Há uns tempos, uma amiga dizia-me que «acabava as crónicas sempre com uma mensagem de esperança».
É verdade: mas é-o naturalmente. Isto é: não procuro necessariamente ir pôr açucarzinho no café para ele ficar mais soft. O café sabe ao que sabe. Não é intencional que o meu, naturalmente, tenha um fim doce. Apesar dessa falta de intenção, é possível haver razão: a vida, no que importa, sempre me sorriu. Por essa razão – e apesar das agonias existenciais, obsessões suicidas, ou frustrações generalizadas – o meu sorriso encontra-se sempre com o meu coração. Fui assim até agora. É feitio. É ver o mundo a cores pastel. É amor.
Houve uma fase em que andei brincar aos pessimistas: Schopenhauer, Antero, Bernard Williams. ‘Será a existência um fardo?’. ‘Será nascer uma maldição?’. ‘Viver é só sofrer?’. Em todo o lado encontrava sinais que sustentavam a tese que queria, inconscientemente, construir: e isto é um ponto importante. Há uma expressão que diz: «Um sapateiro está sempre a ver sapatos». Eu, na fase pessimista, via agonia em todo o lado. As coisas até podiam não ser tristes: mas, através da minha lente, tornavam-se. Lembro-me, por exemplo, de sempre que passava por lixeiros ou varredores de rua pensar: «Como é que estes tipos não se matam? Quantas vezes, só hoje, terão pensado nisso?». Certamente nenhuma! (graças a Deus). O mal estava em mim e nas lentes pelas quais olhava o mundo. Hoje, que aparento estar resolvido desses assuntos, entendo que nada mais fazia do que projetar a minha realidade nos outros: «Um sapateiro está sempre a ver sapatos». Alguém obcecado com o suicídio está sempre a ver suicidas. Outro exemplo: olhar para uma pessoa com mais de 60 anos e imaginá-la, automaticamente, com uma barrinha vermelha por cima da cabeça (quanto mais velha, barra mais pequena). Morta = barra vazia = agonia existencial. Errado: para além de ignorar que podia, objetivamente, morrer passado um segundo desse pensamento – e, por isso, antes do alguém que acabara de assassinar na minha cabeça –, ignorava também todo o aparelho humano dessa pessoa. Em vez de, sei lá, notar os seus interesses, o quanto gosta da vida, os netos, filhos, ou o quanto (ainda) era divertida, concentrava-me no facto da sua morte estar relativamente próxima: «um sapateiro está sempre a ver sapatos». Alguém obcecado com a morte está sempre a ver mortos. Mais exemplos haverá: cancro, os instintos egoístas do terramoto de 1755, fé, etc.
Aproximamo-nos do fim: hora de adocicar o café.
A vida foi passando. Certo dia, li uma crónica de Eduardo Lourenço – sim, uma! (poderá haver maior prova que o meu lugar é mesmo aqui?) – e foi como se tivesse ido ao oftalmologista mudar as lentes. Após o sofrimento necessário para se sentir a bênção da vida, senti-a construindo-a olhando à minha volta. Sobretudo na natureza: como podemos ter nascido para sofrer se existem flores? (cuja plenitude só se completa através de nós, humanos, que somos os únicos com olhos para notar a sua beleza). Como podemos ter nascido para sofrer se o nosso corpo, literalmente, cicatriza feridas? (a pele cose-se, a alma cose-se, o coração cose-se. A tristeza leva um remendo e está pronta para outra). Como podemos ter nascido para sofrer se somos bichos tão perfeitos ao ponto das nossas mãos se enrugarem para melhor manusearem objetos debaixo de água? (o nível de sofisticação do corpo humano é fascinante). Como podemos ter nascido para morrer se há tanta vida? Não se nasce para morrer: nasce-se para viver!
Tal como, pelo visto, faço instintivamente nos meus textos, também a vida gosta de me espetar com amarguras para, inevitavelmente, ir sempre desaguar à doçura e a lugares quentes. Sorte a minha, que de tanto amor ter recebido, tanto o tenho que dele não consigo escapar: a vida é amor – eis a inevitável ‘mensagem de esperança’.
Lisboa, 15 de outubro