A história repete-se ano após ano. E já vão sete de ‘geringonça’, formal e informal (que é como quem diz, com acordo escrito ou de boca).
E, com menor ou maior ênfase, nunca faltou quem tenha vindo agitar a bandeira da crise política, fosse como meio de pressão na tentativa de mais uma ou outra cedência da parte contrária, fosse em jeito de análise ou comentário político que na maioria dos casos se confundiu com expressão de um desejo e não propriamente por se fundar numa objetiva interpretação dos factos.
O jogo político em torno do Orçamento do Estado faz parte das democracias parlamentares, sobretudo quando o Governo está dependente da convergência de duas ou mais bancadas.
Aliás, há um ano, em plena pandemia, foi António Costa quem deu uma entrevista a afastar qualquer possibilidade de entendimento orçamental com o PSD, afunilando as possibilidades de entendimento à sua esquerda, com BE e PCP (mais PEV, PAN e deputadas não inscritas).
Ora, este ano não há absolutamente nada de diferente na proposta de Orçamento do Estado para 2022, em relação às seis anteriores, que justifique o seu chumbo pelas bancadas à esquerda do PS. Aliás, já no ano passado foi assim e o BE bem deve ter-se arrependido do erro que agora volta a ameaçar cometer e no qual o PCP não caiu nem cairá.
Até porque os comunistas não têm ilusões de que o desgaste da sua base eleitoral é estrutural e irreversível – trata-se de uma questão de tempo e, portanto, cada antecipação ou salto temporal só pode contribuir para acelerar o processo.
No fundo, sendo certo que este Orçamento está ‘aprovado’ desde o verão (por acordo de princípios entre PS e PCP), trata-se apenas de saber qual a fatura a pagar pelo Governo socialista e a forma como a pode justificar.
A dramatização serve apenas e só para convencer quem tem de ser convencido de que o chumbo do Orçamento acarretaria muito maiores custos e perdas do que a cedência que o Governo possa ter de fazer (e que o PCP ou até o BE possam reclamar) em matéria de legislação laboral e de reforço do investimento no SNS.
Tanto assim que, antes ainda de o Presidente Marcelo ter recebido os partidos em Belém, já o ministro das Finanças, João Leão, afiançara publicamente que há margem para a negociação em sede de especialidade com os partidos que têm garantido a estabilidade governativa (nomeadamente o PCP), a ministra da Saúde, Marta Temido, viera também assegurar que o esforço de investimento no SNS pode ser aumentado, a ministra de Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva, idem e o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, a quem cumprem as negociações de articulação da ‘geringonça II’, ibidem.
Além disso, o próprio primeiro-ministro foi ao Parlamento servir-se de uma reunião do grupo parlamentar socialista para passar o recado público de que não há drama algum, tudo corre dentro da normalidade e o cenário de crise política não se coloca.
Tratando-se de António Costa, de reconhecida arte e engenho na gestão do poder e no xadrez político em que se move há décadas, até se pode desconfiar – tanto assim que não tranquilizou o Presidente Marcelo, convencido que está de que o líder do PS teve a tentação de provocar uma crise política por perceber que esta poderia ser a sua derradeira oportunidade de obter uma maioria absoluta.
A verdade é que, objetivamente, uma crise política neste momento, pós-pandemia e com o resultado que se verificou nas autárquicas de há menos de um mês, só poderia interessar a dois partidos que agora, com um deputado cada, riscam tanto como as não inscritas Joacine Katar Moreira ou Cristina Rodrigues: o Iniciativa Liberal e, sobretudo, o Chega.
Tal como o próprio Presidente Marcelo prognosticou – num dos seus inusitados exercícios de análise e comentário político aproveitando uma cerimónia qualquer – na melhor das hipóteses para os partidos à esquerda do PS as eleições antecipadas deixariam tudo na mesma e, daqui a seis meses, estariam confrontados com a mesmíssima proposta de Orçamento.
E será crível para alguém que o PCP e o BE sacrifiquem todo o poder que tiveram até hoje de influenciar o Governo e reclamar mais uns quantos lugares ou tachos na Administração Pública em nome de coisa nenhuma?
Há, ainda, um argumento adicional e de muito maior peso: o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). O chumbo do Orçamento e a convocação de eleições antecipadas impediriam a sua boa execução e, consequentemente, acarretariam para Portugal a perda de milhares de milhões de euros de fundos da União Europeia.
Tudo visto e somado, estando o país, o Governo e a Oposição no estado de empobrecimento que Cavaco Silva tão bem resumiu, e encontrando-se três partidos da direita em processos de clarificação interna (PSD, CDS e o próprio Chega têm diretas e congressos nos próximos meses), este seria o pior momento para uma crise política.
Em S. Bento como em Belém está na altura de alguém ir colar nas janelas aqueles desenhos com coloridos arco íris com que os italianos alimentaram a esperança na pior altura da pandemia, com a famosa frase ‘Andrà tutto bene’.
Com os hospitais sem médicos, as escolas com falta de professores, a gasolina e a eletricidade com preços escandalosos, despesa pública nunca vista, dívida do Estado recorde, salários ao nível da baixíssima produtividade e competitividade de uma economia amorfa e uma carga fiscal asfixiante para empresas e famílias, as perspetivas não podem ser as melhores.
Mas, convenhamos, para pior, já basta assim!