Miguel Nunes: “O cinema tem uma missão muito ligada com a verdade”

Entre as enormes árvores que caracterizam o Jardim da Estrela, aproxima-se um jovem ator, de óculos escuros, camisa azul caribe e sorriso no rosto. Miguel Nunes é o protagonista da primeira série portuguesa para a Netflix e, entre sorrisos, nostalgias, presentes e passados entrega-se a uma conversa não só sobre o seu trabalho, como sobre…

És um dos atores portugueses mais assíduos na sétima arte, mas pouco conhecemos sobre o ‘Miguel pessoa’. Quem é o Miguel para além do ator?

É um jovem adulto com 33 anos, nascido a 18 de Abril de 1988, do signo Carneiro. Nasci em Lisboa, na maternidade Alfredo da Costa, mas cresci até aos 10 anos no bairro da Madre Deus, a minha família é de lá… Depois, acabámos por ir morar para a margem sul: eu, os meus pais e a minha irmã mais velha e, nessa altura, nasceu também a minha irmã mais nova. Fiquei lá até aos 26 anos, momento em que sai da casa dos meus pais. 

O que é que te fez sair do ninho?

Foi um momento muito particular para o cinema português… Uma crise em que não houve financiamento sequer para o cinema, a cultura estava em subfinanciamento (ainda pior do que está hoje em dia) e então não havia quaisquer oportunidades de trabalho. Não estava a tê-las e senti que estava na altura de arriscar e ir morar para Paris. Eu falava francês, tinha tido seis anos de francês na escola e queria continuar a praticar ao mesmo tempo que poderia concorrer ao Conservatório de Arte Dramática. Fui à descoberta. Ao mesmo tempo que trabalhava em bares e restaurantes, estudei. 

E o que é que Paris te deu?

Paris foi muito especial para mim e é engraçado estar agora a pensar nisso… Lembro-me de uma história engraçada. Enquanto estava a entregar currículos para trabalhar, houve um rapaz que estava sentado numa esplanada e que me perguntou se eu não era o Miguel… Reconheceu-me de um filme que eu tinha feito com uma amiga dele, uma realizadora norte-americana, tínhamos filmado em Itália no ano anterior. Então foi assim um grande acaso…

Ofereceu-me casa durante uns 15 dias, para cobrir aquele tempo em que eu estava à procura de trabalho e de estadia. Arranjei depois trabalho num restaurante, onde fui assistente de uma chefe de cozinha do Sri Lanka… A melhor hora do trabalho era quando nos sentávamos a comer. Hoje, quando eu como aipo lembro-me dela.

Depois fui despedido desse restaurante, porque não percebia muito bem o francês ligado à hotelaria e fui trabalhar para um bar muito conhecido no bairro Marais, onde comecei também a viver pouco tempo depois. Éramos uma equipa jovem, muito multicultural. Foi muito bom. 

Decidiste ir para Paris procurar qualquer coisa que o teu país não te estava a conseguir oferecer… Então isso significa que és uma pessoa sem medo do desconhecido?

Eu gosto muito de me colocar vários desafios e, sobretudo, gosto de tentar não me esquecer da minha intuição, daquilo que pode parecer ou não mais desafiador para mim… Depois também acaba por alimentar um bocadinho o meu trabalho, porque acabo por conhecer muitas pessoas, conviver com muitas culturas, vários ambientes. Isso preenche-me, dá-me prazer. 

Consideras isso crucial para um ator?

Para mim sim, é essencial! A curiosidade pelo outro… O olhar para o outro sem julgar que este é muito diferente ou distante de mim… Quase como se o outro pudesse ser eu mesmo também. Acho que é fundamental termos essa curiosidade, essa abertura. O confinamento, por exemplo, também foi muito forte por isso. Eu moro numa rua em que os prédios são muito em cima uns dos outros e, quando não podíamos sair à rua, a única oportunidade que tínhamos era ir às varandas…

De repente comecei a conviver com os vizinhos e isso faz-me pensar que, às vezes, o ritmo das nossas vidas, o trabalho neste grande sistema capitalista, não nos deixa ter a atenção que deveríamos connosco e com as pessoas que nos rodeiam. Ganhei uma amiga de 90 anos. Mora à minha frente desde os seus 14 anos! Como é que eu nunca me tinha cruzado com ela? Comecei a pensar… Onde é que eu estava para, durante o período em que moro aqui, nunca ter conhecido esta pessoa? Este sou um bocadinho eu também. 

Entraste aos 12 anos no mundo da representação. Como surgiu essa oportunidade? 

Sempre soubeste que o teu caminho seguiria por aí? Não! Na verdade, foi um mero acaso! [risos] Aos 10 anos, fui abordado por uma senhora na rua… Ia com os meus dois primos, que são gémeos e apenas 6 meses mais velhos que eu, e uma senhora abordou-nos porque precisava de trigémeos para um anúncio. Ia com a minha irmã mais velha que lhe disse que ia falar com os nossos pais, eles autorizaram e lá fomos nós. O que é certo é que lá estavam mesmo trigémeos, mas fomos nós a ficar com o lugar! [risos] Essa senhora passou então a agenciar-nos. Fizemos esse anúncio, que era francês e depois eu continuei a fazer castings. Comecei a experimentar, a gostar e depois quando cheguei aos 18 anos, fiz o casting para os Morangos com Açúcar e fiquei. 

E o que é que essa série te ‘ofereceu’?

Foi um ano de aventura… Sinto que nos Morangos com Açúcar a curiosidade foi aumentando também porque o próprio ritmo da televisão é muito ingrato. Acaba por te formatar um bocadinho para aquela velocidade, para aquela mecânica de trabalhar… Eu queria experimentar o Teatro, o Cinema, para perceber também como é que eu podia trabalhar nestas diferentes áreas. Sendo que o meu compromisso, com o trabalho de ator, é sempre o de nunca ficar à mercê da própria estrutura do trabalho. Tem de ser uma coisa que eu solidifique bem para que, em qualquer destes meios, eu consiga fazer um bom trabalho. 

Entraste depois no universo cinematográfico, primeiro com Alberto Seixas Santos no filme E o Tempo Passa, e depois com Teresa Villaverde em Cisne. Como é que se deu esse salto?

Fiz algumas formações em escolas profissionais de Teatro e Performance, para me preparar para o Conservatório. Depois, entrei em 2009, e fiz o meu primeiro filme, precisamente o E o Tempo Passa, com o Alberto Seixas Santos. Mais tarde participei no O que Há de Novo no Amor e depois fiz o Cisne, com a Teresa Villaverde, que foi o meu primeiro grande papel em Cinema. Isso foi no intervalo do primeiro e segundo ano de Conservatório.

O Cisne foi um filme muito importante para mim, pela equipa que a Teresa escolheu, pelo ambiente que ela constrói no ‘set’ de rodagens, e pela sua atenção com os atores na descoberta das cenas, nos ensaios… Foi um filme que me impactou bastante e que me fez continuar a querer fazer mais cinema. Aliás, acho que foi o filme que, de alguma forma, me fez querer experimentar realizar e dirigir atores.

E quando entraste no Conservatório pensavas no artista que ambicionavas ser?

Ainda hoje me debato bastante com o que ambiciono ser… Quando estou a fazer um projeto penso muito nisso. Mas mais que isso, penso: Qual é a importância que ele tem para mim? Qual a importância do projeto em si? Enfim… É muito importante essa relação entre o ator e o objeto artístico… E, para mim, acho que é muito importante não me esquecer de mim Miguel. O que eu posso trazer para cada projeto? 

Agora com 33 anos e já colecionando inúmeros trabalhos, de vários géneros, dando vida a várias personagens… Consegues definir-te enquanto ator?

[risos] É muito complicado para mim fazer isso… [silêncio] É mesmo uma pergunta muito complexa, porque, na realidade, não sei se me consigo definir enquanto ator. Talvez o pudesse fazer pensando sempre no último trabalho que fiz, porque de uma certa forma é sempre o mais importante… Acabei de fazer uma performance, ou seja, uma área na qual não estou familiarizado, com o André Uerba [artista que mora entre Lisboa e Berlim]. Chama-se Um buraco do tamanho do teu Toque, e a proposta era trabalharmos a intimidade a partir do movimento, da linguagem física e não verbal…

Foi um projeto que mexeu muito com memórias que eu tinha no meu corpo e que já não me lembrava. Portanto, é difícil encaixar-me num tipo de ator, ou definir-me enquanto ator. Talvez seja mais fácil para as pessoas que me vêm e que me ligam a X projeto… Há muitas pessoas que me ligam ao Cartas da Guerra, outras ao Cisne, outras à televisão. E eu gosto de sentir que as pessoas retiveram alguma coisa do meu trabalho, seja ele onde for. 

Isso significa que o teu trabalho também te vai transformando…

Transforma-me e eu transformo o meu trabalho! 

Há uma certa magia nisso, não há? O que é que a tua profissão tem de tão especial?

Acho que a magia está precisamente em não o conseguirmos explicar muito bem! [risos] Ainda não sou aquele tipo de ator que consegue numa entrevista explicar de uma forma muito concreta o que é que é o meu trabalho. Consigo apenas partilhar aquilo que sinto com 33 anos…

Para mim é uma experiência de uma intimidade brutal, que vai a uma zona muito profunda, uma experiência de partilha, de uma alegria imensa ao contracenar com outros atores, de ensaios onde se revelam muitas coisas, muitos pensamentos, muitas vivências que cada um traz para aquele lugar. E em que depois, essas partilhas, sendo compreendidas e usadas de uma forma também emocionalmente inteligente, são coisas mágicas. Acho que é por isso que, muitas vezes, chegar ao dia da estreia, ou ver um trabalho finalizado, não consegue traduzir o que foi essa experiência toda. Há trabalhos em que o próprio processo de trabalho foi mais importante do que a sua apresentação. Isso também é mágico.   

E essa magia da representação carrega em si alguma missão intrínseca?

Eu acho que tem uma missão muito ligada com a verdade. Uma verdade do corpo, que o ator deve encontrar no próprio corpo, na palavra, na voz, na expressividade, na forma como o corpo habita o espaço e se relaciona com os outros… Essa verdade, muitas vezes, é muito difícil de encontrar, porque para isso é necessário tempo. 

E sentes que, para além de tempo, falta valorização? Existe algum estigma preso ao cinema português?

Eu acho que é crónico. Já as pessoas muito mais experientes do que nós nos mostram isso. A cultura nunca foi uma área que tivesse um investimento muito grande por parte de qualquer Governo, sobretudo num período pós ditadura, deveria ter sido feito um trabalho diferente… Com muitas provas dadas de grandes artistas que nasceram, que fizeram o seu trabalho em Portugal e o levaram daqui para fora. Essa valorização do objeto artístico nunca foi um dado adquirido. Este mecanismo de levar a cultura portuguesa para fora, ou valorizá-la cá dentro… 

Em alguns momentos claro que pode ter sido valorizado pelo Governo. Porém, nunca foi nem é amplamente reconhecido e isso deixa-nos um bocadinho perplexos. A cultura é fundamental para todos, tal como a educação e a saúde. A cultura também nos informa, nos educa, nos faz sonhar, imaginar… Sendo tão essencial, se calhar precisávamos desse lado institucional mais fortalecido, neste caso da parte do nosso Governo.

Estamos em 2021 e estamos prestes a ter finalmente um Estatuto de Profissionais da Cultura que está a ser reconhecido há muitos anos. Mas só conseguimos perceber as necessidades do setor cultural indo lá, conversando com os artistas, com as estruturas que os representam. Só assim é que se compreende o que é necessário, o que está em falta, que direitos é que são precisos…

Nestes dois últimos anos deu para perceber que muita gente estava desprotegida e felizmente tivemos a União Audiovisual que colmatou essas falhas do Governo. Não é justo estarmos dependentes uns dos outros, dessa maneira. O Governo tem o dever de nos proteger. 

E os teus processos criativos? Chegas a cada personagem sempre de uma maneira diferente?

Todas elas são diferentes e pedem coisas diferentes… Agora, sinto que (resgatando a questão que me fizeste anteriormente de que tipo de ator sou), se calhar sou um bocadinho cerebral. Gosto de pensar bastante no que é que é o pensamento daquele personagem, o seu caráter, para depois, a partir daí, definir a sua linguagem física também. Fazer um trabalho de filtragem do próprio guião… Pensar no que é que poderá ser a cabeça do personagem, que escolha tomaria, o porquê dessas coisas. Faço uma espécie de biografia. 

E alguma vez te sentiste com dificuldade em distanciares-te de algumas delas?

Na verdade, eu acho que é difícil uma distância completa. Às vezes estou a ver os trabalhos que estão prontos e não consigo deixar de pensar no que é que estava a acontecer atrás daquele plano, ou no que é que aconteceu naquele dia… Porque também relaciono muito os projetos com fases da minha vida e depois é engraçado porque acontece uma coisa frequentemente: uns tempos mais tarde do projeto ter terminado acabo por sonhar com uma cena que filmei, ou com um ator com quem trabalhei, uma situação… São coisas que ficam na memória do corpo e depois se revelam. 

Vais conciliando os três universos (teatro, cinema e televisão). O que é que cada uma das vertentes diz sobre ti?

Dos três, o Teatro é o terreno que me é mais desconhecido e me dá medo. Mas, ao mesmo tempo, suscita em mim um grande entusiasmo. Também por esse lugar desconhecido, por, muitas vezes, ser referenciado como um não-lugar, não-tempo. É uma coisa muito íntima.

É mesmo o lugar mais íntimo onde se pode estar entre atores. E depois, oferecer aquilo ao vivo ao público, é de uma fragilidade muito grande, porque se houver uma falha ela está lá, quase que não é possível escondê-la. Apesar de ser bom não esconder… Faz parte. O erro faz parte. A televisão talvez tenha um lado mais prático. No reconhecimento dessa estrutura mais mecânica…

E,  o cinema é uma coisa muito diferente porque cada filme tem uma ligação muito especial com o seu realizador, que define bastante o que é um filme, o ambiente que se vive lá dentro. Isso é muito interessante, porque é quase como se um filme fosse uma pessoa. Mas este trabalho apaixona-me porque, em todas as vertentes, é capaz de ser a área que explora mais as relações humanas. Que se desafia mais nesse campo, a explorar a relação entre nós e o mundo. 

Em 2018 estreaste-te enquanto realizador na curta-metragem Anjo, que teve estreia nacional no IndieLisboa e estreia internacional no ano seguinte no festival de documentários CPH: Dox, onde esteve nomeado ao prémio New: Wave dedicado a cineastas emergentes. Foi uma experiência diferente? Ou foi o conciliar de dois mundos ator/realizador?

É quase o conciliar de dois mundos, mas também era eu, Miguel, a desenvolver um projeto onde queria que o lado artístico fosse muito ligado a uma parte da minha história, da minha biografia. Queria que o filme estivesse entre ficção e documentário… As personagens que estão no filme são personagens reais, atores que eu convidei para aparecerem como eles mesmos… Assumindo as suas próprias personas.

Foi um filme muito especial por isso mesmo. Eu realmente morei naquela casa, frequentei todos os lugares onde o projeto foi filmado. Aquilo que eu ficcionei no filme foi mesmo muito inspirado naquilo que acontecia naquela casa, naqueles lugares, com aquelas pessoas. Uma junção de ideias soltas que eu fui comprimindo…

É bonito porque numa noite, conheci um rapaz no Cais do Sodré, chamado Francisco, e partilhei esta minha vontade e estas minhas ideias e ele disse-me: «Então mas isso é um filme! Vamos fazer isso! Eu produzo!». Eu fiquei um bocado surpreendido, mas o que é certo, é que foi ele que o produziu. Ou seja, foi ele que trouxe o resto da equipa técnica…

E, felizmente, o filme tornou-se numa coisa na qual eu acredito bastante no cinema, que é um grupo, quase uma família, a viver durante aquele período de tempo e a criar uma coisa que também tem um lado muito inexplicável. Essa relação das pessoas com as pessoas. 

Sendo uma biografia, não te assustou abrires as portas do teu interior?

Acho que não, porque quando olho para mim vejo muita coisa. E era uma coisa na qual eu sentia alguma urgência, queria muito trabalhar isso em mim. Sobretudo nesta cidade, com a qual eu tenho uma relação muito umbilical. É uma cidade que está muito ligada à minha história, ao meu ser…

Os lugares falam-me sobre momentos que passei, contam-me histórias que tive com pessoas com as quais me relacionei, ou contam-me histórias que observei. Então, também era importante como artista, sentir que esse trabalho era uma abertura de um mundo que sei que também é meu. Queria oferecê-lo de uma forma honesta e sincera às pessoas. 

Também integraste o elenco da série francesa Yes I Do para o Canal+, em 2017. Foi muito diferente trabalhar com franceses?

É sempre muito diferente, principalmente na maneira como organizam o seu dia-a-dia de rodagens. Entrei em alguns episódios dessa série que, apesar de ser uma série do Canal+, foi filmada aqui em Portugal. Fiz um personagem pouco previsível da minha parte!

Um barman que era stripper e que seduzia umas raparigas francesas que estavam numa despedida de solteira, acabando por ter uma relação com a noiva. Foi um projeto interessante também porque gosto de trabalhar com atores de outras nacionalidades e nisso acho que não há grande distância entre trabalhar aqui ou noutro sítio qualquer.

A raiz onde vamos buscar as coisas é a mesma, apesar de sermos todos diferentes e de todos os atores terem maneiras de diferentes de trabalhar. Agora, a maneira como a produção organiza o seu dia de rodagens, sim, é muito diferente. Acho que está relacionado com uma cultura artística que é muito mais reconhecida, tanto em França, como na Alemanha…

Acho que esse lugar de organização e de equipa vem de uma cultura que já está muito sólida nesses países. É mais rigoroso, as condições são muito específicas e aqui as coisas como estão num terreno meio duvidoso… Lá está, o Governo precisa de agir, de perceber aquilo que é necessário para que as coisas possam ser feitas com outras condições, com outra qualidade. 

Quais as reações que tens além-fronteiras? Como é que os outros países veem o que se faz em Portugal?

Quando O Anjo estreou no Festival de Copenhaga, tendo estado depois nomeado para um prémio de cinema emergente, foi muito interessante, porque no fim de uma das sessões, tivemos pessoas que se levantaram e começaram a dançar…

E houve um rapaz que disse que já tinha vivido em Lisboa e sentia que o filme lhe deu uma saudade da cidade, porque transmitia mesmo aquilo que é a capital no verão para ele próprio. Isso para mim foi muito bonito… É bom sentir quando o filme deixa de ser nosso. Quando levámos o Cartas da Guerra, aos EUA, a comunidade portuguesa que lá vivia ficou muito feliz por ver um artista português presente fisicamente…

O cinema aproxima-nos e faz-nos refletir sobre aquilo que somos enquanto país, enquanto cultura… Faz-nos questionar sobre o nosso presente tão definido pelo nosso passado recente… Neste caso, a questão da guerra do ultramar, do colonialismo… De que forma é que essas realidades ainda estão presentes no nosso dia-a-dia?  Essas coisas são muito importantes de refletir. Tenho tido muita sorte.

Premiado no LEFFest em 2011 como Melhor Jovem Ator, Premiado pela GDA como Melhor Jovem Talento em 2016 e nomeado aos prémios Sophia e Globos de Ouro como Melhor Ator Principal pela sua interpretação em Cartas da Guerra. O que representam essas distinções? Dão-te segurança?

Dão-me oportunidade e dão-me reconhecimento no sentido em que é uma oportunidade para o trabalho continuar a ser divulgado. É um privilégio, mas não posso sentir que isso me limita, me defina, defina o caminho que tenho de fazer… Não trabalhamos com o objetivo de ser nomeado para x prémios… Isso para mim vem depois. 

Glória será a primeira série portuguesa para a Netflix, um thriller histórico baseado em factos reais que fará os espetadores viajarem até aos anos 60. Podes contar-nos como surgiu esta oportunidade?

Esta oportunidade surgiu num casting, no ano passado, quando estávamos em confinamento. O Tiago Guedes e a Jo Monteiro convidaram-me para fazer o casting através da minha agente e foi um casting onde eu tive muito pouca informação sobre o personagem.

Deram-me apenas algumas ideias chave e pediram-me para gravar um pequeno vídeo para perceberem qual é que era a minha relação com as ideias que me tinham dado e ver nascer uma espécie de universo, também ligado a mim enquanto ator. Perceber que caminhos é que eu escolhia.

Depois, mais tarde, os castings tiveram mais duas ou três fases, dessa vez presenciais e já com outros atores para descobrir as relações entre os personagens. Foi um projeto longo desde esse primeiro casting até saber que tinha ficado com o papel… Obviamente que fiquei muito feliz, já estava tão dentro do próprio projeto que só queria era ler os guiões, começar ensaios… Começou em abril/maio, os ensaios em agosto e as filmagens em setembro até janeiro deste ano.  

O que é que nos podes contar sobre o teu personagem, o João Vidal?

Posso dizer que o João Vidal é um jovem lisboeta, que pertence a uma família da burguesia. O seu pai estava muito ligado ao Estado Novo, era inclusive diretor da PIDE e, portanto, o João é um homem que conseguiu perceber que esse privilégio que tinha, no meio em que estava inserido, lhe dava acesso a algumas coisas. Usou-o então para tentar combater esse regime que definia tanto a forma como se vivia em Portugal.

Decidiu não fugir à Guerra Colonial, porque não quis ser diferente de todos os homens portugueses daquela altura. E isso fez com que ele, em África, despertasse uma consciência política maior do momento todo que se vivia, da forma injusta como aquela guerra foi criada, da ocupação de um território que não era português, na própria relação entre raças… Isso ofereceu-lhe um despertar de consciência que o fez ir contra o regime vigente na altura e aliar-se ao KGB (que estava a tentar infiltrar-se em Portugal através desta central de transmissão americana, que é muito pouco conhecida, mas que existiu e estava instalada na Glória do Ribatejo). O João acaba por entrar para lá com essa missão. É um engenheiro eletrotécnico e as pessoas não sabem que ele é um infiltrado. 

Foi difícil chegar até ele?

Foi! Não foi nada fácil, porque este caminho também leva a uma pesquisa muito grande e profunda. É um tempo diferente do nosso, apesar de não ser assim tão distante. Por exemplo, na questão da liberdade de expressão… Foi necessário perceber aquilo que era o combate político na altura, o que é que era não poder ter essa liberdade de opinião e ter opções contrárias às do regime.

O meu caminho foi muito esse: perceber o que é que algumas pessoas que combateram o fascismo fizeram… A história da Margarida Tengarrinha foi muito importante, já que esteve ligada ao PCP; As Novas Cartas Portuguesas também foi um livro muito importante… Foi isso.

Ler muito, reconhecer depoimentos para me inspirar para o caráter deste homem, para o seu pensamento. A biografia de Amílcar Cabral também foi essencial, porque revela coisas que não são conhecidas na relação do povo cabo-verdiano com o regime salazarista…

Ou seja, muitos problemas foram levantados para que eu percebesse que este homem tinha de ter uma consciência grande destas coisas todas, para fundamentar um bocadinho a sua aliança ao PCP e depois ao KGB. Apesar de ele perceber que esse caminho também tem muitos buracos, muitas injustiças.

Tal como disseste é uma série de ficção histórica e um thriller de espionagem com outras séries lá dentro: sobre um Portugal rural e salazarento, uma juventude trasladada na Guerra Colonial, um drama familiar da alta burguesia. Achas que as pessoas pensam pouco nesse nosso passado?

Não quero generalizar. Eu, na verdade, vejo alguma disponibilidade para discutirmos isso, pensarmos sobre isso e acho que vivemos um tempo em que essa disponibilidade é maior… Mas também sinto que existe alguma resistência por parte de alguns grupos ligados ao poder, que tem certos privilégios…

A série faz-nos pensar sobre isso tudo, mas tem uma identidade que vai para além disso. Aliás, tem várias identidades portuguesas que vão nascendo com os seus personagens. Isso é muito forte de experienciar e acredito que irão haver pessoas que olhem para a série e se identifiquem com alguma coisa.   

Por ser a primeira série portuguesa para a Netflix, sentes que este é o papel mais importante da tua carreira?

[risos] Mais importante da minha carreira, no sentido em que me poderá dar mais oportunidades profissionais. É uma oportunidade única de levar um projeto português a tantos países, tantas casas, tantos sofás, tantas pessoas… [risos]. Eu acho que é também um momento muito importante para a cultura cinematográfica portuguesa e que talvez possa mudar um bocadinho o rumo das coisas… Possa atrair mais investimentos. 

E o que é que falta fazer?

[risos] Muita coisa! Falta-me fazer muita coisa… Gostava de realizar mais, gostava de fazer música e gostava de continuar a interpretar personagens com as quais sinto que posso manter uma relação fiel, tanto das personagens comigo, como ser eu a oferecer-lhes o meu interior. Há tanta coisa para fazer, tantas histórias para contar!