O sonho de chegar à fase final do Campeonato do Mundo de Futebol de 2022, no Qatar, transformou-se num pesadelo para a seleção da Guiné-Bissau. Horas antes de defrontarem Marrocos, os djurtus – ou cães selvagens, em crioulo, como é afetuosamente alcunhada a seleção guineense – deram por si com diarreia e vómitos incontroláveis, com jogadores e técnicos a serem transportados de madrugada para o hospital, estando alguns quase incapazes de se afastar da casa de banho tempo suficiente para enfrentar a viagem. No dia seguinte, a equipa viu-se obrigada a pisar o relvado do Estádio Príncipe Moulay Abdellah, em Rabat, para jogar contra Marrocos, saindo goleados por uns pouco surpreendentes 5-0. Rapidamente as alegações começaram a circular, com sugestões da federação de que a comida da seleção guineense fora envenenada, num ato de sabotagem. É uma polémica bizarra, mas não inédita na história do futebol – recorde-se do “Lasanha-gate”, em 2006, quando a direção do Tottenham Hotspur chamou a polícia para investigar a intoxicação alimentar que sofreram dez dos seus jogadores, em vésperas do jogo que decidiria se bateriam o Arsenal no apuramento para a Liga dos Campeões.
“É tudo um bocado estranho”, considerou Caíto Teixeira, presidente da Federação de Futebol da Guiné-Bissau (FFGB). “Se fossem só dois ou três jogares, é uma coisa que acontece. Mas os jogadores todos mais a equipa técnica ficarem assim… É muito duvidoso”, disse ao i o dirigente desportivo, por via telefónica, a partir de Marrocos. É que, apesar das suspeitas, os djurtus vêm-se obrigados a continuar no país, não podendo jogar em casa após a FIFA interditar o estádio Nacional 24 de Setembro, em Bissau, por falta de condições a nível de relvado, balneários, iluminação, bancadas.
Até ao desastre desta quarta-feira, o percurso dos djurtus na fase de grupos da qualificação africana para o Mundial tinha tudo para ser o início de conto de fadas. A seleção guineense estava na frente do grupo I, com quatro pontos, empatando na Mauritânia com a Guiné-Conacri, por um golo, e conseguindo depois vencer o Sudão por 4-2. Não que os seus adversários estivessem com condições muito melhores – o Sudão também foi interditado de jogar em casa pela FIFA e o segundo jogo da Guiné-Conacri acabou cancelado porque sucedeu um golpe de Estado, tendo o Presidente Alpha Condé sido sequestrado por ordem do tenente-coronel Mamady Dumbuya.
O sonho da Guiné-Bissau conseguir chegar pela primeira vez à fase final do Campeonato do Mundo de Futebol estava bem aceso. “As expectativas são boas”, assegurara no dia antes do jogo com Marrocos o treinador Baciro Candé, que convocou dez jogadores de clubes portugueses, incluindo nomes como Nanú, do Futebol Clube do Porto, Fali Candé, do Portimonense, ou Frederick Mendy, do Vitória de Setúbal. “Vamos defrontar uma grande equipa e isso motiva-nos. Estamos a participar numa competição que todos queríamos, que é o Mundial”, declara o treinador à Lusa.
A história mudou quando os jogadores chegaram ao seu hotel em Rabat, após o último treino de adaptação, por volta das 10 da noite, para jantar. Comeram um bufet de peixe, frango, cabrito, e “logo durante o jantar, houve um jogador que se sentiu mal”, relata Teixeira. O pesadelo começara. “Levantou-se e foi para a casa de banho vomitar. Depois voltou e os colegas começaram a brincar com o assunto. Passado um bocado ficaram com diarreia”, continuou o presidente da FFGB, que se sente seguro quanto à qualidade da comida, “o hotel era dos melhores, senão o melhor”, salientou. “Eu, o meu vice-presidente e o diretor-geral comemos a mesma comida, só que noutra sala, e não tivemos nada. Mas todos os que comeram com os jogadores tiveram a mesma reação”.
O facto do jogo não ter sido adiado ainda causa revolta a Teixeira. “Tivemos de levar os jogadores ao hospital, fizeram análises. O relatório dizia que fisicamente estavam bem mas confirmou que tiveram diarreia e vómitos. É um contrassenso, se têm diarreia e vómitos como é que podem estar aptos a jogar?”, questiona, com uma voz cansada. “Essa decisão foi da FIFA. Tivemos logo uma reunião com o comissário do jogo e ele deixou claro que a decisão era deles”.
Agora em Casablanca, enquanto a equipa se prepara para o seu próximo jogo, Teixeira exige uma investigação ao sucedido. E não se coíbe de admitir que chorou face ao horror que viveram os djurtus. “É muito complicado. São profissionais e são uns heróis”, gaba o presidente da FFGB. “Porque isto não é qualquer um que aguenta, eles estão a reagir muito bem. Vamos a ver”.
Precedentes
Não é a primeira vez que casos deste género surgem no desporto. No que toca ao “Lasanha-gate”, tudo aconteceu quando a equipa do Tottenham se sentou para jantar no restaurante de um Marriott Hotel, no leste de Londres, a 7 de maio de 2006, e decidiu pedir lasanha. Era a véspera de um dérbi londrino, contra o West Ham, e estavam a disputar o apuramento para a Champions contra o Arsenal, o grande rival dos spurs.
Subitamente, boa parte da equipa estava com uma intoxicação. “Ainda consigo sentir o sabor daquela lasanha”, contaria o defesa central Calum Davenport, quase 15 anos depois, à The Athletic. Praticamente não jogaram os titulares, ficando de fora estrelas como Robbie Keane, e jogadores que mal tinham jogado nessa época tiveram de saltar do banco, sendo batidos por 2-1. Multiplicaram-se as teorias da conspiração, de que seria um golpe dos rivais do Arsenal, houve uma investigação que não apurou responsabilidades. O facto é que os Spurs, depois dessa época forte, perdida na reta final, só conseguiriam qualificar-se para a Champions quatro anos depois.
Outras vezes não havia quaisquer suspeitas de sabotagem, era um mesmo um risco esperado. Como quando grandes clubes europeus Arsenal, Chelsea, Liverpool, AC Milan, Inter Milan ou o Bayern Munich, fazem as suas tours de início de época na Ásia. Muitas vezes enfrentam calor sufocante, chuvas torrenciais, bem como a possibilidade de intoxicações alimentares, que em 2017 arrumaram boa parte da equipa do Arsenal, deixando-a presa em Xangai. Mas esses jogos continuam a ser marcados, apesar da condição física dos atletas, porque “não é segredo que servem para fazer dinheiro”, escreveu na altura a France Press.