âmbar cinzento, os cetáceos são hoje capturados pelas inofensivas lentes das máquinas fotográficas dos amantes da natureza e da vida marinha. E, mesmo que não consigam avistar qualquer espécime no mar, estes podem sempre dirigir-se ao Eden Killer Whale Museum. É lá que se encontra preservado o esqueleto de Old Tom, uma orca cuja memória continua bem viva no seio da comunidade.
Deus da morte ou ‘humorista’?
A designação remete de imediato para conotações sombrias: em inglês chamam-lhe killer whale – baleia assassina; em latim, orcus era sinónimo de ‘inferno’ ou ‘deus da morte’. Há motivos de sobra para isso: as orcas são predadores vorazes, que em jovens comem 40 a 45 quilos de peixe por dia, e o tratamento que este predador dá às suas presas tem algo de macabro. Mas as orcas também são animais extremamente sociáveis e inteligentes. Old Tom combinava essas duas facetas em alto grau – implacável com outras baleias, mas de uma docilidade sem limites para com os seres humanos.
Os caçadores de baleias de Eden chamavam-lhe «humorista», «por causa das suas inúmeras brincadeiras: gostava de ficar suspenso das cordas dos navios, agarrando-se a elas com os dentes. De deixar-se rebocar pelos remadores. Impedi-los de avançar divertia-o imenso; brincava frequentemente com eles ao jogo da corda», relata Bill François no livro A Eloquência da Sardinha (ed. Quetzal).
Naqueles primeiros anos em que a diminuta Eden estava ainda a formar-se, depois de uma efémera febre do ouro na década de 1850, a caça à baleia tornou-se um dos principais meios de subsistência. «Naquela época – nos anos 1860 – caçava-se a baleia-jubarte com arpão de mão, em pequenos barcos a remos. Era uma profissão perigosa, mas indispensável para subsistir naquelas regiões isoladas Alexander Davidson e o seu filho John, peritos em reparação naval, tinham decidido lançar-se na aventura», continua François.
Uma proeza quase impossível
Feita a partir de barquinhos a remos, a captura de tais monstros (a palavra cetáceo deriva de ketos, o grego para ‘monstro marinho’) parecia uma luta desigual. Uma baleia-jubarte (ou baleia-de-bossas) pode ter de 12 a 16 metros e pesar 35 toneladas. Não se tratava apenas de uma questão de tamanho, tratava-se de um problema de escala. Philip Hoare, em Leviatã – Em busca dos gigantes do mar (ed. Cavalo de Ferro), descreveu assim esta atividade: «A baleação era como a guerra, ‘uma verdadeira batalha’ aos olhos dos baleeiros. Para os jovens no bote, era o equivalente a ultrapassar todas as expectativas; ainda mais no caso de homens que deviam lançar o arpão pela primeira vez. Só nesse momento compreendiam a enormidade do que tinham de fazer, quando olhavam para a água e para a baleia que lhes parecia encher os olhos. Alguns aprendizes desmaiavam perante tal imagem e eram substituídos por imediatos mais experientes».
O próprio ato de arremessar o arpão era uma proeza quase impossível. «Tratava-se de uma manobra militar que requeria uma força sobre-humana», continua Hoare. «O arpoeiro, remando ainda com mais força do que os seus companheiros, tinha de largar o remo no último instante, agarrar na sua arma e lançá-la oito ou nove metros na direção da baleia; de acordo com Ismael, os vasos sanguíneos de um homem podiam rebentar com o esforço».
Uma estranha aliança
Mas nesta arriscada e homérica gesta os Davidson contavam com uma ajuda tão improvável quanto preciosa. Os aborígenes, que noutros pontos da Austrália tinham desenvolvido uma extraordinária técnica de pesca ao tubarão com o auxílio de rémoras treinadas, ali conseguiam literalmente comunicar com as orcas. «A família Davidson era intransigente quanto aos seus valores morais protestantes», explica Bill François. «Convencidos de que trabalho igual merecia salário igual, os Davidson pagavam aos empregados aborígenes o mesmo que aos brancos, prática excecional para a época. Deste modo, ganhavam o reconhecimento e a estima dos Yuin, que, em troca, lhes ensinaram como solicitar a ajuda das orcas para caçar baleias. E os Davidson estabeleceram uma aliança com as orcas que fez deles os peritos do porto de Eden na caça à baleia».
A colaboração entre pessoas e animais era um processo complexo que envolvia diferentes fases. «As orcas patrulhavam toda a costa e, quando avistavam as baleias, golpeavam a superfície da água com as caudas para avisar os baleeiros. No porto, os habitantes de Eden escutavam estas enormes deflagrações e baixavam rapidamente os barcos. As orcas, em grupo, escoltavam e guiavam os arpoadores, empurrando a baleia na direção deles. Homens e orcas tinham desenvolvido sinais, recorrendo a golpes de remo ou de caudas na água, para comunicar e indicar as manobras a seguir durante a caçada», continua o autor francês.
Mas o que tinham as orcas a ganhar com esta estranha aliança? Um pitéu delicado: a língua da baleia. Tal como um cão premiado com um biscoito depois de corresponder à ordem do dono, as orcas recebiam o seu prémio depois da pescaria. «Os caçadores deviam ceder à orca a língua da baleia, uma saborosa iguaria, como recompensa. Instalou-se uma verdadeira cumplicidade entre os homens e o rebanho de orcas de Eden, que ia muito além da simples troca de boas práticas alimentares. Cada orca tinha o seu nome e a sua personalidade. A amizade entre Old Tom, um macho particularmente carismático, e George, o filho mais novo dos Davidson, era especialmente forte». Os dois gostavam de nadar juntos só por diversão.
Possivelmente nascido por volta de 1895, Old Tom não era de modo algum um velho (pensa-se que Granny, a orca mais idosa conhecida, viveu até aos 105 anos), o que pode ajudar a explicar o seu gosto pela diversão. Contudo, além de brincalhão, Old Tom era também um trabalhador incansável. «O próprio Tom arrastava os barcos, puxando as cordas com a boca, para os conduzir até aos cetáceos, permitindo aos remadores economizar as suas forças. Tinha os dentes todos gastos. Quando os marinheiros caíam à água, Old Tom nadava em seu socorro, mantinha-os à superfície e protegia-os dos tubarões», escreve François.
A amizade entre as orcas e os homens do litoral de Eden prolongou-se «por três gerações, de 1840 a 1930». «Enquanto o resto do mundo fabricava navios a motor e arpões explosivos que dizimavam de modo industrial a população das baleias, no porto de Eden cultivava-se a amizade com as orcas, e só se caçava baleias com pequenos barcos, retirando somente o estritamente necessário e assegurando a sobrevivência da colónia», nota François. Quem suporia que até numa atividade tão sangrenta como caça à baleia podia haver uma boa dose de romantismo? Mas esse período de idílio estava prestes a chegar ao fim, da forma mais abrupta.
‘Meu Deus, que fiz eu?’
«Em 1930, a época fora má, os baleeiros industriais noruegueses tinham deixado poucas baleias escapar até ao porto de Eden», relata o autor de A Eloquência da Sardinha. «Um agricultor de nome Logan fora contratado como arpoeiro a bordo do barco de George Davidson, no dia em que Old Tom conseguiu desviar uma baleia de pequena estatura e garantir a sua captura. A baleia era muito magra e, provavelmente, a última daquela época. Na hora de separar o que cabia às orcas, George e Logan desentenderam-se». Para Davidson, o pacto era sagrado – de modo algum se podia frustrar as expectativas do ingénuo animal. Logan discordava: a captura era escassa e, além disso, uma tempestade desenhava-se no horizonte. Era imperativo regressar a terra antes que fosse tarde de mais. Neste braço de ferro, a tripulação apoiou Logan, e Davidson teve de ceder. Pela primeira vez, Old Tom ia ficar sem a sua recompensa.
«Old Tom seguiu o navio, incrédulo, pensando tratar-se de uma brincadeira. Tentou agarrar-se à baleia, abrandar o navio, puxando pelas cordas», conta François. «Mas a tripulação acelerou a cadência em direção ao porto. Foi o seu último jogo da corda, com um desenlace infeliz. Old Tom perdeu nele vários dentes; arrancaram-lhe violentamente o seu quinhão da baleia. A filha de Logan, naquele dia presente a bordo, relatou que, quando a orca ferida regressou às profundezas, dececionada, o seu pai murmurou: ‘Meu Deus, que fiz eu?’».
O acordo silencioso entre humanos e orcas, que vinha sendo respeitado há gerações, fora quebrado. De então em diante, nunca mais as orcas confiaram nos pescadores o suficiente para os ajudarem, fosse dando o alerta para a presença de baleias, fosse encurralando-as para as deixar à mercê dos seus algozes.
A 17 de setembro de 1930, há precisamente 91 anos, a carcaça de Old Tom foi encontrada numa baía próxima da zona onde nadava com George Davidson por diversão. «A perda dos seus dentes condenara certamente aquele animal já idoso a morrer à fome». Bill François conta também que Logan, «corroído pelo remorso, financiou a construção de uma capela», que daria lugar ao Killer Whale Museum, onde se encontra o seu esqueleto.
Pelas contas dos caçadores de baleias, Old Tom seria já nonagenário, mas a análise dos seus dentes indicou que teria 35 anos. Estudos mais recentes, porém, concluíram que este método para determinar a idade através da dentição poderia revelar-se pouco fiável. Afinal, talvez Old Tom fosse mesmo velho.