Como frascos de picante se tornaram aliados do combate à dor

David Julius e Ardem Patapoutian abriram a temporada Nobel de 2021 com o Nobel da Medicina. Patapoutian é o primeiro cientista nascido no Líbano a receber o prémio. Nos EUA, um dos primeiros trabalhos que teve foi escrever horóscopos num jornal.

Pode haver momentos decisivos em diferentes lugares, mas o do Nobel da Medicina deste ano aconteceu num corredor de temperos de um supermercado, eram David Julius e Holly Ingraham um jovem casal. O então estudante de pós-doutoramento em biologia molecular, surpreendido ontem com o telefonema do Instituto Karolinska, queria perceber como é que o sistema nervoso respondia a estímulos e um dos seus fascínios eram os alucinogénicos usados há milénios, lembrou em 2019 numa entrevista à Scientific American.

Os químicos tinham-nos estudado, mas faltava perceber como é que interagiam com o cérebro e foi a isso que se agarrou, começando a colocar outras perguntas como que estímulos do quotidiano estudar para perceber fenómenos como a dor. O trabalho estava bloqueado e foi parado, a olhar para frascos de picante, que Holly deu um dia com ele numa ida às compras, a ler os rótulos de chili e a pensar se poderia ser por ali: perceber porque “sofremos” com o picante. “Então para de te queixar e faz”, disse-lhe Holy, que ontem publicou uma fotografia dos dois a festejar o Nobel com café, depois de pensarem que a chamada do comité Nobel era uma partida.

Na cabeça de Julius, formou-se a determinação de estudar a capsaicina, o composto ativo da pimenta-chili e o início da história da descoberta que abre a temporada Nobel de 2021.

Levaria à identificação de sensores moleculares que permitem ao sistema nervoso processar calor, frio e pressão – um trabalho que deu o salto com a entrada em cena de Ardem Patapoutian, que partilha com David Julius o Nobel da Medicina deste ano.

Julius explicou nos últimos anos de forma simples como é que a partir do picante o novelo acabou por se desenrolar. Descobriu, com a ajuda preciosa de um dos seus colegas, Michael Caterina, que a capsaicina ativava um recetor nas células chamado TRPV1. “É uma proteína que fica na superfície das células nervosas”, resumiu em 2019 na mesma entrevista à Scientific American. “E está maioritariamente presente nas células nervosas envolvidas na sensação de dor. É um canal de iões que, essencialmente, forma um dónute na membrana da célula, em que o buraco central está fechado até que qualquer coisa o ativa. E depois os iões podem fluir de fora da célula para o interior. Quando isto acontece, inicia a corrente elétrica e desencadeia potencialmente ações. Portanto, envia um sinal elétrico da periferia – vamos dizer os seus lábios ou olhos, onde quer que sinta o picante – e leva esse sinal à medula espinhal. Depois, através dos neurónios, isso acaba por ser transmitido ao cérebro, onde percebe algo como sendo nocivo ou doloroso”, continuava, apontando dois aspetos importantes deste “dónute” celular. É ativado por calor, por isso tem um papel na nossa capacidade para sentir que as coisas estão quentes. Mas, ao mesmo tempo, deteta os agentes que o corpo produz em resposta à inflamação, o que permite estudar melhor a hipersensibilidade e ausência de sensibilidade de algumas pessoas.

O que faz toda a diferença, explicava ainda David Julius, questionado sobre porque é que precisamos de sentir dor. “As pessoas que não têm capacidade de sentir dor, por exemplo algumas pessoas com complicações de diabetes ou doença de Hansen (lepra) não têm sensações nas extremidades. Se se magoam, se têm uma úlcera no pé e não sabem disso, não sabem como se proteger e infeta. Portanto, este aperfeiçoamento da sensibilidade à dor parece existir para nos proteger e para nos dizer que temos de proteger o local. Claro que o problema é que às vezes fica fora de controlo. E então temos um síndrome de dor persistente ou crónica”.

Anos depois, já depois de se cruzar no campus da Universidade da Califórnia com Ardem Patapoutian, que emigrou para Los Angeles em 1986, seguiram a mesma lógica e usaram o mentol para identificar o TRPM8, um recetor ativado pelo frio e mais canais de iões ligados a diferentes temperaturas.

Patapoutian continuou a descodificar os sensores moleculares seguindo o mesmo princípio – no fundo como é que as células captam o que sentimos – e, já com outra equipa no instituto Scripps Research, em La Jolla, desvendou os mecanismos por detrás da perceção do toque e pressão, associando-o ao gene Piezo2 e à proteína Piezo1. “Aprendemos imenso sobre como é que as células comunicam e é quase sempre através de sinais químicos. O que estamos a começar a perceber agora é que a sensação mecânica, a força física, também é um mecanismo de sinalização e sabe-se ainda pouco sobre isso”, disse no início do ano passado à revista científica Nature.

Usar estes mecanismos no estudo de respostas para a dor e para lesões são os caminhos deixados em aberto pelas descobertas premiadas com o galardão da Medicina, este ano a apostar na ciência básica. Nas redes sociais, Ardem partilhou uma fotografia com o filho enquanto assistiam ao anúncio do Nobel na cama – quando os prémios vão para os EUA, há sempre o inconveniente de, neste caso, nove horas de diferença entre o fuso horário de San Diego e Estocolmo.

 

O primeiro Nobel Libanês

E se os Estados Unidos são de longe o país com mais prémios Nobel (388 na história do galardão), Ardem Patapoutian é o primeiro laureado nascido no Líbano – Brian Medawar, descendente de família libanesa nascido já no Brasil, costuma ser apontado como o único cientista libanês laureado, depois de ter recebido o Nobel da Medicina em 1960.

“É um dia para estar agradecido: este país deu-me a oportunidade de uma grande educação e apoio para a investigação básica”, escreveu Ardem no Twitter.

Em 2020, quando recebeu o importante prémio Kavli de Neurociências, atribuído na Noruega, Ardem Patapoutian lembrou a sua história, nada linear, em que o decisivo foi mesmo rumar para os EUA. Nasceu em Beirute, filho de uma professora primária e de um contabilista, e tinha oito anos quando começou a Guerra Civil. “A vida era muitas vezes stressante, com recolheres obrigatórios, horas limitadas de eletricidade e não assim tão raras explosões. Como arménios, éramos habitualmente tratados como partes quase neutrais na luta entre cristãos e muçulmanos e andei em pequenas escolas arménias em que as turmas iam encolhendo à medida que as famílias iam fugindo da guerra. No meu primeiro ano de liceu, estávamos reduzidos a cinco estudantes.”

Era um aluno mediano e só já num colégio descobriu o gosto pela ciência. Ainda entrou na Universidade Americana de Beirute, mas um dia foi capturado pelas milícias armadas e alguns meses mais tarde fugiu para Los Angeles. Para ter dinheiro para viver, um dos primeiros part-times foi escrever horóscopos num jornal arménio local. “Na ciência, muitas vezes, as coisas que damos por adquiridas são de grande interesse”, disse ontem.