Ernesto Samper Mendoza: eis um nome que os indefetíveis de Carlos Gardel jamais esquecerão. Não lhe bastava ser proprietário da SACO (Servicio Aéreo Colombiano), a companhia que, no dia 24 de Junho de 1935, transportava o grande cantor de regresso à Argentina depois de uma digressão que o levara a Porto Rico e à Venezuela, mas também fez questão de ser ele a pilotar o aparelho.
Em Outubro de 2008, o jornalista de El Tiempo, Daniel Samper Pizano contou uma história que considerou marcante. Certa vez, em conversa com um daqueles seguidores fanáticos de Gardel, este perguntou-lhe em tom de acusação: «Samper? Sos pariente del piloto que mató a Gardel?» Daniel tentou explicar-se. Que nenhum piloto matara Gardel, que a culpa fora de uma rajada de vento que atirou o avião para fora da pista, que a força da natureza fora tão impossível de controlar que atirou o aeroplano contra outro que estava estacionado, que não fora apenasCarlos Gardel a morrer no acidente, e que outros também haviam fenecido, a começar pelo piloto Ernesto Samper Mendoza que, por acaso, era seu tio-avô.
Gardel tinha o cognome de Zorzal Criollo. Zorzal é a palavra castelhana para Tordo; criollo, como está bem de ver, é mestiço. Com ele morreram, nesse dia, o letrista Alfredo Le Pera, os guitarristas Guillermo Desiderio Barbieri e Ángel Domingo Riverol, vários promotores e outros membros do grupo. Três dias mais tarde, foi a vez de José María Aguilar Porrás, também guitarrista, não resistir aos ferimentos sofridos. Ou seja, a morte de Gardel foi uma morte coletiva. Profundamente envolta em boatos, segredos e mistérios. Muitos perduraram até hoje.
Aos 44 anos, Charles Romuald Gardès, que adotou o nome artístico de Carlos Gardel, era famoso em todo o mundo pela sua voz de barítono e pelo dramatismo que punha na forma de interpretar o tango. A Colômbia fazia parte de um grupo de países sul-americanos onde acabara de atuar com o seu grupo de artistas. Estava no cume da fama. Dava-se ao luxo de ser acompanhado para toda a parte por um professor privado de inglês, José Plaja, e por um massagista, Alfonso Azaff. Este último foi acrescentar a lista dos mortos.
A digressão fora um sucesso tão grande que o próprio Gardel ficou espantado pela forma como foi recebido. Sobretudo em Barranquilla e Cartagena das Índias. De Medellín nem vale a pena falar: parecia ser filho da terra. Cinco dias e quatro noites de tango paralisaram a cidade que, dizem, depois de Buenos Aires, é a mais tanguera do universo. Foi alvo de homenagens extraordinárias. Samper, o jornalista e sobrinho-neto, escreveu: « Allí lo escucharon con la devoción que solo despierta el Hijo de Dios. O el mismísimo Dios, si vamos a ser sinceros».
Leiam como se ouvissem, se conhecessem. Se não, façam por conhecer: «Tomo y obligo, mándese un trago/Que hoy necesito el recuerdo matar/Sin un amigo lejos del pago/Quiero en su pecho mi pena volcar/Beba conmigo, y si se empaña/De vez en cuando mi voz al cantar/No es que la llore porque me engaña/Yo sé que un hombre no debe llorar». Muitos foram os homens que choraram ao ouvi-lo. Dia 23 de Junho. O último tango que cantou, através dos microfones da La Voz de la Víctor, a emissora de Bogotá que juntou, na Plaza Bolívar, mais de 15 mil pessoas para o ouvirem por altifalantes. Rematou com um agradecimento: «La emoción no me deja hablar… Gracias, gracias, no les digo adiós sino hasta siempre…» No dia seguinte a voz de Gardel fechou-se no poço sem fundo da eternidade.
Quem foi Samper
O dia 24 de Junho de 1945 calhou a uma segunda-feira. Do Hotel Granada – destruído três anos depois pelas chamas aquando da revolta de 9 de Abril, o Bogotazo, com Jorge Eliécer Gaitán a ser assassinado por um desvairado de nome Juan Roa Sierra, Gaitán que era visto como o futuro do país, o homem que faria a Colômbia fugir de uma ditadura para a modernidade – saiu a comitiva em direção ao aeroporto para apanhar o voo que iria fazer escala em Medellín e em Cali.
Samper Mendoza nascera em Bogotá em 1902. Estudou administração de empresas em Boston, nos Estados Unidos, mas deixou-se fascinar pelos passos largos que a navegação aérea começava a dar. Em 1932, pilotou um avião entre Nova Iorque e Bogotá o que lhe valeu o estatuto de ás da aviação colombiana. Em seguida abriu uma escola de pilotagem. Pelo lado da mãe, Mendoza herdou uma fortuna considerável. Aplicou-a na fundação da Sociedad Aeronáutica de Colombia e fez questão de tratar do negócio de uma forma pessoalizada, estando geralmente presente nos voos que recebiam personagens mais carismáticas. Em Novembro de 1934 comprou três trimotores Ford F-31, conhecidos por Gansos de Lata por causa da sua cabina metálica. Abriu carreiras diárias entre Cali e Medellín e, em seguida, entre Cartago e Bucaramanga. Era um fulano bem humorado e estimado por toda a gente. Gostava da farra e do copo. Mais do copo, sem dúvidas. Prolongava as conversas à mesa até ao fundo de qualquer garrafa. Ou até de várias. Mas ninguém nunca se importou grandemente com isso.
Segundo o sobrinho-neto jornalista, Samper era uma espécie de faz tudo da SACO: presidente, comandante, chefe, diretor da secção de mantimentos, relações públicas, gerente publicitário e o mais que se ficou por saber. Aliás, ter Carlos Gardel a voar na sua companhia aérea foi um golpe publicitário: para combater o gigante aéreo colombiano da altura, a Companhia de Transporte Aéreo Colombiano-Alemã (SCADTA), ofereceu ao empresário Schwartz, responsável pela digressão, tarifas muito em conta. Schwartz era um mão de vaca, como se costuma dizer no Brasil.
Nem hesitou um minuto ao aceitar a oferta.
Voo para a morte
A morte de Carlos Gardel chocou todo o mundo por inteiro, incluindo o pai de família do livro de Lobo Antunes, A Morte de Carlos Gardel, que se recusou a acreditar na notícia. Mas o céu tinha feito o seu aviso. Uma tempestade caiu sobre Bogotá, fazendo estremecer os edifícios, quase fazendo estalar a fachada da Catedral Basílica Metropolitana de Bogotá e Primaz da Colômbia. O voo previsto para sair às 8h30 atrasou umas horas e só descolou depois do meio-dia. A partir daqui, as teorias espalharam-se à velocidade da luz. Houve quem garantisse que Ernesto Samper Mendoza tinha passado a noite numa roda de amigos, jogando às cartas e bebendo em quantidades federais, gabando-se excitadamente de que, na manhã seguinte, seria o piloto do famoso cantor e festejando a sua vitória brilhante da SACO sobre a SCADTA. A esta versão, acrescentou-se um pormenor de farronca talvez já ligeiramente excessivo: Samper prometera que, se tivesse oportunidade, levantaria em voo rasante sobre algum avião concorrente que estivesse estacionado num dos aeroportos que serviriam de escala. Daniel Semper Pizano jurou a pés juntos que o tio-avô era abstémio, o que parece ser um exagero bem maior do que a eventual protérvia do parente. Numa reportagem levada a cabo pela BBC na altura dos 80 anos sobre a tragédia que ceifou a vida ao cantor, um outro jornalista colombiano, mais dado a conspirações, garantiu que havia testemunhas que ouviram tiros a bordo do aeroplano antes de este se erguer da pista do aeroporto Olaya Herrera, em Medellín, e que a probabilidade de El Zorzal já estar morto quando o avião borregou e se espatifou contra outro estacionado perto seria muito grande. As tais testemunhas não abonaram a favor do teórico. Pura e simplesmente, se as havia, não abriram as bocas.
Samper, o tio, pilotava o F-31 que começou a percorrer a pista. Ao seu lado, estava o co-piloto norte-americano William B. Foster, um garoto de apenas 18 anos. Na cabina encontrava-se ainda o chefe de trânsitos da SACO, o também norte-americano Grant Flynn. Só eles sabem o que realmente se passou, e nenhum escapou ao chamamento do túmulo para contá-lo. Os passageiros eram treze: sete do lado direito do aparelho e seis do lado esquerdo. A bagagem, composta sobretudo por instrumentos musicais, ultrapassava os 2100 quilos de limite. Esse dado, pelo menos, parece irrefutável. Aliás, Semper terá começado por, levado pelo bom senso, recusar que toda aquela tralha voasse junta. Depois, caiu no seu jeito de dândi com queda para o negócio e aceitou a pressão feita por Schwartz. Encolheu os ombros e sentiu-se feliz por levar Carlos Gardel no seu avião. Só isso valia o risco. Pagou-o com o epíteto de «El piloto que mató a Gardel» tal como o touro miúra chamado Islero ficaria para todo o sempre como «El toro que máto a Manolete».
Um susto forte percorrera os passageiros e gelara-lhes a espinha ao aterrarem. Uma fortíssima rajada de vento fez rabear o F-31 que foi obrigado a aterrissar quase de lado. No intervalo que durou a escala, tomando um café no bar do aeroporto, o guitarrista José Maria Aguilar terá comentado: «Gracias a la pericia del piloto no perecimos entonces!» Mas esta é a versão de Samper sobrinho. Como tal com o seu quê de natural facciosismo familiar. Embora não esteja aqui quem o desminta. A história já está suficientemente envolta em mistério e não precisa de mais uns pozinhos. Eram duas e quarenta e cinco da tarde. Gardel e a sua malta descontraíram e terão dado asas aos seu alívio. Isto ao mesmo tempo que Samper, o piloto, enchia os depósitos das asas da sua máquina com 250 litros de combustível altamente inflamável.
A morte, por seu lado, esperava, canalha como sempre, em silêncio pelas suas vítimas.
Mistério de princípio ao fim
Com diferença de segundos, o voo da SACO com destino a Cali e outro da SCADTA, um F11 de nome Manizares, pilotado por dois alemães, Hans Ulrico Thomas e William Fuerts, pediram à torre de controlo autorização para levantar. O aeroplano de Samper foi o primeiro a fazer-se à pista e arrancou, aumentando a velocidade.No entanto não conseguiu despegar-se do solo com a celeridade exigida para o peso que transportava. Nos últimos 100 metros, quando finalmente o aparelho levantou o nariz, foi apanhado por outra rajada de vento monstruosa que o atirou para a esquerda, para o exato local onde o Manizares esperava a sua vez para arrancar. O estrondo foi macabro. Alguns passageiros foram cuspidos e conseguiram sobreviver. Do F-31 salvaram-se o músico Aguilar, o professor Plaja e o empregado da companhia Flynn. Aguilar contou que, no momento de apertarem os cintos, Gardel lhe pedira algodão para enfiar nos ouvidos. Queria dormir.
A explosão de mais de 700 litros de combustível dos dois aviões fez elevar uma montanha de fogo que devorou os cadáveres. O reconhecimento das identidades foi duro e complicado. O corpo de Carlos Gardel foi enterrado temporariamente num cemitério de Medellín enquanto se procedia à morosa tarefa burocrática de o transladar para a Argentina. Ironicamente, a última viagem de El Zorzo não foi de avião mas sim de comboio: o corpo saiu do porto de Buena Ventura em direção a Buenos Aires num percurso que demorou cerca de um mês.
O homem que morria envolto numa confusão de versões desencontradas sobre o que de facto aconteceu na cabina do avião deSamper, já provocara controvérsia e debates acesos quanto ao exato local do seu nascimento. Durante muitos anos pareceram não existir dúvidas de que viera ao mundo em Toulouse, França, no dia 11 de Dezembro de 1890. Em Outubro de 1920, foi o próprio Charles Romuald Gardès a criar a primeira confusão ao solicitar a nacionalidade uruguaia com a justificação de que nascera em Tacuarembó, antiga Vila de San Fructuoso, no ano de 1887. Um mês mais tarde era reconhecido como cidadão da República do Uruguai. Não satisfeito, requereu igualmente a nacionalidade argentina no dia 7 de Março de 1923. Também esta lhe foi concedida no espaço de pouco mais de um mês. A América Latina parecia querer Gardel para si, embora tudo indique que El Zorzo não quisera conservar a nacionalidade francesa com medo de ser apanhado pelo recrutamento para a guerra que se ia tornando cada vez mais inevitável, Ainda por cima quando a França se tornou um dos países onde as suas digressões eram mais apreciadas e ainda melhor pagas.
Dois escritores uruguaios, Erasmo Silva Cabrera e Nelson Bayardo, trouxeram a público, o primeiro em 1967 e o segundo em 1988, documentos que dizem provar que o verdadeiro local de nascimento de Gardel foi Tacuarembó, sendo filho de um grande terratenente chamado Carlos Escayola e da sua cunhada de apenas 13 anos, Maria Lelia Oliva. O incomodativo bebé, batizado como simplesmente Carlos, foi entregue a Bertha Gardés, uma cançonetista francesa que, de passagem por Montevidéu, o levou para França e o tomou como filho. Depois, Carlos veio com a nova mãe para Buenos Aires, onde esta se exilou. O problema é que a biografia de Bertha é bastante exígua. E há quem defenda que não passava de uma pobre camponesa de Toulouse que teve uma ninhada de filhos. Entre os quais um com voz de barítono que cantou antes de morrer: «Yo sé que un hombre no debe llorar».Choraram por ele…