Drama, drama pungente, é este tempo de Orçamento. Pela enésima vez se discute quem e como votará a favor. E se avaliam os custos e as contraprestações em pagamento. E se ouvem rufar os tambores e os humores esfriam. E se procura na noite uma estrela auxiliadora para a função divinatória. Todos os atores do costume dizem isso mesmo: o costume.
Desta vez é que é, não há acordo. Ou, o interesse nacional prevalecerá e ele passa. Uma costumeira azáfama comunicacional exalta as virtudes do texto apresentado. Contam-se e medem-se os benefícios prometidos. Os jovens e a classe média ficarão melhor. Os reformados com pensões baixas serão lembrados. Os funcionários públicos só perderão 0,1% com a inflação. O pagamento por conta acabará. E outras mais pequenas vantagens serão atribuídas.
Claro, a economia das palavras é usada para recordar como a baixa de um por cento no escalão é mais que suportada com a subida de um por centro num escalão seguinte. Ou para, apesar de tudo, referir como os combustíveis vão ficar mais caros e o imposto subirá. Ou para, dar uma pequena nota de como outros impostos indiretos e taxas aumentarão também. E, por mais que o ministro do Ambiente se esmere em traçar a normalidade do futuro negro que nos espera com a dificuldade em fazer a transição energética, o facto é que a angústia crescerá.
Nem todos poderemos usar bicicletas, ou patins, ou trotinetes. Nem todos temos transportes públicos à nossa disposição. Nem todos temos dinheiro para comprar automóveis elétricos. E, por outro lado, muito poucos usufruiremos de rendimentos que nos permitam uma vida digna no conforto da casa aquecida. E sabemos como os constantes aumentos dos preços provocarão a subida dos preços do transportado e, através dela, dos preços dos bens de consumo.
Anunciam-nos, também, com gáudio que mais de centena e meia de países aderiram ao princípio da taxa mínima para o que em muitos não era abrangido. Mais receitas, certamente. Mas a nossa desconfiança espera pelo efeito na repercussão no nosso bolso. Os tempos não estão, decididamente fáceis. E, todavia, o discurso oficial oscila entre o mundo novo da abundância e do crescimento e o mundo tradicional das dificuldades e da dívida.
O Senhor Presidente da República confere possibilidade ao surgimento de uma crise, adianta datas eventuais para eleições legislativas. Pergunta-se se valerá a pena. Afadiga-se o dr. Rui Rio a mostrar-se preocupado. Antecipam os comentadores como esse cenário seria bom para o governo, como faria crescer a sua bondade. É que, enquanto a discussão se centra nesse particular, os portugueses sem médico de família, ou sem acesso aos centros de saúde, ou sem consultas, ou sem exames veem desvalorizada a sua queixa.
O que se discute não é isso.
No claro/escuro da nossa história, a crispação passa quando Portugal ganha cinco zero ao Luxemburgo e somos festa e quando Ronaldo não consegue marcar de bicicleta e somos desdita.
De facto, de facto, o que é um Orçamento para nós?