Os portugueses podem ser divididos de várias formas: Sagres ou Super Bock; Soares ou Freitas; BMW ou Volvo; GNR ou Xutos; Quarteira ou Vale do Lobo; Pedro Chagas ou Lobo Antunes; bacalhau frito ou bacalhau cozido. Penso, contudo, não haver assunto que divida mais os portugueses do que o celebrado esta semana: o cinco de Outubro – ou o circo de outubro, ou até, se quiserem, o circo do cinco de outubro.
Ao contrário do 25 de Abril – que quem não celebra está, normalmente, calado (ou faz apenas aquele mimimi chato sobre o 25 de Novembro) –, o cinco de outubro é celebrado pelas duas barricadas. Note-se, todavia, que por razões diferentes: uns dão vivas à Senhora nua, outros dão vivas aos velhotes de Zamora.
Imaginemos que Portugal é um estádio de futebol. Em casa jogam, claro está, os republicanos convictos: de vermelho, orgulhosos, parte do sistema, em maior número (supostamente a ideologia com mais sócios do mundo). Do outro lado, na bancada dos visitantes, estão os outros. E reparem que não lhes chamo monárquicos: simplesmente ‘outros’, pois nem todos os que não festejam efusivamente a República são monárquicos. No campo de futebol, ao centro, estão os arautos, de um lado e outro, a trocar remates nas redes sociais.
No Facebook, discutem quase que por cores (literalmente): quando alguém posta a Senhora nua de vermelho, lá sai da toca um tipo que se deve achar brilhante por recordar que hoje, afinal, comemora-se é o 5 de outubro azul de Zamora: «É que eu não celebro a implantação dessa desgraça». *afia o bigode*. «Eu celebro é a fundação da nacionalidade de Portugal, deste grande país que é Portugal [sic semântico] e que, infelizmente, como dizia o grande poeta português Fernando Pessoa, está por cumprir» – eis a cassete, sempre acompanhada por aquela imagem cansada de azulejos, à venda por trinta cêntimos num quiosque perto de si.
O xuxa mais xuxa fica banzado. Ai de alguém que diga mal da República! Desse ‘elevador social!’ «Graças a ela agora ninguém é chefe de Estado só por sangue. Agora as pessoas fazem-se por elas e não há nepotismo nem famílias a governar!» (cough cough) – eis a cassete, sempre acompanhada por aquela imagem cansada da Senhora nua, à venda por 35 cêntimos num registo civil perto de si.
Apesar desta discussão me maçar, analisando as coisas à lupa considero haver algo de extremamente interessante nela: o 5 de Outubro é o rio que margina a direita e a esquerda em Portugal. Note-se que, não obstante o nacionalismo ser de esquerda (Robespierre e companhia), o termo é hoje associado – com razão – à direita. Munido dessa lógica, o 5 de Outubro passa a ser uma espécie de fábrica de fazer etiquetas políticas, que distingue os republicanos xuxas e de esquerda, dos republicanos nacionalistas e de direita. A 5 de Outubro, toda e qualquer pessoa que sinta mais o peso da Implantação da República, é de esquerda. Pelo contrário, toda e qualquer pessoa que sinta mais o peso da efeméride de Zamora, é de direita. Nesta data, testam-se os instintos ideológicos dos que a vivem. O dia morre, a manhã nasce: calha de ser 5 de Outubro e de ser português. O que o faz feliz? Se for a Implantação da República é porque é de esquerda. Se for o Tratado de Zamora é porque é de direita. Se ambos lhe disserem algo então é um republicano à estilo regicida. Se, como a mim, nenhum lhe disser nada, então é simplesmente um tipo que tem dificuldade a deslumbrar-se.
Caixas, parafusos, etiquetas e caixinhas. Senhoras e senhores: o Ikea da política portuguesa.
Lisboa, 7 de outubro de 2021