As eleições legislativas alemãs aproximam-se, e com elas o fim da era de Angela Merkel. Mas a chanceler, mesmo tendo-se tornado uma figura incontornável à escala global, parece não ter encontrado um sucessor à altura. Armin Laschet, de 60 anos, um leal seguidor de Merkel, que se tornou líder da União Democrata-Cristã (CDU, na sigla alemã), viu o seu partido cair a pique nas sondagens, com 22% das intenções de voto, segundo o Politico, sendo que apenas 12% dos alemães optariam por Laschet como chanceler, verificou o Insa, o mais baixo valor registado por um candidato da CDU. Quem lhe passou à frente foi o ministro das Finanças, Olaf Scholz, candidato do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD), que chegou aos 25% das intenções de voto.
No entanto, tudo pode mudar de um momento para o outro, a uma semana das eleições deste domingo, uns 40% dos mais de 60 milhões de eleitores alemães ainda estavam indecisos, segundo uma sondagem da Allensbach. E muito do futuro da maior economia europeia será decidido depois da ida às urnas, num momento em que o espetro político alemão está fraturado, sem nenhuma maioria clara.
«É um momento de mudança, pelo contexto partidário interno, porque se avizinha pela primeira vez uma coligação governativa entre três partidos, e pelo contexto externo, de transição do sistema internacional», avalia Patrícia Daehnhardt, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-NOVA), ao Nascer do SOL.
É que o mundo onde Merkel se afirmou já não existe. Longe vão os tempos de bipartidarismo na Alemanha – ou em boa parte do resto da Europa, diga-se – e poucos ainda falam de um mundo multipolar, onde a UE tinha espaço para sonhar afirmar-se por si mesma. Cada vez é mais notório uma bipolaridade marcada pela disputa entre os Estados Unidos e a China, que procuram alinhar os seus aliados em blocos que lembram a Guerra Fria.
«Neste momento o que se está a verificar, e parece cada vez menos sustentável, é que a Alemanha, e outros países europeus, tentam conciliar o melhor dos dois mundos», considera Daehnhardt.
«Ou seja, por um lado, a Alemanha quer garantir a manutenção da Aliança Atlântica, e do guarda-chuva nuclear norte-americano na proteção da Europa face à Rússia», explica. Aí, Berlim até têm o papel de acalmar a ânsia de Paris por maior integração e autonomia da UE a nível de segurança e defesa, algo que não agrada nada a Washington. «Por outro lado, a Alemanha tenta conciliar essa abordagem político-securitária de aliança com os EUA, com a articulação de uma política económica que a leva a ter relações comerciais muito intensas com a China, incluindo em setores sensíveis como o 5G».
Neste ato de equilibrismo em que se tornou a política externa alemã, qualquer desequilíbrio interno pode virar problema. Ainda que o tópico tenha sido pouco abordado nesta campanha eleitoral, a candidata que mais o destacou foi Annalena Baerbock, dos verdes. A questão é que tudo indica que Os Verdes, que têm 15%das intenções de votos, acabem como o fiel da balança em qualquer coligação.
E Baerbock já apelou a «crescente pressão na Rússia», em entrevista ao Frankfurter Allgemeine Zeitung, opondo-se ao gasoduto Nord Stream 2, que cruza o Báltico até à Alemanha, um dos mais cruciais projetos do Kremlin, pedindo para cerrar fileiras contra a China, num confronto que descreveu como «forças autoritárias versus democracias liberais».
Um legado em disputa
Olaf Scholz, de 63 anos, descrito como aborrecido mas competente pela imprensa alemã, soube apresentar-se como personificação das sucessivas ‘Grandes Coligações’, quando o centro-direita, a CDU, e o centro-esquerda, o SPD, se uniam, governando a Alemanha ao longo de doze dos últimos 16 anos, sob a liderança de Merkel.
«O que é curioso, mesmo irónico, é que em vez de ser o candidato da CDU a ser visto pelo eleitorado como legítimo sucessor de Angela Merkel, estamos a ver que Olaf Scholz, candidato do SPD, está a assumir esse papel de continuidade», explica Daehnhardt.
Seguir o rumo de ‘Grandes Coligações’ abriu espaço político a novos partidos – até dentro do SPD a preocupação era enorme, sendo Scholz criticado pela ala mais à esquerda como um tecnocrata, rosto de uma estratégia datada – e causou desgaste. Mas ser a opção de continuidade pode ser um trunfo enorme.
Especialmente na Alemanha, onde o eleitorado «é muito tradicional e pouco dado a grandes mudanças ou aventuras», salienta a investigadora do IPRI-NOVA. «Os políticos alemães tendem a ser mais pragmáticos do que carismáticos.
Também é isso que o eleitorado dá valor, a competências em relação à economia, à definição de políticas que garantam o bem-estar. Não tendem a ser candidatas coloridas».
Talvez por isso, ao longo dos três debates televisivos, Scholz ficou na retaguarda, manteve a sua distância enquanto ministro em funções, assistindo com tranquilidade aos ataques de Laschet e Baerbock. E a sua paciência foi recompensada, o candidato do SPD foi sempre apontado como vencedor dos debates.
Além disso, Scholz ainda teve a benesse de sucessivos erros dos seus adversários. No que toca à CDU, o partido esteve meses consumidos por conflitos internos, pelo direito a suceder a Merkel, tendo Laschet enfrentado feroz oposição de Markus Söder, líder do Executivo da Bavária, apontado como mais carismático.
Depois disso, o líder da CDU ainda cometeu uma sucessão de erros táticos, misturados com desleixo. Em julho, quando o estado que governa, a Renânia do Norte-Vestfália, o mais populoso do país, foi devastado por cheias onde morreram quase 180 pessoas, Laschet decidiu minimizar a urgência das alterações climáticas, gerando contestação numa momento em que o público cada vez mais pedia ação. O caso ficou ainda pior quando Laschet foi filmado a rir-se às gargalhadas, em segundo plano, enquanto o Presidente Frank-Walter Steinmeier discursava em homenagem às vítimas das cheias.
É difícil imaginar o que terá pensado Merkel face ao vídeo do sucessor que escolhera. Já o eleitorado claramente não gostou, e a partir daí a CDU caiu e perdeu 8% nas intenções de voto.
Mesmo assim, não é impensável que Laschet venha a liderar a Alemanha. Por agora, o cenário apontado como mais plausível é a ‘coligação semáforo’, ou seja, com o SPD a juntar-se ao Partido Democrático Liberal (FDP) – que tem 11% das intenções voto, representado pela cor amarela – e aos verdes. Mas também se fala de uma ‘coligação Jamaica’, com CDU, verdes e liberais, que seria o sonho de Laschet. Contudo, se os liberais preferem juntar-se à CDU, os verdes já deixaram bem claro que o seu parceiro preferencial é o SPD
Outras hipóteses seriam uma Grande Coligação com os verdes à mistura – tanto o SPD como a CDU recusaram essa possibilidade, mas disseram o mesmo antes das legislativas de 2017 e acabaram a governar juntos – ou até uma espécie de geringonça alemã, com os verdes e o Die Linke (A Esquerda, em alemão).
O último cenário é visto como muito improvável, devido à oposição do Die Linke à NATO e ao envio de tropas alemãs para o estrangeiro, algo apontado como uma linha vermelha pelo SPD e Os Verdes. Mas pode ser muito útil tanto à CDU – durante os debates, Laschet recorrentemente intimou Scholz prometer que nunca se coligaria ao Die Linke, mas este recusou – como ao SPD.
É que se, por um lado, os liberais certamente hesitariam antes de se aliar ao SPD, por outro, veriam qualquer Governo que incluísse o Die Linke como anátema. É uma ameaça que Scholz mantém na manga, e que lhe pode ser muito útil nos próximos tempos, nas negociações depois da ida às urnas, quando tentar tomar o trono de Merkel.